Diário do Alentejo

bullying

10 de novembro 2023 - 09:32
Casos de violência em contexto escolar continuam a aumentar. No distrito de Beja, entre 2010 e 2022, foram assinaladas 647 ocorrências
Ilustração| Susa Monteiro/ArquivoIlustração| Susa Monteiro/Arquivo

O número de casos de violência em contexto escolar continua a aumentar. Segundo os dados do livro Violência nas Escolas – Caracterização, Análise e Intervenção, de Miguel Rodrigues, apresentado no início do mês, no distrito de Beja, no penúltimo ano letivo, 2021/2022, houve um “aumento de 72 por cento de ocorrências” em comparação com o ano anterior. Maria e Rita, ambas sob anonimato, dão vida a duas histórias de bullying em três escolas do distrito. Com seis e 14 anos experienciaram o lado negativo de quem, sem explicação, fez questão de lhes ferir o ego e a personalidade.

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa 

 

Maria (nome fictício) tem 18 anos. Aluna estudiosa. Frequenta o 12.º ano numa das escolas secundárias de Beja e, como qualquer jovem, tem o seu próprio grupo de amigos. Resolvida com o seu passado, fala pouco dele, mas não o esquece. Ao “Diário do Alentejo” (“DA”), com receio de “remexer” em sentimentos indesejados, pediu para que fosse a mãe, Filipa (nome fictício), a dar o seu testemunho.

Há quatro anos, em 2019, Filipa foi chamada à escola da filha, numa outra localidade do distrito, pela Guarda Nacional Republicana (GNR). Não lhe deram qualquer informação, porém, pelo tom de voz, percebeu que algo de sério tinha ocorrido.

“Perguntei [ao telefone] o que é que se estava a passar, mas não me quiseram dizer. Quando lá cheguei, encontrei a minha filha completamente desfeita, em lágrimas, e a dizer que nunca mais queria voltar para aquela escola”, recorda.

Soube, nesse dia, que Maria era vítima de bullying, psicológico e físico, há “cerca de cinco/ /seis meses”, por um grupo de colegas, motivado por “uma obsessão de um miúdo”.

“Sentia-a triste e sem querer ir para a escola, [mas] eu não percebia o que estava a acontecer. Nós sempre tivemos uma relação muito aberta, falávamos de tudo e ela nunca me quis contar o que se estava a passar”, afirma. E continua: “O miúdo quando atuava fazia-o em grupo, nunca individualmente, e tornou-se obsessivo ao ponto de verbalizar, no dia em que [a minha filha] foi agredida em pleno recinto escolar, que ela era dele”.

Maria, na altura com 14 anos, não tinha qualquer ligação com o rapaz, da mesma idade, uma vez que não eram da mesma turma, nem partilhavam o mesmo grupo de amigos. Na semana seguinte, Filipa ainda tentou que a filha voltasse à escola, mas não conseguiu.

“Quando cheguei a casa senti que tinha de fazer alguma coisa, porque não recebi resposta da escola. [Aliás], recebi a resposta que não queria ouvir, que seria melhor ser a minha filha a sair. Como é óbvio, não gostei”, assegura.

A mesma mudança teve de fazer Rita (nome fictício) no fim do mesmo ano letivo, 2019/2020. Ao terminar a pré-primária num infantário na cidade de Beja, a escolha do estabelecimento de ensino básico que a filha integraria deixou a mãe, Madalena (nome fictício), num misto de emoções. Ao “DA” conta que, pela sua profissão ligada à área da educação, sabia que a escola a que a filha pertencia estava a “transformar-se num gueto” e que as suas referências, em termos de ambiente, não eram as melhores, porém, a qualidade pedagógica pesou mais na balança.

“Passei por uma situação de indecisão, sem saber o que é que haveria de fazer. Falei com algumas pessoas para tentar perceber o que é que poderia ser melhor e como estava a trabalhar na dita escola de referência conhecia os colegas de 1.º ciclo e sabia que pedagogicamente era uma escola muito boa e acabei por colocá-la lá”, relembra Madalena.

Depressa se arrependeu da decisão. As situações de violência rapidamente começaram e Rita, então com seis anos, não viu outra opção, para conter o medo, a não ser passar os intervalos na sala de aula.

“Ela era aquela menina que se vestia com vestidos, usava lacinhos e meias a condizer com o casaco. Na realidade, ela soube aceitar a diferença que havia na escola, mas a diferença não a soube aceitar a ela. A Rita teve episódios em que lhe pisavam os pés, porque ela levava sandálias, em que por ser mais gordinha era gozada, e como não lidava bem com a violência sempre que via algum miúdo a bater noutro imediatamente ajudava e depois acabava por ser ela a agredida”, assegura.

Não conformada com a situação, que, segundo Madalena, era do conhecimento de toda a comunidade escolar, questionou várias vezes a direção da escola quanto à sua mudez e incapacidade em tomar atitudes, bem como a associação de pais que a aconselhou a que Rita mudasse de escola. “A minha filha começou a ser acompanhada por uma psicóloga externa à escola e esta, desde fevereiro [de 2020], que me dizia que a Rita tinha de sair, urgentemente, da escola onde estava. Por estarmos em pandemia, com aulas on line, acabei por a aguentar até ao final do ano letivo, mas foi muito complicado para todos”, afirma, entre suspiros.

647 OCORRÊNCIAS EM 12 ANOS NO DISTRITO

O livro Violência nas Escolas – Caracterização, Análise e Intervenção, publicado recentemente por Miguel Rodrigues, chefe da Polícia de Segurança Pública (PSP) e doutorado em Educação, dá conta que de 2010 a 2022, em média, foram registadas “mais de nove mil ocorrências em ambiente escolar em contexto nacional português”, tendo sido assinaladas, no distrito de Beja, 647.

“Nos últimos 12 anos encontramos, no Alentejo, 2310 ocorrências em ambiente escolar. Estes valores distribuem-se por 940, em Évora, 723, em Portalegre e 647, em Beja. Analisando de forma mais minuciosa os três distritos do Alentejo, encontramos uma média anual de 78 ocorrências em Évora, de 60 em Portalegre e de 54 em Beja”, esclarece o também investigador.

Estes dados, que resultam de um trabalho multidisciplinar desenvolvido pela PSP e GNR, ficam, segundo o psicólogo Luís Fernandes, muito aquém dos números reais, tanto pela duplicação de resultados apresentados pelas entidades, como pela certeza de que “mais de metade dos miúdos não denuncia as situações”.

“Uma das questões que tem sido uma luta há anos é o facto de nós não termos um diagnóstico real a nível nacional e local. [Primeiro], o que acontece é que nós nunca temos a certeza destes números, porque, por exemplo, a GNR apresenta uns dados, a PSP outros, as escolas outros e depois há situações/denúncias que são noticiadas em vários contextos”, começa por esclarecer ao “DA” o também fundador do projeto “Bullying.pt”. E continua: “Depois quem está no terreno, como é o meu caso, vê que [estes dados] são sempre muito escassos. Estes valores aparecem, independentemente do cruzamento que estava a falar, sabendo que mais de metade [das vítimas] não denuncia, porque estas situações são as que vão até ao fim, ou seja, são aquelas onde há o reporte, a não desistência da queixa e é feita alguma coisa”.

O caso de Maria é um dos 25 do ano letivo 2019/2020 contabilizados na obra. Após saber que aquele não tinha sido um ato isolado, Filipa apresentou queixa, por escrito, no posto da GNR da localidade e escreveu um email a contextualizar a situação à câmara municipal local, à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e ao Tribunal de Família e Menores de Beja, tendo, mais tarde, saído a sentença a seu favor.

“Fui aos sítios certos e apanhei pessoas boas no meu caminho que me souberam ouvir a mim, à minha filha e a todo o processo. O que eu vejo é que há muito receio por parte dos pais [para formalizarem uma denúncia]. Eu, ao apresentar queixa, sinalizei a minha filha na CPCJ, como vítima de bullying, e sei que isso noutra casa era logo motivo para se desistir, porque há o mito que isso lhes pode tirar os filhos. Isso é mito! Estas instituições servem para esse tipo de processos, mas também para nos ajudar e, neste caso, nós precisávamos de ajuda. Porque se não se apresentar queixa escrita como é que as autoridades e os tribunais sabem?”, alerta Filipa.

Ao se analisar o número de ocorrências sinalizadas no distrito de Beja, segundo o livro editado pela Pactor, rapidamente percebemos que existe uma oscilação grande entre anos letivos, motivada, na perspetiva de Luís Fernandes, pela disponibilização ou indisponibilização de dados às entidades competentes. Em 2010/2011 assinalaram-se 69 ocorrências, 57 em 2011/2012, 43 em 2012/2013, 74 em 2014/2015, 82 em 2015/2016, 66 em 2016/2017, 43 em 2017/2018, 39 em 2018/2019, 25 em 2019/2020 (ano pandémico), 43 em 2020/2021 e 74 em 2021/2022. De salientar, também, que Miguel Rodrigues admite que, a nível nacional, a prevalência de tipologias de ocorrências dividem-se entre ofensa à integridade física, furto, injúrias/ameaças, outros crimes, vandalismo/dano, roubo, posse/consumo de estupefacientes, ofensas sexuais, posse/uso de arma e ameaça de bomba.

“É importante que haja esse reporte, porque a ideia é termos uma noção da realidade. Quem está no terreno sabe que, por exemplo, [a conjuntura de] uma escola na Amadora não é a mesma de uma de Beja ou de Coimbra, do Porto, de Faro ou de Almada, mas é importante termos essa avaliação feita para também intervirmos de uma forma mais concreta, objetiva e concertada em relação ao problema que vivenciamos em cada situação”, salienta. Ainda assim, e tendo em conta o número de alunos em cada distrito, os dados mostram que Portalegre, Guarda, Castelo Branco e Beja são aqueles que apresentam uma menor incidência de casos, contrapondo com os estabelecimentos de ensino de Lisboa e Porto.

A ODR

Ao contrário de Maria, a transferência de Rita de escola, no início do ano letivo 2020/2021, não resolveu a situação. No novo centro escolar o pesadelo continuou, deixando os pais cada vez mais desesperados. Se no 1.º ano a violência era maioritariamente física, com a mudança de escola passou a ser também psicológica.

“Acabei por mudá-la, com um relatório da psicóloga e com fundamentos, mas as coisas também não correram muito melhor. Diziam-lhe que por ela ser pobre, por exemplo, pelos pais terem um carro Opel, que não gostavam dela e que não queriam brincar com ela. E a situação começou a ser desesperante”, revive Madalena. “Eu sofri de bullying na pele, mas é muito mais doloroso ser mãe de uma criança que sofre bullying. A minha filha chegou a dizer-me que queria morrer, que estava farta de ninguém a aceitar e gostar dela. Como é que nós, enquanto pais, gerimos isto? O que é que eu digo à minha filha que, com sete anos, me diz que quer morrer?”, questiona.

A personalidade de Rita, assim como a de grande parte das vítimas, segundo Luís Fernandes, é potenciadora deste tipo de violência, uma vez que “há miúdos que são mais reativos e outros mais passivos e isso pode ser potenciador ou inibidor deste tipo de comportamentos” e situações.

Segundo o psicólogo, além do acompanhamento das vítimas, é urgente começar desde cedo a trabalhar com os agressores, pois “é errado pensarmos que os miúdos agressores são todos de famílias multiproblemáticas”. “Embora haja estudos que cruzam ambientes mais agressivos de maus-tratos na infância e violência doméstica com este tipo de comportamentos, com o mal-estar que sentem a ser deitado cá para fora através de agressões aos colegas, sabemos que, normalmente, os miúdos [agressores] até têm uma estrutura familiar ‘normal’, sem grandes problemas sociais”, refere.

Filipa conta ao “DA” que, durante todo o processo jurídico, sempre frisou que, além da sua filha, o agressor também tinha de ser acompanhado e intervencionado. “Eu não estava à espera do desfecho de retirarem o agressor do ambiente familiar, de todo! Eu não estava à espera disso e nem queria tal coisa, agora também pedi ajuda para o miúdo. Tem de haver um processo que ajude os agressores, porque há agressores, e nunca defendendo que não o são só porque sim”, esclarece.

Maria ultrapassou a situação. Tem presente todos os dias a dor que sentiu durante os largos meses em que, em silêncio, não contou o que se passava. As novas amigas da escola sabem levemente o que a fez mudar e, enquanto filha mais velha, não deixa de estar atenta ao comportamento da irmã, como forma de prevenir um possível cenário de bullying. Rita, agora com nove anos, está ainda em processo. A mãe sabe que, embora ela lhe conte cada vez menos, os casos de “chacota” continuam, mas com uma frequência mais reduzida. Atualmente está no 4.º ano e pratica jiu-jitsu como ferramenta de confiança e de autodefesa. Ambas estão a ser acompanhadas. Trabalhadas. Porque, em tão tenra idade, alguém ousou ferir-lhes o ego e a personalidade.

 

PANDEMIA ALTEROU O PANORAMASegundo Luís Fernandes, os anos da pandemia vieram trazer à tona uma nova realidade e talvez isso justifique o aumento de casos que tem ocorrido desde então. Para o psicólogo do Agrupamento de Escolas de Vidigueira, assim como se deu a “passagem” de casos de bullying para o meio on line durante a pandemia, “o regresso à vida real levou a que miúdos que eram vítimas de cyberbullying passassem a ser também de bullying” e, por esse motivo, “o decréscimo que há em 2019/2020” e os sucessivos aumentos de 2020/2021 e 2021/2022.

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