Diário do Alentejo

Vitifrades assinala 25 anos de existência

07 de dezembro 2023 - 12:00
talha
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Entre hoje, sexta-feira, e domingo, o jardim público de Vila de Frades e as diversas adegas que se espalham pela povoação voltam a receber as Festas Báquicas – Vitifrades, certame que se realiza há 25 anos e que “tem sido o expoente máximo na salvaguarda e promoção do vinho de talha”. Este tipo de produção do vinho, “próprio do Alentejo”, que se caracteriza “por um processo de vinificação natural que remonta à época romana”, viu, entretanto, a sua inscrição no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial ser aprovada pela Direção-Geral do Património Cultural, estando a publicação em “Diário da República” prevista para breve.

 

Texto | Nélia Pedrosa

 

Desde 11 de novembro, Dia de São Martinho, que a Adega Justino Damas, em Vila de Frades, Vidigueira, está de portas abertas a partir das cinco da tarde para dar a provar o vinho de talha – branco, tinto e “pitroleiro” ou “palhete” –, numa tradição que se cumpre religiosamente ano após ano e que se prolongará até “finais de janeiro”. “Põe-se o vinho a correr, o pessoal vem em grupinhos, de Évora, de Beja, de todo o lado, trazem os petiscos – uma linguiça, uns queijinhos –, cantam uma modazinha à alentejana e eu só tenho de aviar os jarrinhos de vinho”, conta o proprietário ao “Diário do Alentejo”. Entre hoje e domingo, no decorrer de mais uma Vitifrades, certame que comemora 25 anos de existência, o convívio estender-se-á pela madrugada fora, terminando com a tradicional “açordinha de alho às cinco da manhã”.

Justino Damas, de 57 anos, vendedor de bebidas por conta própria, começou a fazer vinho de talha há 25 – tantos quantos leva a Vitifrades – com o avó da mulher. “Ele fazia o vinho lá em casa, duas, três talhinhas, depois eu comecei a gostar e a fazer também. Na altura arrendei esta adega – mais tarde comprei-a – e no primeiro ano fiz duas talhas. No segundo já fiz três e fui aumentando”. Na campanha deste ano produziu dois mil litros de vinho branco e outro tanto de tinto, menos do que no ano passado, devido “aos calores que deram cabo da uva”, mas a qualidade, garante, é “belíssima”.

De “há uns anos para cá”, sublinha o produtor, tem vindo a “notar-se mais movimento, mais grupos de pessoas, vindas de todo o lado, até do estrangeiro”, o que se deve, sem margem para dúvidas, diz, à Vitifrades. “Deu uma grande vida ao vinho de talha, porque o pessoal de mais idade já tinha deixado de o fazer. Deu, realmente, uma grande fama ao vinho de talha. As pessoas começaram a fazer. Já há moços novos a fazer também. Os meus dois irmãos, que são mais velhos do que eu, também fazem um potezinho para consumo deles. Também já ensinei os meus dois filhos e o mais novo [de 26 anos] tem muita cegueira com isto”. Justino Damas frisa, no entanto, que é “preciso gostar muito do que se faz, é preciso muita força de vontade” porque, sendo um vinho que recorre a técnicas de fabrico artesanais, herdadas do período romano, que lhe conferem um sabor característico, requer “muito trabalho e uma atenção especial”. “Desde que a gente começa a colher a uva que dá muito trabalho, mas sem trabalho nada se tem. Tem de se mexer todos os dias, de manhã e à noite. Ao fim de 40 dias, diziam os antigos, os vinhos já estão cozidos, mas eu dou sempre mais, ao fim de 60 é que eu abro as talhas”. O produtor admite que não consegue traduzir muito bem por palavras o que sente, mas fazer vinho de talha dá-lhe “emoção”. “É aquela preocupação a ver se sai bem ou não, depois, é testar de umas talhas para as outras a ver se este [vinho] sai melhor do que aquele. O vinho de talha é muito sensível. Requer muita higiene. Mas também gosto da parte do convívio com o pessoal”.

 

“Uma lufada de ar para a economia”

 

Apesar das insistências do pai para que fizesse vinho de talha, porque era “uma coisa de futuro”, Luís Amado nunca mostrou o mínimo interesse e considerava que era, precisamente, o oposto, “uma coisa mas é de velhos”. Os anos foram passando, o pai entretanto faleceu e Luís Amado nunca chegou a aprender. Há seis anos, então com 47, pouco tempo depois de ter criado uma agência de viagens em Vila de Frades, achou que “fazia todo o sentido ter um projeto de vinho de talha e atrair pessoas”.

Durante um mês, entre 10 de novembro, véspera de São Martinho, e o último dia da Vitifrades, abre as portas da sua adega “quase exclusivamente” a grupos vindos em autocarros de norte a sul do País e também da vizinha Espanha. Nos últimos dois anos tem recebido uma média anual de 30 autocarros, “com 55, 60, 70 pessoas cada”. Os três mil litros de vinho tinto e branco que produziu neste ano, mais mil do que no ano passado, estão praticamente esgotados. “As pessoas vêm à adega, veem o vinho a correr e provam. Depois temos o melhor que o Alentejo tem à mesa, desde os queijos de ovelha, de cabra, paios de porco preto, chouriça assada, castanhas, nozes”. Mas antes de se dar início às provas de vinho e de produtos regionais, Luís Amado faz questão de explicar “o que é o vinho de talha, como se faz, a sua importância”. Apesar de “as pessoas também visitarem o Centro Interpretativo do Vinho de Talha [em Vila de Frades], onde está tudo explicado, e bem, não há nada como ouvir um produtor, porque é a parte operacional”, justifica.

Para além do vinho que é servido nas provas, vende também a granel, nos típicos garrafões brancos, muito apreciados pelos visitantes, diz, frisando que a promoção do vinho de talha feita pela sua agência no período de um mês “também tem um impacto muito grande a nível da hotelaria, da restauração, dos produtos locais”. “Por exemplo, gastamos 600, 700 queijos, 600, 700 paios. Estamos a falar de um forte incremento de um mês que é bastante bom e, sobretudo, uma lufada de ar para toda a economia. Sou produtor, sou operador turístico, gosto muito de ganhar, mas gosto também que os outros ganhem. Vila de Frades, uma terra pequena, ganhou um impacto muito forte com o vinho de talha nos últimos três, quatro anos, e isso é muito importante porque se as pessoas ganharem, vivem melhor”. Para 2024 pretende “apostar, sobretudo, no mercado espanhol e francês” e “tentar alargar um pouco mais” o período de abertura da adega, mas, para isso, terá de aumentar a produção. “Todos os anos vamos tentando atrair outro tipo de público. No ano passado já tivemos finlandeses. Queremos ir a esses públicos para levar também a cultura de Vila de Frades e os dois mil anos de produção de vinha de talha”.

Luís Amado, que era presidente da Junta de Freguesia de Vila de Frades aquando da criação da Vitifrades em 1998, considera que o que atrai os visitantes – e “há grupos a repetir a abertura das talhas há quatro ou cinco anos” – é precisamente o facto de o vinho de talha ser “uma tradição com mais de dois mil anos”, um produto genuíno, “100 por cento uva”, e de ser provado e adquirido “no sítio onde se produz”, onde se lhe sente “o aroma”. E, ainda, por se tratar de uma localidade “mais pequena”, desconhecida para alguns. Contudo, apesar da sua dimensão, tanto a freguesia de Vila de Frades, como o concelho de Vidigueira, “felizmente, têm muita coisa para criar um programa cultural”, frisa.

“Há muito sítio para visitar. Neste momento as coisas estão a funcionar bastante bem. Foi um trabalho feito ao longo destes anos por todos, câmara, juntas”, acrescenta, lembrando, no entanto, que em 2008, ainda era presidente de junta, quando a marca Vila de Frades Capital Nacional do Vinho de Talha foi registada, “nem toda a gente viu isso com bons olhos”. “Eu disse: temos de registar [a marca] porque estamos num sítio com muita produção e com futuro. Na altura tive o apoio do Manuel Narra, que era o presidente da câmara [de Vidigueira], e do José Miguel Almeida [presidente da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito], que foram duas pessoas que disseram que era uma boa ideia. Depois avançou-se com isso e hoje toda a gente usa a marca, portanto, isso tudo se deve à Vitifrades. A gente sabe que tudo na vida é cíclico, se calhar daqui a uns anos isto pode esmorecer, mas agora é que é de aproveitar. No fim de semana do São Martinho e neste da Vitifrades, principalmente, os alojamentos estão completamente cheios e os restaurantes com as reservas em alta e isso tudo se deve à Vitifrades”. Mas “é importante, também”, caso a candidatura da Produção de Vinho de Talha à Comissão Nacional da Unesco venha a ser aprovada (ver caixa), que “não se estrague a produção do vinho de talha”, adverte. “É importante que as pessoas venham aqui, que se faça bom vinho. Eu, felizmente, tenho tido a sorte, também não sou mais esperto do que os outros, de o vinho sair sempre bom. Mas se não sair não o podemos servir às pessoas. Não podemos servir coisas ruins”.

 

“Expoente máximo na salvaguarda e promoção”

 

“Quando, em 1998, um grupo de amigos, inspirados pela vontade de valorizar o vinho de talha, teve a coragem e a ousadia de realizar as primeiras Festas Báquicas, longe estaria de imaginar o sucesso que a Vitifrades viria a ter”, diz, por sua vez, Ricardo Bonito, presidente da Vitifrades – Associação de Desenvolvimento Local, reforçando que “hoje em dia o vinho de talha é uma marca e um produto identitário social e com algum impacto económico na nossa região”.

“A Vitifrades teve essa capacidade de, quando o vinho de talha vinha em decréscimo, ter pegado, em 98, nesta temática e ter feito com que as pessoas voltassem a olhar para isto de outra forma, porque, com o aparecimento das adegas industriais, o vinho de talha caiu em desuso por diversos motivos. As pessoas tinham as suas próprias uvas e pretendiam realizar logo dinheiro e a adega cooperativa conseguia pagar de imediato. Os vinhos depois também foram ganhando outra qualidade nas adegas industriais e o vinho de talha teve um período de maior quebra. Entretanto, com a Vitifrades, criou-se esta dinâmica e hoje o vinho de talha é cada vez mais apreciado em todo o mundo. A Vitifrades tem sido o expoente máximo na salvaguarda e promoção do vinho de talha”, refere, considerando, no entanto, que “ainda há muito para crescer”, até porque “isto não se esgota no vinho de talha”.

“O vinho é um pretexto, digamos assim, para atrair visitantes. E toda a dinâmica que isto envolve, em termos dos produtos regionais, até em termos de alojamento, da restauração, acaba por ser fantástico para o nosso território. Há, de facto, um desenvolvimento económico com maior incidência durante este período, que vai da abertura das talhas no Dia de São Martinho à Vitifrades, mas queremos prolongar isto, que possa ser replicado ao longo do ano. É nisso que estamos a apostar com os agentes locais e alguns produtores. Fazemos o que é possível para atrair cada vez mais visitantes através deste pequeno nicho de mercado que está com grande pujança e em grande crescimento”.

No Dia de São Martinho, na abertura das talhas em Vila de Frades, por exemplo, “há muito que não se via tanta gente”, com a particularidade, diz Ricardo Bonito, de se ouvir “falar muito em inglês e em português do Brasil”, o que “cria uma dinâmica engraçada e é sinal de que se está a captar outro tipo de público também”. Devido à pandemia, acrescenta, também se assistiu a uma “mudança de paradigma no mundo”, tendo as pessoas “deixado de ir tanto para os grandes centros urbanos e optado por tentar conhecer mais estes pequenos recantos do País”.

A título de exemplo, adianta, ao nível do alojamento, “desde o São Matinho até agora, temos praticamente tudo cheio, salvo raras exceções, e existe vontade dos empresários em dotarem a freguesia e o concelho de mais infraestruturas”. Porém, sublinha, tudo é feito “tendo como premissa garantir a qualidade do serviço a quem nos visita”, pelo que “não adianta estarmos a receber muitas pessoas se depois quebramos a qualidade”.

Ao longo destes 25 anos de existência, a Vitifrades, que, “como qualquer outra associação, vive daquilo que é a boa vontade de algumas instituições, nomeadamente, município, junta e alguns produtores”, tem vindo, essencialmente, a desenvolver “iniciativas de promoção em feiras e outros certames”. A assinatura de um protocolo com a Junta de Freguesia de Vila de Frades, agendado para amanhã, no decorrer da Vitifrades, irá, no entanto, permitir que a associação de desenvolvimento local “passe a funcionar, efetivamente, como tal”, e que possa, ao longo do ano, “desenvolver atividades consistentes e permanentes e não se fixar apenas neste período do vinho de talha”. Faz também parte dos projetos da direção tentar encontrar uma sede e “alargar a base dos sócios”, que rondam, atualmente, as duas centenas. Está previsto ainda a criação “de uma estrutura permanente, um secretariado”, assim como o registo “daquilo que tem sido a atividade” da Vitifrades ao longo dos anos. E pretende-se, ainda, que a associação se constitua “como um dos parceiros do território”, envolvendo-se “nesta dinâmica empresarial local”.

Para Diogo Conqueiro, se Vila de Frades é hoje a Capital do Vinho de Talha isso “deve-se à Vitifrades”. “Nos anos 2000 a tradição da produção do vinho de talha roçou a extinção e acaba por ser o trabalho da Vitifrades que devolve o vinho de talha à luz do dia e faz dele o produto com a procura que tem hoje, portanto, por aí conseguimos ver a importância da Vitifrades”, diz o presidente da junta de freguesia.

Referindo-se ao protocolo que será assinado amanhã entre a autarquia e a Vitifrades, e que, “além dos meios logísticos, prevê meios financeiros para que a associação possa não só desenvolver o certame, mas também a sua atividade ao longo do ano”, o autarca sublinha que, volvidos 25 anos, estava “mais do que na altura de deixar de ser uma associação de ‘casa às costas’, de ser uma associação a viver de improvisos”, e de se assumir “que Vila de Frades, a freguesia e a comunidade como um todo querem uma Vitifrades forte”. “Sabemos que o mundo associativo não é fácil, as pessoas que estão disponíveis são cada vez menos, portanto, se não formos todos, no conjunto, a darmos as mãos e a tentarmos levar o barco a bom porto, será impossível. Para além disso, o nosso papel, enquanto junta de freguesia, é preparar o território para que as pessoas que nos visitem sejam cada vez mais”. E, nesse sentido, acrescenta, a autarquia tem vindo a apostar numa maior divulgação e informação ao visitante, nomeadamente, através da criação de “uma agenda cultural com maior incidência neste período”, da realização “de uma feira de São Martinho e de uma prova desportiva que traz cerca de 400 participantes”, para além “de mapas turísticos, sinalética ao longo da vila e de QRCode para que o visitante possa ter um mapa de Vila de Frades na palma da mão, com toda a informação, não só sobre os produtores de vinho de talha, mas o que pode visitar, onde pode comer, onde pode dormir”. E conclui, dizendo, à semelhança do presidente da Vitifrades, que o objetivo principal “é que as pessoas não saiam daqui defraudadas”.

 

Vinho de talha inscrito no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial

 

A Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) aprovou a inscrição da Produção de Vinho de Talha no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (Inpci), conforme despacho de 28 de novembro e que, em breve, será publicado em “Diário da República”, critério indispensável para a apresentação da candidatura à Unesco. Em comunicado de imprensa, a DGPC refere que, com esta inscrição, “reconhece a importância da Produção de Vinho de Talha enquanto reflexo da identidade da comunidade envolvente e a sua profundidade histórica e evidente relação com outras práticas inerentes à comunidade”. O pedido de inscrição da manifestação no Inpci foi proposto pela Câmara de Vidigueira, “entidade que encetou trabalho de investigação para aprofundar o conhecimento sobre a Produção de Vinho de Talha, com o objetivo de inventariação na plataforma MatrizPCI, onde, a partir de agora, o público pode ter acesso a toda a documentação”. Na mesma nota, a DGPC adianta que “este tipo de produção do vinho, próprio do Alentejo, caracteriza-se por um processo de vinificação natural que remonta à época romana, em que as uvas, depois de esmagadas com recurso a um moinho ou uma mesa de ripanço, transformam-se no mosto que se deposita em talhas de barro para fermentação e cozedura por um período aproximado de 40 dias, até o vinho ficar pronto a ser bebido”. De acordo com dados de 2018/2019, esta prática de vinificação “mantém-se ativa nos concelhos de Aljustrel, Beja, Campo Maior, Cuba, Elvas, Estremoz, Marvão, Mora, Moura, Serpa e Vidigueira”, num total de 134 produtores identificados.

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