A Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja+, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, assinalou em novembro os seus 15 anos de trabalho na região. Desde 2008 que o intuito passa por “permitir aos doentes com doença grave e/ou avançada poderem permanecer no seu domicílio, mesmo nas situações de maior crise ou nos momentos em que a doença agrava”, atenuando, assim, com uma equipa especializada, “angústias, medos, sintomas físicos e emocionais”. Maria José, Francisco e Nicole têm assistido de perto a esta realidade.
Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa Ilustração | Susa Monteiro
António Miguel tinha 62 anos quando a sua doença, um tipo de demência, começou a fazer-se notar com maior frequência. As idas ao Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, principalmente, por problemas de obstipação e tensões desreguladas, começaram a ser constantes. Embora os seus casos momentâneos fossem resolvidos nas urgências hospitalares, a sua mulher, Maria José, percebia que “o dia inteiro” fora do ambiente habitual agitava e perturbava o marido.
Um dia, em 2015, devido a uma “crise de obstipação que já durava há uma série de tempo”, Maria José teve que levar, novamente, o marido ao hospital onde, pela falta de macas disponíveis, as horas foram passando. Preocupada, e cansada deste tipo de situações, decidiu, enquanto cuidadora do marido, assumir “as responsabilidades” e retirá-lo das urgências nesse dia. De seguida entrou em contacto com a Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja+, coordenado pela médica Cristina Galvão.
“Foi uma segunda-feira, nunca me hei de esquecer. Na mesma hora em que me atenderam o telefone, apresentei-me, expliquei a situação e a enfermeira Catarina Pazes disse-me o que é que eu teria de ir comprar à farmácia e o que fazer. Pediu-me para ir para casa e disse-me que na quarta-feira vinham vê-lo e ver como é que a situação estava. Desde esse dia a equipa passou a seguir o meu marido”, conta ao “Diário do Alentejo” (“DA”). Os episódios críticos, segundo Maria José, continuaram, porém, o número de deslocações às unidades hospitalares diminuíram drasticamente.
“O que acontece é que cada vez que a pessoa tem um problema e vai ao hospital, ou a um centro de saúde, o doente é visto pelo médico que está de serviço na altura e que não o conhece de parte alguma. Existe um diagnóstico perante aquela crise em específico, mas, com esta equipa não, porque esta conhece o doente e sabe perfeitamente o seu estado de saúde e o que é que se deve fazer para não haver uma sobrecarga de medicação. Portanto, isto, no fundo, é ter um serviço que eles nos prestam em casa, em que o doente não sai do seu ambiente. Isto, para uma pessoa com problemas do foro mental, faz toda a diferença”, realça.
Quatro anos mais tarde, em 2019, o irmão de Maria José, António Francisco, de 68 anos, foi diagnosticado com um cancro oral, “num estado já muito avançado”. Esteve em tratamento no Instituto Português de Oncologia (IPO) e, quando regressou a Beja, Maria José recorreu novamente à equipa de cuidados paliativos, principalmente, ao nível de cuidados em enfermagem.
“E mais uma vez o telefone sempre disponível, 365 dias por ano e 24 horas por dia, a equipa sempre de volta de nós para saber do que é que precisávamos ou não. Para quem está em casa como cuidador, que é quem sente as dúvidas quando o doente tem um problema, o pegar no telefone e aparecer-lhe alguém muito profissional a dizer o que nós precisamos de ouvir e saber [ajuda]”, garante. Acrescentando que isso tranquiliza os cuidadores e, consequentemente, os doentes que sentem essa confiança.
O mesmo sentiu Fran-cisco Godinho, de 59 anos, cuidador informal do sogro, do pai e da mãe. Ao “DA” conta que há “mais ou menos cinco anos”, após uma consulta da dor no hospital de Beja, a mãe, na altura com 85 anos, passou a ser acompanhada pela Equipa Beja+ e “nunca mais foi a uma urgência”.“Nós tivemos um contacto muito estreito com a equipa. Sempre que era necessário e que víamos alguma alteração do comportamento em termos de saúde da minha mãe entrávamos em contacto com a equipa, ajustávamos a medicação e íamos avaliando para que as condições de vida dela fossem as melhores possíveis, com menos sofrimento”, diz.
Apesar de atualmente não ter qualquer familiar em acompanhamento, Francisco já contou com o apoio da equipa em outras duas situações delicadas, com o sogro e com o pai. Nesta última, recorda que o progenitor, que acabou por falecer com covid-19, precisou de oxigénio e “prontamente” a equipa de cuidados paliativos e uma empresa da área foram em seu auxílio, o que fez com que o seu pai, “naqueles últimos momentos, recebesse uma morte mais tranquila”.
“Eu tive toda a assistência, tive a perceção de como é que as coisas iam acontecer e, de facto, as coisas aconteceram da forma como me foram relatadas”, relembra.
Lidar com a dor do outro
Os casos dos familiares de Maria José e de Francisco são apenas dois dos muitos que, nos últimos 15 anos, têm passado pelas mãos da Equipa Beja+. As coordenadoras, Cristina Galvão e Catarina Pazes, já perderam a conta ao número de telefonemas que atenderam e às palavras de conforto e de confiança que deixaram.
“Viver com uma doença grave e ameaçadora da vida traz muitas angústias, medos, sintomas físicos e emocionais, não só para o doente, mas também para a família. O objetivo de uma equipa de cuidados paliativos é a melhoria da qualidade de vida de doentes e famílias que enfrentam a situação de uma doença grave e/ou avançada”, refere a enfermeira Catarina Pazes.
Desde 2008, altura em que a Equipa Beja+, com apenas “uma médica como única profissional a tempo inteiro”, foi constituída, já passaram pelos seus cuidados 3300 doentes, em domicílio e em instituições. No último ano, foram referenciados 427 doentes e admitidos 344, o que perfez um total de 576 utentes acompanhados nos 10 concelhos de abrangência – Aljustrel (38), Almodôvar (32), Alvito (oito), Beja (199), Castro Verde (82), Cuba (23), Ferreira do Alentejo (36), Ourique (38), Serpa (78) e Vidigueira (42). Em termos de patologias de base dos doentes acompanhados, destacaram-se a neoplasia (46 por cento), a síndrome de fragilidade (22 por cento), a demência e a insuficiência de órgãos (nove por cento cada uma), as doenças neurodegenerativas e a dor de difícil controlo (quatro por cento cada uma), os acidentes vasculares cerebrais (três por cento) e as doenças pulmonares obstrutivas crónicas (DPOC) (dois por cento).
Segundo as coordenadoras, o acompanhamento da Equipa Beja+ tem-se refletido na “qualidade de vida” que é proporcionada ao doente e, sobretudo, aos seus familiares, com o alívio da dor e de outros sintomas que as doenças podem trazer, do stresse associado à gestão da patologia e do apoio no processo de tomada de decisões ao longo da doença. “Os aspetos mais valorizados pelos doentes, familiares e cuidadores são a segurança que sentem por contarem com este apoio e por poderem permanecer no local onde desejam, o máximo de tempo possível, sem deslocações que apenas trariam sofrimento”, garante a enfermeira.
Em 2023, os utentes seguidos tinham entre 30 e 100 anos, sendo que 87 por cento tinham mais de 65.
Além dos cuidados médicos e de enfermagem, a Equipa Beja+ é acompanhada, desde 2018, pela Equipa de Apoio Psicossocial (EAPS), composta por duas psicólogas e uma assistente social, que trabalha o sofrimento, o diálogo, a relação entre o doente e a família, “através da expressão de emoções, desejos, necessidades”, a prevenção ou reparação de quadros de desesperança, ansiedade e depressão, “integrando, sempre que possível, naquilo que é a dimensão do cuidar, o sentir de todos os que estão próximos do doente, em particular as pessoas mais vulneráveis, como, por exemplo, as crianças”.
“O sofrimento de uma pessoa com doença avançada, incurável, tem várias dimensões – física, psicológica, social, espiritual. É um sofrimento difícil de suportar, quer para os doentes, quer para os familiares ou cuidadores. [Nestes últimos], a EAPS tenta prevenir o desgaste frequente, quer a nível físico, como emocional de quem cuida diariamente, por vezes com escasso descanso, dia e noite, permitir ainda com a sua intervenção reduzir os efeitos traumáticos da doença e, muitas vezes, da morte. Este trabalho de prevenção e antecipação facilita em muitos casos o processo de luto”, explica, ao “DA”, a coordenadora da EAPS, Guida Ascensão.
Além do papel importante que a equipa psicossocial faz com estes dois públicos, a psicóloga salienta, ainda, o trabalho que é feito junto dos profissionais, principalmente, da equipa de cuidados paliativos.
“O trabalho destes profissionais é muito intenso e carregado de emoção, o contexto de proximidade em que trabalham, a fase tão peculiar da vida em que intervêm, com profundo humanismo, pode gerar reações de sofrimento e desgaste. E nós temos de zelar pela coesão e bem-estar destes profissionais”, afirma.
A Equipa Beja+, que não dispõe de um internamento de cuidados paliativos dentro do hospital, atua em dois focos, no domicílio e nas instituições. Nicole Lobo, assistente social no lar Seara de Abril, em Santa Bárbara dos Padrões, no concelho de Castro Verde, admite que a introdução da equipa dos cuidados paliativos na instituição não foi “bem aceite”, principalmente, entre familiares e corpo técnico que falavam “em cuidados paliativos como se fosse o fim da linha”.
“Foi a própria equipa [Beja+] que conseguiu desmistificar esta imagem e hoje em dia já são as próprias funcionárias a perguntar o porquê de determinada pessoa estar nos paliativos, porque faz-nos toda a diferença”, começa por referir. Exemplificando de seguida: “Naquelas situações mais complexas em que os utentes precisam de maior apoio, não nas questões de fim de vida, mas nas dores crónicas, é uma grande mais-valia ter os cuidados paliativos, [uma vez que] evita as deslocações constantes do utente ao hospital e o seu sofrimento. Muitas das vezes o utente vai na ambulância até Castro Verde ou Beja e depois chega lá e não lhe é feito nada de mais, porque a sua situação é aquela e, nessas alturas, se nós tivermos aqui as indicações dos paliativos, evita que a pessoa vá nessa tormenta até ao hospital, porque são situações que nós conseguimos resolver aqui”.
Laura (nome fictício) é utente do lar. Esteve cinco anos com o acompanhamento da equipa dos cuidados paliativos, mas antes de a integrar “tinha idas constantes ao hospital, praticamente, dia sim, dia não”. Durante o tempo em que esteve a ser seguida pela Equipa Beja+ apenas “saiu em situações pontuais”.
“[Os cuidados paliativos] deram-lhe uma qualidade de vida enorme. Estarmos a mandar uma pessoa constantemente para as urgências é muito cansativo e são idosos que estão debilitados. São pessoas que já estão em baixo e sair do conforto da casa é muito desgastante”, refere a assistente social.Atualmente, Nicole Lobo afirma que a maioria dos filhos dos doentes acompanhados compreendem o papel dos cuidados paliativos, “porque sabem que a mãe ou o pai estão confortáveis, a ser bem tratados, a fazer os tratamentos prescritos por um médico, mas que estão no conforto do quarto e da casa deles”.
Neste momento, dos 46 utentes do lar Seara de Abril, apenas “cinco ou seis” estão a ser acompanhados pela Equipa Beja+, contudo, “nenhuma das situações exige um contacto permanente”. No ano que agora terminou, a equipa seguiu 261 utentes em instituições e 315 em domicílio.
Quinze anos muito positivos, mas "ainda há muito a fazer"
“O balanço que fazemos dos primeiros 15 anos da equipa é muito positivo, mas estamos conscientes de que ainda há muito a fazer para melhorar os cuidados prestados aos doentes com necessidades paliativas, e estamos disponíveis para continuar a investir o nosso saber e o nosso esforço diário, assim nos sejam garantidas as condições para que tal aconteça”, refere, ao “DA”, Cristina Galvão. No início do mês, o Governo aprovou o funcionamento dos serviços integrados de cuidados paliativos nas unidades locais de saúde, uma medida que a Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja+ já defende há algum tempo. Em declarações à imprensa, o coordenador da Comissão Nacional dos Cuidados Paliativos, Rui Sousa Silva, explicou que esta medida consiste numa melhor articulação entre equipas, “num serviço único”, que possibilitará referenciações ajustadas, um trabalho cooperativo e o aumento do conforto do doente, com a redução de idas às urgências. Assim, a Equipa Beja+ ambiciona, a curto prazo, a implementação deste mesmo serviço, que incluirá também a Equipa Intra-Hospitalar, que permitirá “alargar a resposta aos 13 concelhos da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba)”, ou seja, Barrancos, Mértola e Moura. Para o futuro, Cristina Galvão reconhece, após explicação do conselho de administração da Ulsba, “a impossibilidade de termos um internamento paliativo já no ano 2024”.