Diário do Alentejo

Municípios obrigados a assumir competências da ação social desde abril

20 de maio 2023 - 09:00
Municípios consideram que verbas para ação social são insuficientes
Ilustração | Susa Monteiro/ ArquivoIlustração | Susa Monteiro/ Arquivo

Depois de dois adiamentos, a 3 de abril os municípios passaram a assumir, obrigatoriamente, competências no domínio da área social, assegurando um conjunto de serviços destinados a pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e exclusão social, beneficiários de Rendimento Social de Inserção e situações de emergência social. Ouvidas pelo “Diário do Alentejo”, algumas autarquias do distrito consideram que ainda é prematuro fazer um balanço do processo, no entanto, apontam “como aspetos a melhorar” as “verbas financeiras a serem transferidas para os municípios”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Desde o passado 3 de abril que a transferência de competências no domínio da ação social passou a ser obrigatória para todos os municípios, depois de o prazo ter sido prorrogado por duas vezes, a pedido das autarquias.

 

Esta é a 22.ª área descentralizada no âmbito do referido processo de transferência da administração central, iniciado em 2019, e que, a par da saúde, educação e cultura, envolve meios provenientes do Orçamento do Estado.

 

Entre outras competências, transfere-se para o município a responsabilidade pelo desenvolvimento de programas de promoção de conforto habitacional para pessoas idosas, pelo serviço de atendimento e de acompanhamento social, pela atribuição de prestações pecuniárias em situações de carência económica, pela celebração e acompanhamento dos contratos do Rendimento Social de Inserção (RSI) e pelo apoio à família para crianças que frequentam o ensino pré-escolar da rede pública.

 

Passadas cerca de sete semanas sobre o prazo definitivo, o presidente da Câmara Municipal de Cuba, um dos autarcas do distrito mais críticos do processo, diz que ainda “é prematuro” fazer um balanço, “porque se está numa fase muito embrionária”.

 

João Português sublinha, no entanto, que, “à partida, apesar do aumento do envelope financeiro” por parte do Governo – uma das maiores reivindicações dos autarcas –, “este reforço de verba é manifestamente insuficiente”.

 

“O envelope financeiro foi calculado com base em anos transatos, em que os apoios diversos tinham valores residuais”, esclarece, frisando que no contexto atual as “famílias sofrem uma grande pressão social, as preocupações e dificuldades são maiores”. “Aquilo que é pensado com base num ano, não é aquilo que é a realidade do ano seguinte. E se andarmos sempre com um ano de atraso relativamente àquilo que são as disponibilidades existentes em termos de respostas para as famílias, haverá sempre um hiato de tempo em que não teremos capacidade [para fazer face às necessidades]. Este é um ano atípico em termos de problemas sociais das famílias. Vamos ver…”, reforça, salientando que a assunção das novas competências obrigou a “um investimento forte do município na estrutura orgânica, nos recursos humanos” e nas próprias instalações da câmara, cuja reformulação ascendeu aos 20 mil euros.

 

De acordo com o mapa com os encargos anuais com as competências descentralizadas no domínio da ação social, publicado em “Diário da República” no passado dia 18 de abril, e que abarca acordos de atendimentos e acompanhamento social, protocolos de RSI, subsídios de caráter eventual, recursos humanos e instalações e funcionamento, a Câmara de Cuba deverá receber, em 2023, um montante total de 89 529,14 euros, dividido em nove parcelas mensais (referentes de abril a dezembro).

 

Até ao momento, diz João Português, a autarquia recebeu apenas 1700 euros.

 

O autarca critica, ainda, o facto de neste processo de transferência “existir o acompanhamento por parte de uma entidade” – o município –, e “a decisão, por exemplo, na atribuição do RSI, por parte de outra” – o centro distrital do Instituto de Segurança Social –, “o que, em termos de coordenação, não parece ser o mais indicado”.

 

João Português defende que “quem acompanha deve decidir”, pelo que considera que não se está perante “uma transferência de competências”. “Estamos a fazer um trabalho administrativo nas mais diversas áreas para outros serviços tomarem as decisões. Isto é uma transferência de tarefas administrativas e de encargos para as autarquias. Por exemplo, na área da educação, os diretores ainda se mantêm em funções, apesar de os recursos humanos serem da câmara. Na ação social é a mesma coisa. Temos os recursos, fazemos os processos, mas quem decide é a Segurança Social”.

 

VALORES ATUALIZADOS "CRIAM CONDIÇÕES" PARA OS MUNICÍPIOS ATUAREM

Já o vice-presidente da Câmara de Ferreira do Alentejo, autarquia que assumiu as competências no domínio da ação social em janeiro deste ano – “ainda estavam a decorrer as negociações entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP)” –, diz que, “aparentemente, com aquilo que neste momento o Governo se propõe transferir, foram criadas as condições para o município poder fazer o seu trabalho”.

 

“Estes valores [atualizados] criam condições para que os municípios possam assumir, de uma forma integral, aquilo que são agora as suas competências e permite também robustecer as suas equipas para responder aos desafios que temos pela frente”, considera o autarca, sublinhando que, “perante os novos desafios que têm a ver com a transformação económica, devido à chegada de pessoas estrangeiras”, não só ao concelho, como à região, que “são necessárias para dar resposta a todas as carências que as empresas têm de mão de obra”, é “importante” que os municípios tenham “a capacidade de responder, de uma forma positiva, a esses desafios”.

 

E ainda que também considere “que é muito cedo para fazer balanços”, José Guerra sublinha que os municípios “desde há muito tempo, pelo menos o de Ferreira, têm uma articulação muito direta com a Segurança Social e com os vários serviços que trabalham a inclusão social destas famílias”.

 

Frisa, no entanto, que a transferência implicou “uma adaptação ao nível dos sistemas de informação e procedimentos”, mas num processo “que tem sido pacífico”, existindo da parte da Segurança Social “uma disponibilidade muito grande para apoiar o processo”.

 

Do conjunto das competências descentralizadas, o vice-presidente diz mesmo que a ação social será, muito provavelmente, “uma daquelas” em que o município “está mais ou menos bem preparado”, precisamente por todo o trabalho que há muito vem sendo desenvolvido nesta área. Reforçando que “a última versão do protocolo” assinado entre o Governo e a ANMP “vai ao encontro das intenções” do município de Ferreira, José Guerra admite, contudo, “que a situação não seja igual em todos os concelhos”.

 

“Naturalmente que isto depende do contexto, de concelho para concelho, e acredito que a situação não seja igual em todos os territórios. No nosso caso, sentimos que se há competência em que, eventualmente, podia fazer sentido existir essa transferência, era na ação social, desde que ficassem criadas as condições do ponto de vista financeiro”.

 

Segundo o mapa de encargos publicado a 18 de abril, a Câmara de Ferreira do Alentejo deverá ser contemplada com um valor total de 257 360,11 euros no presente ano.

 

Paula Lampreia, vereadora na Câmara de Aljustrel, diz, por sua vez, que o balanço destas sete semanas, “para já, é positivo”, apontando, no entanto, “como aspetos a melhorar”, os valores “das verbas financeiras a ser transferidas para os municípios”.

 

“O município de Aljustrel considera que as transferências de competências têm de ser acompanhadas sempre dos respetivos envelopes financeiros. Acreditamos que, no decorrer deste processo, haverá lugar a ajustes”, diz a autarca, adiantando que a câmara deverá receber um total de 169 807,19 euros por ano. Até à data, recebeu 1943 euros, referentes aos apoios eventuais e ao valor afeto aos recursos humanos.

 

Segundo adianta a vereadora, com a transferência das novas competências a câmara necessitou “de alocar duas técnicas do seu gabinete de ação social para gerir os processos de atendimento de ação social e do RSI”, contratou, ainda, uma técnica de Serviço Social para a coordenação do Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social (SAAS) e do Núcleo Local de Inserção e, a fim de realizar “esse atendimento em condições dignas, e em respeito com a privacidade que estas situações exigem”, adquiriu um edifício, recorrendo a fundos municipais, “que, neste momento, está a ser alvo de uma intervenção”.

 

“Não colocámos, no entanto, em causa o orçamento municipal, nem os cofres da autarquia, uma vez que temos por princípio uma gestão acautelada e rigorosa. Acontece que foi a câmara que, numa primeira fase, teve de adiantar esta verba. Nem sempre os municípios têm esta possibilidade e capacidade financeira”, diz.

 

Paula Lampreia sublinha, ainda, que, apesar de a autarquia ter discordado “da forma como foi efetuado o processo de transferência das competências da ação social para os municípios”, assumiu “este compromisso com um grande sentido de responsabilidade”.

 

“Estamos totalmente empenhados em dar uma resposta de proximidade e de qualidade aos cidadãos. Queremos, no entanto, fazer mais do que dar um apoio ou prestar um serviço. Queremos fazer um acompanhamento integrado, indo ao encontro dos beneficiários e das famílias, fazendo uma intervenção de base e profunda, de modo a acautelar situações e ajudando à formação e estruturação familiar a todos os níveis. Queremos, acima de tudo, dar resposta às situações de maior vulnerabilidade, nomeadamente, através das novas competências mas em articulação com os programas que o município já tinha no terreno ou que venha a criar”, diz.

 

Até ao momento, foram acompanhados pelos serviços da câmara “96 processos de RSI e 12 de ação social, sendo que as solicitações são variadas, destacando-se o apoio ao emprego, o apoio económico para fazer face a despesas de subsistência, o apoio à habitação e o apoio à saúde, entre outros”, conclui.

 

 AUTONOMIA DO PODER LOCAL NÃO FOI RESPEITADA

“O município de Serpa aceitou a transferência de competências a 3 de abril de 2023, data limite imposta, já num quadro de reforço financeiro (de acordo com um aumento das verbas a transferir e após intervenção dos municípios através da ANMP) menos prejudicial para os municípios”, diz a vereadora Odete Borralho.

 

No entanto, sublinha, “o processo de transferência de competências não foi pensado, validado e concretizado com a participação dos municípios, no que teria sido o respeito pela autonomia do poder local”.

 

A autarca considera que “o reforço de recursos materiais, humanos e financeiros das entidades de intervenção e desenvolvimento social, saúde, emprego, educação, formação, forças de segurança e tribunais, entre outros, tem que ser levado a cabo, para que possamos, em conjunto, quebrar as situações de vulnerabilidade que ‘empurram’ os indivíduos para o recurso a estes mecanismos de apoio” e que “sem uma intervenção integrada e projetos que combatam o processo de desertificação e promovam o desenvolvimento económico deste território, continuaremos a perpetuar ciclos de pobreza e de exclusão social, que poderão afetar cada um de nós e a sociedade em geral”.

 

Atendendo à data em que a autarquia assumiu as novas competências, Odete Borralho diz que é “precoce avaliar as repercussões efetivas desta transferência” e salienta que as  competências “não se esgotam nos processos RSI, considerando que o SAAS é mais abrangente, nomeadamente, mediante apoios eventuais e pontuais e articulação com a rede social no sentido de, e acima de tudo, encontrar um projeto de inserção que autonomize progressivamente os respetivos titulares e restantes membros do agregado familiar”.

 

A autarca defende que “o efetivo combate à pobreza e à exclusão social não se restringe a apoios económicos e não deve ser o fim último da intervenção”.

 

É, “tão-somente”, acrescenta, “um meio para garantir formas de subsistência a quem está fragilizado e a quem o Estado deve apoiar na construção dum percurso de vida digno, combatendo, nomeadamente, ciclos perpetuados de pobreza, por vezes nas várias gerações familiares, e em territórios mais fragilizados, investindo em oportunidades de emprego e de formação, de entre outros tendentes à supressão das assimetrias regionais e num quadro de cooperação entre todos os agentes promotores do desenvolvimento e, consequentemente, de melhoria de vida das populações”.

 

Frisa, contudo, que “os municípios estão, sem sombra de dúvida, mais perto das pessoas e são mais conhecedores das realidades locais, ponto forte que pode, desde já, ser enunciado” no âmbito deste processo de transferências.

 

Odete Borralho considera, ainda, que “um aspeto que será necessário trabalhar é a comunicação aos munícipes sobre as competências de uma e outra entidade, para melhor informação e acompanhamento”.

 

No âmbito das novas competências, a autarquia “afetou três recursos humanos a tempo inteiro e dois a tempo parcial” e “foram criadas áreas físicas específicas para o funcionamento do SAAS e afetas viaturas para atendimentos deslocalizados nas freguesias”.

 

Foi ainda “necessária a reorganização e reforço da Divisão de Ação Social para assistência e funcionamento dos serviços que se debatem com novos desafios, nomeadamente, na área da habitação, sendo este um processo a monitorizar”.

 

Em 2023, adianta a vereadora, a câmara irá receber 241 036,85 euros, deduzidos os meses de janeiro a abril, sendo que, até ao momento, “foi recebida a transferência de 2194 euros, valor que só por si não garante as despesas com pessoal”.

 

Odete Borralho sublinha que “a adequabilidade do montante só será real quando decorrido um ano civil, após encontro de financiamento recebido/despesas realizadas”.

 

Ao “abrigo do SAAS”, acrescenta, até ao momento, “foram apoiados, sob a forma de apoio pecuniário, três agregados familiares e um indivíduo migrante”, com vista a “suprimir necessidades pontuais e urgentes, num total apurado de 424,95 euros”.

 

No que diz respeito aos processos familiares, já foram transferidos para o município 228, “aguardando os restantes, já ativos e na posse dos serviços locais de Segurança Social ou outros que venham a ser abertos já no atual contexto SAAS”.

 

ENCARGOS ANUAIS

De acordo com o despacho 4637/2023, de 18 de abril, que determina o reforço do Fundo de Financiamento da Descentralização no domínio da ação social, atualizando o 9817-A/2021, de 8 de outubro, a Câmara de Beja, que também assumiu as competências da ação social no dia 3 de abril último, irá receber, em 2023, 385 189,64 euros, respeitante a nove meses.

 

Até ao momento, adianta a autarquia, foram transferidos 54 360 euros.

 

No que diz respeito à despesa efetuada nestas sete semanas, refere “que ainda não é possível uma resposta efetiva, pois os serviços têm de contabilizar vários tipos de despesas: de manutenção, instalação, remodelação e outras”. Ainda segundo os dados disponibilizados, os novos serviços acompanharam, até ao momento, 401 processos de RSI e fizeram 160 atendimentos.

 

A Câmara de Almodôvar, que assumiu as novas competências a 1 de abril de 2022, recebeu, no ano passado, 20 136,67 euros, e, entre janeiro e abril deste ano, 7520. Em termos de despesas, gastou, até abril deste ano, 18 671,12 euros, “sem contabilizar os bens consumíveis”.

 

No mesmo período foram atendidos/acompanhados cerca de 170 agregados familiares. À semelhança de Almodôvar, também Ourique assumiu as competências da ação social em abril do ano passado.

 

Até ao momento, adianta a autarquia, recebeu 26 340,17 euros, correspondendo 19 359,17 euros a 2022 e 6981 euros a 2023. No âmbito das competências delegadas, tem 31 contratos ativos de RSI e 32 agregados com 98 elementos a serem apoiados no âmbito do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas.

 

Foram ainda efetuados três apoios económicos de caráter individual no valor de 2153,30 euros e realizados oito encaminhamentos para vagas na Estrutura Residencial Para Pessoas Idosas da Segurança Social. Em termos globais, em 2022, “realizaram-se 62 atendimentos de ação social e, em 2023, até 16 de maio, já ocorreram 59 interações”.

 

Já em Alvito, as novas competências foram assumidas a 1 de junho de 2022, sendo que, até ao momento, a autarquia recebeu 21 236,64 euros e gastou 2372,33 euros (não contabilizando o técnico). Ao todo foram apoiadas nove famílias.

 

Segundo o despacho de 18 de abril, Almodôvar deverá receber, em 2023, 234 508,30 euros; Alvito, 116 765,47 euros; e Ourique, 234 460,54 euros.

 

O “Diário do Alentejo” questionou, ainda, as câmaras de Barrancos, Castro Verde, Mértola, Moura, Odemira e Vidigueira, mas não obteve resposta até ao fim da presente edição.

Comentários