A Assembleia Municipal de Odemira aprovou, por larga maioria, a proposta “Cota 104”, um documento que regulamenta o uso da água disponível na barragem de Santa Clara. Esta reunião realizou-se dias depois de os ministros da Agricultura e do Ambiente terem estado naquela vila do Litoral Alentejano para discutirem a problemática da escassez, com autarcas, empresários do setor agrícola e associações de produtores, ambiente e turismo.
Texto Aníbal Fernandes*Foto Ricardo Zambujo
Na última década os consumos médios anuais da água armazenada na barragem de Santa Clara-a-Velha foram de 69 hectómetros cúbicos (hm3), enquanto as afluências médias anuais foram de apenas 28 hm3. Este défice de abastecimento levou a um “nível de cota na albufeira na ordem de uns preocupantes 108 metros”, lê-se na proposta “Cota 104”, documento aprovado por todos os partidos representados na Assembleia Municipal de Odemira (19 votos do PS, nove do PCP, um do PSD/CDS-PP e um da IL), à exceção do eleito do Bloco de Esquerda.A proposta foi aprovada com um aditamento apresentado pela bancada do PS, obrigando que de qualquer iniciativa, pública ou privada, relacionada com a temática da falta de água seja dada informação a este fórum.A reunião do passado dia 26 seguiu-se ao encontro, de dia 15, realizado a convite dos autarcas de Odemira e Aljezur, e que contou com as presenças da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, do ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, e de vários parceiros que assinaram o “Pacto da Água” em 2023.À sua espera estavam cerca de uma centena de manifestantes que exigiam o acesso à água para todos os residentes neste território, gritando “A água é do povo, a água é para todos” e mostrando cartazes onde se lia “Estufem a vossa prima”, “Dinheiro rápido, estragos permanentes”.
Fátima Teixeira, da associação Juntos Pelo Sudoeste, em declarações à agência “Lusa”, presente no local, manifestou “preocupação” em relação à cota da barragem de Santa Clara e às medidas que sairiam do encontro com os ministros.
“Temos a promessa do ministro do Ambiente de quando a cota da barragem baixar até aos 104 metros” a água será apenas para consumo humano, “e depois temos todo o lobby da agricultura intensiva a fazer pressão à ministra da Agricultura, provavelmente, para aumentar as dotações e baixarem mais a cota na ordem dos 92 metros”, reclamou, afirmando que em causa está “a qualidade e o volume de água que os consumidores domésticos vão ter”, alertando que, caso baixem a cota “para ir mais água para a agricultura” vão “ter de começar a cortar” nos consumidores domésticos, “que [consomem apenas] seis por cento da água que sai da barragem” de Santa Clara.
De 104 para 102 De facto, no final do encontro, foi anunciado pelo ministro do Ambiente e da Ação Climática e pela ministra da Agricultura que o Governo equaciona baixar a cota de captação de água da barragem de Santa Clara, de 104 para 102 na agricultura e de 102 para 100 no consumo humano.
“Neste momento, o Ministério da Agricultura está a fazer um investimento, que espera estar concluído no final deste mês, que permite, com segurança, a captação à cota 100. Se for possível a captação à cota 100 será possível rever a captação à cota 102 para a agricultura, mantendo exatamente as mesmas garantias que estavam estabelecidas no ‘Pacto da Água’”, disse Duarte Cordeiro.
De acordo com o governante, “isto não significa a desmobilização” dos investimentos previstos para garantir a resiliência do sistema. “Estamos a procurar fazer investimentos inteligentes que permitam ir buscar mais volume útil para garantir sempre, entre dois e três anos, água para consumo urbano essencial que é o que está definido no ‘Pacto da Água’”, acrescentou.
Maria do Céu Antunes garantiu que o Ministério da Agricultura já tinha disponibilizado “meios financeiros” para “uma simplificação de procedimentos que permita “reforçar ou instalar novas charcas” neste território “para recolher o excedente que hoje vai para o mar”, aumentando “a resiliência deste sistema”, especificou.
No entanto, acrescentou, “não podemos perder de vista que a cota desta barragem é a cota 116 e o ‘Pacto da Água’ prevê que só podemos gastar mais com a responsabilização de todos para contribuirmos para um uso eficiente e, com isso, recuperar a cota desta mesma barragem”, alertou.Entre os investimentos previstos, Maria do Céu Antunes apontou para a “obra de reparação do canal principal” da barragem de Santa Clara, no “primeiro trimestre deste ano” o que “vai permitir uma redução de perdas na ordem dos 30 por cento”.
Dessalinização Entretanto, no dia 24, o presidente da Associação de Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA), Luís Mesquita, revelou que esta entidade encomendou “um estudo prévio” a “uma empresa israelita” especializada na área com vista à construção de uma dessalinizadora no território, com capacidade para fornecer 25 milhões de metros cúbicos de água por ano, num investimento de 200 milhões de euros.
O estudo aborda três cenários: “A Costa Vicentina, com uma dessalinizadora junto à costa; um segundo cenário foi o de Sines; e o terceiro voltou a ser o Município de Odemira, mas um bocadinho mais para o interior para não colidir com o Parque Natural” do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (Pnsacv), revelou.
Segundo Luís Mesquita, o estudo prévio, que estaria finalizado ainda nessa semana, fez ainda o levantamento dos “cálculos do investimento e do custo da água” associados às diferentes localizações. O prazo previsto para a entrada em funcionamento deste projeto é “de um ano” para garantir “todos os licenciamentos” e mais “três anos e meio para a construção” da central.
Quanto ao preço da água, disse estar consciente de que “vai ser bastante mais cara do que a água que está hoje disponível” para os agricultores. Mas, ressalvou, “em contrapartida, é uma água garantida e é um seguro de vida para os próximos anos, sem limitações”.
Dados apurados pelo “Diário do Alentejo” mostram que a água dessanilinizada pode custar 20 vezes mais do que a abastecida pelos meios habituais, e se for para uso humano o preço pode ainda aumentar, porque necessita de mais tratamentos do que para a agricultura.
Transvase Outra das soluções já faladas passa pela construção de um transvase –avaliado em cerca de 50 milhões de euros – que permita trazer água de Alqueva para a barragem de Santa Clara-a-Velha, mas, tal como a cedência de água aos agricultores espanhóis – de que se falou há umas semanas – isso levanta problemas de sustentabilidade para o maior lago artificial da Europa.
Como disse na altura José Pedro Salema, presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA), “o problema é que o sistema está desenhado para uma determinada utilização e nós estamos a atingir a nossa capacidade”.
Também Pedro do Carmo, deputado do PS e presidente da Comissão Parlamentar de Agricultura e Mar, considera que a hipótese é “realizável”, mas a “necessitar de estudo”, nomeadamente de viabilidade económica. O ex-presidente da Câmara Municipal de Ourique diz que a “seca é um grande problema que se vai agravar e que temos de encarar de frente”.
João Dias, deputado do PCP, e novamente candidato às legislativas, considera que a hipótese do transvase levanta “uma série de questões que têm de ser bem estudadas” e não resolve o problema com a brevidade necessária. “Existem alternativas que podem minimizar a seca” em tempo útil e que, por exemplo, pode passar “pelo combate ao desperdício ou aumentar a capacidade de retenção da água”. *com “Lusa”
Cota 104O documento aprovado, primeiro pelo executivo camarário de Odemira e depois em assembleia municipal, sintetiza o “Pacto para a Gestão Sustentável da Água” que assenta em três princípios: segurança, justiça e futuro. Garante “três anos de consumo humano e assim, considerando que a tecnologia instalada na albufeira permitia a elevação de água até à cota 102, foi entendido que a cota 104 poderia ser considerada como limite de captação para os usos agrícolas e industriais, reservando a diferença até à cota 102 para consumo humano”. Assume o compromisso de investimento, por parte da Águas do Alentejo (AgdA), “que permite concretizar, de forma dedicada, a implementação de um novo sistema de captação na albufeira de Santa Clara, adução e tratamento de água para consumo humano”. E assenta na ideia “de que todos os consumos devem ser admitidos, até ao limite do princípio da segurança, considerando a necessidade de garantia de paz social com base no acesso ao trabalho, na promoção do investimento e na garantia da vida comunitária. A estas componentes da justiça soma-se a ideia subjacente à garantia de fornecimento ao rio, aos precários e a uma distribuição equitativa e justa da água a todos os beneficiários que dela precisem”. Para o futuro traça-se o objetivo de conseguir a diminuição de perdas, uma captação mais resiliente e segura e tendo em conta a assunção de “compromissos dos principais utilizadores visando uma gestão sustentável da água no empreendimento, mais concretamente que, no prazo de cinco anos, seja possível recuperar um modelo de gestão sustentável à cota 116 metros”.