Diário do Alentejo

Mértola, a vila islâmica nos dias de hoje

14 de maio 2023 - 10:00
O Festival Islâmico de Mértola acontece de 18 a 21 de maio
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Em tempos, as ruas da vila alentejana de Mértola foram preenchidas com os aromas a chás e especiarias, levados através do rio Guadiana, e os típicos mercados islâmicos. Quem o diz são as escavações arqueológicas que, ao virar de cada esquina, deixam a descoberto mais um vestígio da época, clarificando o passado histórico das “gentes” que conduziram a vila até aos dias de hoje. O “Diário do Alentejo” foi conhecer o porquê da influência islâmica no concelho.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

O amarelo gasto das paredes, que contrasta com o vermelho das portas, também ele queimado do sol, fá-lo passar despercebido. Localizado no canto de uma das ruas sinuosas da vila de Mértola, o silêncio que emana não deixa curioso o turista que passeia lá fora. O seu interior em muito se assemelha com a fachada.

 

À entrada da sede do Campo Arqueológico de Mértola (CAM) empilham-se livros sobre os caminhos religiosos que envolvem a vila raiana, numa outra sala estão mesas redondas de debate e, entre um sobe e desce de escadas com vista para o Guadiana, uma outra mesa de cariz prático, onde minuciosamente se vai analisando algumas cerâmicas e ossos encontrados.

 

Entre uma peça e outra que mostra em cima da mesa, Virgílio Lopes, investigador e membro da direção do CAM, explica ao “Diário do Alentejo” a importância que, nas últimas quatro décadas, a instituição tem representado para o conhecimento aprofundado do passado local e, consequentemente, nacional.

 

“Por exemplo, nós fomos ensinados a pensar que sempre que se começou um período diferente  [da História]   tudo o que existia antes foi destruído, mas os estudos têm dito que existiu uma constante. Esta teoria de que os povos vinham e destruíam o que cá havia anteriormente tem sido posta em causa, porque em termos arqueológicos e antropológicos não temos esses registos”, realça.

 

E acrescenta: “A investigação que se faz há mais de 45 anos tem demonstrado que esta gente ficou, permaneceu, trouxe coisas, misturou-se e o que nós hoje somos é uma grande mistura de muitas coisas e de várias épocas”.

 

Por esse motivo, segundo o investigador de 57 anos, a variedade cultural que é apontada a Mértola, principalmente a descoberta das “ligações a um passado islâmico” foi, de forma natural, um simples “olhar para a história” que sempre existiu.

 

“A história da arqueologia faz-se em determinados tempos e houve alturas em que as escavações arqueológicas com níveis islâmicos medievais pura e simplesmente não interessavam. E isto aconteceu em toda a bacia do mediterrâneo, porque naquele tempo a metodologia era essa”, frisa.

 

Nádia Torres, professora e atual coordenadora intermunicipal do Plano de Artes, concorda: “O período islâmico foi sempre uma parte para esquecer, nunca interessou ao poder europeu todo o império islâmico, porque ao nível de toda a historiografia europeia e portuguesa o importante era chegar aos romanos. Mas na arqueologia para se chegar aos romanos destrói-se tudo o que está por cima e isso aconteceu em toda a Europa, em todo o norte de África, em todo o lado. Portanto, o período islâmico que está posterior ao período romano foi todo destruído”.

 

Foi necessário, e visionário na altura, alterar critérios quanto à importância de outros períodos históricos na arqueologia. Com o assumir de funções de Cláudio Torres, Borges Coelho e José Luís de Matos no CAM foi possível descobrir em Mértola “os restos de uma das segundas ou terceiras mesquitas que ainda existem em Portugal”, bem como “uma das maiores e melhores coleções de cerâmica islâmica que existe nesta bacia”.

 

“Por isso, quando se começou a valorizar o que se escavava [em Mértola], ligado ao período islâmico, e não havia nada do género a nível mundial, foi absolutamente único”, salienta.

 

Esta colocação de Mértola no “mapa da islamização” vem ajudar a marcar uma nova noção da época, desligando-a “do que nós aprendemos nas escolas primárias, onde a influência dos árabes estava apenas em algumas palavras começadas por ‘al’, algumas plantas e alguns sistemas de rega”.

 

A PREOCUPAÇÃO COM O PASSADO

Nos últimos anos, a contínua investigação que se tem feito nesse âmbito tem permitido colocar a vila de Mértola no mapa como um dos locais com maior influência islâmica, resultado também da crescente valorização atual.

 

Nádia Torres é um dos rostos que, através da sua joalharia, tem dado a conhecer esta “particular” ligação entre a vila alentejana e o passado islâmico.

 

“Na altura em que vim para cá e sendo impossível desligar-me de ser filha de quem sou, [o arqueólogo e investigador Cláudio Torres], foi evidente que vim com esse carimbo [da cultura islâmica] quer queira quer não e, portanto, na joalharia tenho uma das coleções exatamente inspirada nos desenhos islâmicos de Mértola”, explica.

 

Na sua ampla oficina, repleta de pequenas estantes de madeira preenchidas com anéis, brincos e colares de diferentes tamanhos e cores, a professora de 61 anos viaja por entre as suas recriações e peças originais.

 

Do lado direito da sala, com a luz do sol a iluminar, uma das vitrinas desdobra-se entre fíbulas com opala de Mértola, uma pedra característica da região e, no caso, lapidada da Mina de São Domingos, réplicas de brincos islâmicos de Mértola, anéis inspirados nos chefes berberes e mãos de Fátima [filha do profeta Maomé].

 

“A joalharia islâmica tem dois lados completamente distintos: um relacionado com o poder e outro relacionado com a proteção. Hoje, nós vemos as joias só no sentido de ficarmos lindos, mas isto é uma conceção do século XX, antes disso a finalidade era mostrar o poder das classes ricas. Mas o giro disso na comunidade islâmica é que temos imensas coisas relacionadas com a proteção. Nestes brincos, por exemplo, fui buscar a palavra ‘baraca’ que quer dizer bênção, que é muito utilizada também nas pinturas dos pratos islâmicos, e que está ligada à proteção”, revela.

 

Segundo a joalheira, à semelhança do que acontece hoje em dia com a “energia das pedras”, a comunidade islâmica atribuía um “poder” a determinada pedra, como “a pedra da lua contra o mau-olhado”, e, consequentemente, uma determinada proteção.

 

“Eu na minha joalharia também gosto desse saber do código/significado e, por isso, gosto de misturar o saber atual com o saber antigo para, no fundo, dar uma história a cada peça”, afirma.

 

Multimédia0Foto | Nádia Torres, professora e coordenadora intermunicipal do Plano de Artes

 

O PRESERVAR PARA O FUTURO

Nos últimos dias, o som do martelo e o cheiro a tinta fresca têm invadido o pacífico largo do Rossio do Carmo. Desde 2001 que, em anos ímpares, as ruas da “vila velha” são tomadas pelos cabedais, as djellabas [peça de roupa do norte de África], o incenso e pelo aroma a chá de menta e a especiarias que mantêm vivo o passado islâmico em Mértola.

 

“O Festival Islâmico de Mértola nasceu um bocadinho no seio do CAM, com aquela equipa toda que esteve a trabalhar, influenciada por aquilo que havia na museografia dos anos 80 quando começaram a aparecer uma série de mercados de rua. O projeto na altura meteu Espanha, Portugal e Marrocos [e o objetivo era] encontrar uma forma diferente de apresentar o produto que não fosse uma Disney”, relembra Manuel Passinhas, técnico de história e um dos responsáveis pela decoração arquitetónica do festival. 

 

Virgílio Lopes corrobora: “Não estamos a criar nada de artificial, não estamos a criar uma Disney. Primeiro estudou-se, investigou-se, tentou-se perceber um bocadinho estas influências e depois, com esta substância, criou-se um festival. Eu acho que a coisa aqui surgiu de uma forma natural com um percurso lógico na investigação que tínhamos vindo a fazer e que hoje continuamos a fazer”.

 

Assim, tanto para o investigador como para Manuel Passinhas, a conceção do Festival Islâmico de Mértola baseado no rigor arqueológico e na veracidade da História é o que o diferencia do “boom” de “festivais de música e de feiras” temáticas que têm surgido nos últimos anos.

 

“Hoje em dia não podíamos apostar no mesmo, não faria sentido Mértola estar a fazer um festival romano como está a fazer Beja. Aqui foi esta relação com a investigação, com o trabalho arqueológico e com o trabalho da criação dos museus que nos fez enveredar por esse caminho. Mértola também tem um passado romano importante e também foi relevante na Idade Média, mas não temos de andar a repetir modelos. O importante é criar novos modelos apetecíveis e que contribuam para este desenvolvimento sustentável”, lembra.

 

A crescente necessidade de valorização, principalmente pela importância do concelho enquanto “exemplo” nas escavações arqueológicas, fez com que se passasse a olhar para a temática como um ponto de interesse turístico e de memória futura.

 

“Além de uma centralidade e notoriedade associada à produção de conhecimento científico nesta temática (dimensão que é muito importante para Mértola dada a sua estratégia de consolidar o território como um polo de cultura e ciência), a valorização da cultura islâmica permite-nos o desenvolvimento de oferta turística cultural muslim-friendly, um nicho de mercado turístico em franca expansão e com grande potencial de retorno”, realça o presidente da câmara municipal, Mário Tomé.

 

Ainda assim, Virgílio Lopes relembra que apesar da importância económica e cultural que o festival carrega consigo, é cada vez mais importante “manter a visitação” fora desta época para que a vila “não seja só mais uma daquelas terrinhas bonitas para os turistas, mas que continue aqui a viver gente”.

 

Multimédia1Foto | Manuel Passinhas, técnico de história e um dos responsáveis pela decoração arquitetónica do festival

 

 

OBJETIVO É ALCANÇAR “UM PATAMAR DE EXCELÊNCIA”

Mértola recebe de 18 a 21 de maio o 12.º Festival Islâmico, transformando a vila, durante quatro dias, num verdadeiro souk a céu aberto.

 

Promovido pela câmara municipal, apresenta-se como um evento “híbrido” que visa “evocar o período histórico islâmico” através de apontamentos decorativos, mas sem se intitular como uma “reposição histórica”.

 

Segundo Manuel Passinhas, este é um festival que segue “uma linha de compromisso com as artes contemporâneas, por exemplo, porque não é só a música do Al-andaluz que interessa é também a mestiçagem [de tudo o que nos rodeia] ”.

 

Para já, na edição deste ano, Mário Tomé, presidente da autarquia, espera uma larga “participação de todos os seus intervenientes: expositores, empresários locais, artistas e entidades convidadas”, assim como “muito público”.

 

Por sua vez, quanto ao futuro, anseia que o Festival Islâmico de Mértola alcance “um patamar de excelência no panorama dos festivais nacionais e ibéricos” e uma “internacionalização enquanto evento que celebra o diálogo e a cidadania entre culturas”.

 

Do programa das festividades fazem parte múltiplas atividades abertas ao público – oficinas de dança oriental, de cante, de gastronomia, de chá ou de construção de instrumentos musicais – e a exibição de vários espetáculos.

 

Assim, no dia 18, apresenta-se no palco do castelo de Mértola, pelas 22:30 horas, o concerto inaugural Além Cabul, com a participação de músicos portugueses, do Afeganistão e dos Estados Undos da América, terminando a noite, no mesmo local, com o concerto de Nomad, previsto iniciar-se à meia-noite.

 

Sexta-feira, dia 19, é a vez do grupo Cus Cus Flamenco subir, às 21:30 horas, ao palco do castelo, apresentando-se depois, já de madrugada, às 02:00 horas, no palco do cais do Guadiana, o concerto de Olkan & La Vipére Rouge.

 

Sábado, dia 20, é a vez de se fazer ouvir em Mértola, a Orquestra Feminina Andalusí, que atuará no castelo, pelas 21:00 horas. No dia do encerramento, domingo, 21 de maio, é a vez do cante alentejano soar na vila, através das vozes de Pedro Mestre e dos Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, atuação que decorrerá no Pátio dos Sons, pelas 16:30 horas.

 

No mesmo dia, o espetáculo de encerramento do festival está marcado para as 19:00 horas, no largo Vasco da Gama.

 

O programa completo do festival poderá ser consultado através de merto.la/Programa-12FestivalIslamico.

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