A propósito da efeméride que pretende aumentar a consciencialização sobre a discriminação diária que acontece, mas também para celebrar as pessoas trans – quem são, quais os seus anseios, sonhos e contributos para a sociedade –, conhecemos o percurso de Amanda, uma jovem de 17 anos.
Texto Marco Monteiro Cândido
Quatro paredes que são um mundo. Um mundo cheio de sonhos dentro, embalados pelos sons rasgados e distorcidos de uma guitarra, ritmados pelas linhas de baixo e que ecoam através dos amplificadores. Amanda, de 17 anos, faz desse lugar o seu espaço de conforto, onde ganha coragem para enfrentar o mundo, com todas as dúvidas e medos que uma jovem de 17 anos sente. Que é normal uma jovem de 17 anos sentir.
É aqui, entre instrumentos musicais, e posters da saga “Star Wars” e da banda inglesa Queen, duas das suas paixões desde criança, que Amanda ensaia a pessoa que será para o mundo, a partir do seu espaço de conforto. É aqui que Amanda ensaia a Amy R., nome artístico que assumiu nos três concertos que já deu e em muitos mais que dará, ganhando balanço para a carreira musical que anseia ter.
Mas voltemos, por momentos, a Amanda. E à música, sempre a música, na vida de Amanda. “A música foi, e ainda é, aquilo que me permite lidar com os meus próprios sentimentos e com as coisas que acontecem na vida. A música está sempre lá para me fazer sentir melhor (…) e é bastante importante para a minha autoexpressão”. Amanda expressa-se através da música e é através dela que se torna Amy R., alguém que “tem muito mais confiança em si mesma e não se preocupa tanto com o que os outros pensam”.
A confiança que Amy tem enquanto toca, enquanto se embrenha nos sons que emanam da guitarra, também Amanda tem, mesmo que não o saiba, mesmo que julgue não ter. Nos finais de 2019, a 19 de dezembro, Amanda ainda não era Amanda. E não era ainda uma rapariga. Pelo menos oficialmente, porque já o sentia, já o era, de facto, há muito. Foi nesse dia, pela primeira vez, que ganhou coragem, inspirou fundo e exteriorizou o que sabia há quase uma vida. O que sentia há muito. O que era há muito. Pelo menos desde os 10, 11 anos.
Apesar de ter nascido rapaz, há muito que sentia não ser esse o seu género. Sentia-se rapariga, mulher. Era-o. Sem mais, nem menos. A 19 de dezembro de 2019 enviou uma mensagem à mãe, Alexandra, partilhando o que era impossível guardar para ela.
“Finalmente tive a coragem de dizer aos meus pais. Mandei uma mensagem à minha mãe e não correu bem. Logo, logo até parecia que ela estava a aceitar, mas, na realidade, pensava que eu estava a fazer uma piada”.
Amanda nasceu em 2005. Uma criança ansiada, um rapaz desejado. Nesse momento, Alexandra Freire, a mãe, deu à luz a criança, o filho que sempre quis, que sempre desejou. Por essa altura, e nos anos que se seguiram, Amanda não se chamava Amanda. O nome, de menino primeiro e rapaz depois, não lhe assentava no ser. Amanda já era Amanda, se bem que não tivesse esse nome. Se bem que, socialmente, para os outros, não fosse uma rapariga. Mas Amanda, que tinha outro nome, já o era. Porque sempre foi a pessoa que é hoje. Apesar de a conhecerem por outro nome, com outro género.
“Foi por volta dos 10, 11, 12 anos, quando começou a puberdade, que eu comecei, de certa forma, a sentir que algo não estava certo, a sentir-me desconfortável com o meu género e com o meu corpo, com a maneira como era tratada. E eu, como sempre costumei fazer, guardei isso para mim mesma e não falei sobre o assunto com ninguém. Até aos 14 anos, quando tive a coragem de admitir para mim mesma. Depois de anos a procurar e a pesquisar, a encontrar informação, finalmente consegui admitir: ‘eu sou trans. Eu sou uma mulher’. E depois a pergunta foi: ‘e agora? O que é que eu faço com isto?’”.
“TODOS FECHADOS EM CASA E ELA FECHADA NO ARMÁRIO, DENTRO DE CASA…”
Alexandra, a mãe, recorda, como se fosse hoje, o dia em que Amanda falou com ela pela primeira vez, como Amanda. “Ela fez uma primeira abordagem ao assunto, que eu não levei a sério”. As mensagens de texto caíam no telemóvel. Alexandra em casa, com o marido e pai de Amanda, Rui Revez. A filha, no cinema, com amigos. Pelo meio, o fio invisível do vaivém de mensagens ligava-os, pela primeira vez, para um novo mundo que viria e que não adivinhavam.
“Como tenho muito sentido de humor, pensei: ‘olha, mais uma das suas brincadeiras’. Mostrei ao Rui. Ele ficou logo um bocadinho de pé atrás. Respondi à minha filha: ‘deixa-te de parvoíces e vem mas é para casa, Amy’. Quando ela chegou, e agora percebo, mas na altura não, disse-me assim: ‘tu surpreendeste-me’. ‘Então?’, perguntei. ‘Porque me trataste pelo nome que eu pedi’”. Alexandra pensou que seria brincadeira. Mandou a filha deitar-se e não valorizou. O marido ficou mais apreensivo. E a pensar na conversa.
A primeira tentativa de Amanda, nessa altura ainda G. [Amanda não verbaliza o seu antigo nome de rapaz, o dead name – nome morto –, como é referido o nome que a pessoa trans altera], ficou por aí. E o tempo passou.
O ano seguinte chegou e com ele a pandemia de covid-19. Amanda tinha tentado sair do armário. Não conseguiu. A mãe não aceitou e voltou para dentro do armário durante sete meses, só voltando a tocar no assunto com os pais em julho de 2020.
“Foi horrível. Foram os sete meses mais dolorosos da minha vida porque eu já sabia, já tinha a certeza do que era, mas não tinha a liberdade de o expressar, mesmo dentro de casa. Fora de casa, mesmo que os meus pais tivessem aceitado logo, não teria saído do armário. Mas o não poder ser eu mesma dentro de casa era sufocante. Depois, em julho, falei com eles outra vez e aí já me levaram a sério”.
Alexandra, à distância de três anos, relembra bem o passado feito presente. “Ela tentou sair do armário e eu empurrei-a novamente para o armário. Depois a covid empurrou-nos todos para dentro de casa”.
Ana Silva é psicóloga e trabalha com a Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, cuja representante no Baixo Alentejo é, precisamente, Alexandra Freire, a mãe de Amanda. Autora de três guias direcionados para a família e comunidade sobre orientação sexual e identidade de género editados pela Amplos (ver caixa), Ana Silva sublinha o papel fundamental da rede de suporte da pessoa trans, família e amigos. No entanto, nem sempre é fácil, nem os mais próximos estão sensibilizados para tal.
“As pessoas não se apercebem porque toda a sociedade está estruturada para que as pessoas tenham uma conformidade entre o seu corpo, o seu sexo biológico e o seu género. E isso é algo inquestionável, por isso é que o género é uma construção social. Está tão enraizado na nossa sociedade que as crianças ainda nem nasceram já se está a fazer uma ecografia, a definir toda uma vida por aí a fora. Tudo em função de um sexo biológico, que depois pode estar em conformidade ou não com a identidade de género. Mas isso nunca se questiona, sendo que é um dado adquirido para todas as pessoas”.
A descrição de Ana Silva encaixa na vida de Amanda. O primeiro impacto para os mais próximos, fruto de “algumas manifestações de comportamento ou de expressão de género diversa”, poderá levar a que pensem em questões de orientação sexual: “Se calhar vamos ter um rapaz gay ou uma rapariga lésbica, mas nunca uma pessoa trans. Nunca se questionam sobre isto”. Se esta é a primeira e mais comum reação, a segunda também deve ser regra.
“Quando as famílias são confrontadas com a realidade, de repente ficam sem chão. Mas depois o amor tem de falar mais alto, são os seus filhos e filhas, e, independentemente de tudo o que possa acontecer, são as pessoas que mais amam na vida. E é isso que têm que deixar bem claro para aquele filho ou para aquela filha. Não interessa o nome, o género, não interessa nada”.
E, continua, até porque na altura da puberdade e da adolescência, com todo o turbilhão emocional e hormonal, e ainda mais sem o devido apoio, pode surgir “sintomatologia ansiosa, depressiva, os comportamentos autolesivos e mesmo a ideação suicida”.
“Há muitos medos que as famílias têm do preconceito social, de todo o tipo de violência que pode afetar a vida dos filhos e filhas, e muitas vezes acabam por evitar, rejeitar e colocar alguns entraves para ver se a situação não evolui. Às vezes não é por outro motivo qualquer, é porque têm medo do que vai acontecer com aquele filho ou aquela filha. Depois não adianta nada, porque ou a pessoa se anula completamente e vai viver toda a vida num papel que não é o seu; ou, então, se quer mesmo viver a sua vida e definir o seu papel, vai ter que lidar com os medos, empoderando-se e ter acesso a informação que, de alguma forma, a vai ajudar a ultrapassar as dificuldades”. E foi isso que aconteceu na vida de Amanda, como refere o seu pai, Rui. “A grande bagagem que nos fez dar a volta a isto é o amor”.
O VERÃO DEPOIS DO INVERNO
Muito antes de fazer o coming out (processo de afirmação de identidade de género, o equivalente à expressão “sair do armário”) junto dos seus pais, Amanda começou por fazê-lo junto dos seus amigos mais próximos. Ainda antes da primeira tentativa, em casa, no final de 2019.
2020 foi avançando. A lentidão sufocante dos dias que demoravam a passar, uns após os outros, em casa, foram dolorosos para Amanda. Até que chegou o verão desse ano e com ele o seu aniversário. Alexandra recorda bem esses dias. De férias no Algarve, a filha queria voltar para Beja, passar o dia de aniversário na sua cidade de sempre. Ainda no Algarve, as mensagens voltaram. Amanda na casa de férias. Os pais na praia. Entre eles, novamente o fio invisível do vaivém de mensagens que os ligava, pela segunda vez, a um novo mundo que viria e que não adivinhavam.
O caminho entre a praia e a casa parecia longo, mesmo que se encurtasse a cada passo, a cada mensagem trocada. Os mundos de Amanda, Alexandra e Rui aproximavam-se cada vez mais, mesmo que ainda não o soubessem. “Fizemos o caminho da praia até casa a ler as mensagens e a pensar: quando chegarmos o que é que vai acontecer? Chegámos e perguntei-lhe que conversa era aquela”.
A resposta de Amanda não se fez esperar, saindo em catadupa, depois de uma vida em que não o expressou, depois de sete meses em que tinha cada vez mais dificuldade em guardar para si o seu verdadeiro eu.
“Ela respondeu-me que da outra vez eu não a tinha levado a sério, porque ela sentia que não era um rapaz, mas sim uma rapariga. Começou a discussão outra vez. ‘Porquê?’, perguntei eu. E depois disse aquela frase que hoje sei que não se deve dizer: ‘oh pá, deixa-te de parvoíces. Isso é uma fase!’. Desvalorizei por completo o que a minha filha estava a sentir. Mas não posso voltar atrás”.
Rui, o pai, refere que nesse momento assumiram todos um compromisso em que os três iriam procurar ajuda especializada. Acabaram por chegar à Amplos, como recorda Alexandra. “A Amplos foi uma grande ajuda, porque a minha história era a de todos aqueles pais. Cheios de perguntas, de dúvidas, de confusões. Se calhar não teria conseguido chegar a este ponto em que estou se não tivesse sido a ajuda de toda aquela família que foi crescendo. Eu quando cheguei ali, muitos já tinham passado por aquilo que eu estava a começar a passar. Já tinham vivido aquilo, já tinham ultrapassado aquela fase, já me ouviram e aconselharam de outra maneira. Nunca mais larguei ao ponto de hoje abraçar a Amplos Baixo Alentejo”.
Também Amanda recorda bem esse verão de 2020. “Na primeira vez fiz o coming out, eles não aceitaram e eu desisti. Na segunda vez, bati o pé no chão e disse: ‘eu vou fazer isto e se vocês não me aceitam, problema vosso’. Uma pessoa diz uma coisa dessas, eles começam a pensar mais no assunto e acabaram por aceitar, eventualmente”.
AS DIFICULDADES DAS PESSOAS TRANS
A psicóloga da Amplos refere dois grandes aspetos da vida das pessoas trans em que as dificuldades são mais notórias e vincadas: as questões de saúde e o acesso ao mercado de trabalho. Se, por um lado, “ainda são poucos os hospitais que têm consulta especializada e, para além de terem que fazer grandes deslocações, ficam imenso tempo à espera porque não há muitos recursos”, por outro, “o acesso ao trabalho é vedado ou (…) acaba sempre por ser de uma forma em que acabam por estar escondidas do público (…) como se, de alguma forma, a existência daquelas pessoas pudesse ser ofensiva para os clientes dos estabelecimentos”.
No entanto, Ana Silva considera que, a montante dessas questões, a “inclusão em meio escolar” é um dos grandes problemas também. “O meio escolar não é um meio inclusivo, não é um meio protetor para estas pessoas. Existe muita descriminação dentro das escolas”.
Serem vítimas de bullying, ofendidas pelos seus pares, alunos, e adultos, com o pessoal docente e não-docente a terem, muitas vezes, “atitudes erradas e comentários transfóbicos”, contribui para uma grande taxa de absentismo e abandono escolar precoce.
Segundo o “Estudo nacional sobre necessidades das pessoas Lgbti e sobre a discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais”, apresentado em abril do ano passado, “dentro da sigla Lgbti+, as pessoas trans – e, sobretudo, as mulheres trans – foram identificadas como as mais discriminadas, por força da conjugação do sexismo com o cisgenderismo”, o que poderá ter origem nos fenómenos de bullying em idades mais precoces. Luís Fernandes, psicólogo e especialista em questões de bullying e ciberbullying, considera que a definição de um novo tipo de comportamentos agressivos, repetidos e intencionais realizados entre pares, designado por bullying homofóbico ou transfóbico, tendo por base a identidade, a orientação ou até a suposta orientação sexual de um adolescente, “pode ser um estágio inicial, a ‘porta de entrada’, para comportamentos de discriminação, humilhação ou até de agressão”.
Em regiões do interior, como o Alentejo, Luís Fernandes refere que, “até por uma forte carga cultural, continuamos a olhar para estas questões dos adolescentes e adultos transgéneros como algo que ‘apenas acontece aos outros’ ou como uma ‘moda’ ou até como atos de rebeldia”.
“Já acompanhei algumas situações em que os pais e mães não aceitavam a ‘nova situação’ dos filhos, tendo muita dificuldade em lidar com a realidade, muita vergonha (…), quase como sentirem que ter um filho trans é algo que fere de morte as suas competências parentais… Escutar pais e mães a perguntarem ‘em que é que falhámos?’ continua, infelizmente, a ser uma realidade e não apenas na nossa região”.
Para Ana Silva, a questão do preconceito não é, forçosamente, maior em regiões do interior ou menos urbanas. “Não há uma norma, isso depende muito mais da educação, das construções, da própria família ou dos meios, mais conservadores. Às vezes temos um meio que, por si, de forma alargada parece mais conservador e depois as coisas correm muito bem. E outras situações em que não é assim”.
E prossegue, dando o exemplo de Amanda e da sua escola, em Beja: “Há escolas em Lisboa que põem imensos entraves e a escola de Beja quis saber o que tinha de fazer para acolher bem a Amanda. Quem dera a muitos alunos de escolas em Lisboa encontrar uma escola que os cuidasse e preocupasse tanto com eles como a escola em Beja se preocupou com a Amanda”.
O COMING OUT DE AMANDA
O plano de Amanda e dos seus pais seria fazer o coming out depois de terminar o ensino secundário, eventualmente, já fora de Beja. Em 2021, no início do terceiro período escolar do 10.º ano, um colega descobriu que Amanda era trans e contou a toda a gente na escola. O que seria um contratempo no plano estabelecido acabou por ser algo bom.
“Não foi mau, porque ninguém reagiu de forma negativa, sem ser esse tal colega, e até acabou por ser uma coisa positiva porque convenci os meus pais a sair do armário logo publicamente”. Caso contrário, Amanda estaria, ainda hoje, seguindo o que tinha sido estabelecido, a viver publicamente como um rapaz adolescente.
“Eu não sei se ainda conseguia estar a viver como homem. Teria sido muito, muito difícil. Consegui fazer o coming out na escola, falámos com os professores, os professores falaram com os meus colegas e foi assim [estala os dedos]: começaram a tratar-me por Amanda e fui bastante bem recebida pelos meus colegas”.
Depois de julho de 2021, quando fez 16 anos, Amanda começou a ter consultas de endocrinologia para começar o tratamento hormonal em novembro do mesmo ano. Um processo “extremamente lento”, mais do que devia, nas suas palavras. Também depois de fazer os 16 anos, mudou os documentos legais, oficializando a mudança de género. Um momento particularmente duro para Amanda na conservatória do registo civil. Sentiu “a sua própria existência a ser julgada”. “A ver se eu sou trans o suficiente para poder mudar de nome”.
Desse momento para cá, a jovem mudou o seu objetivo de vida. Já não quer sair de Beja. Quer que seja “a sua base de comando”. Para isso contribuiu o facto de “ter saído do armário”, mas também, ao longo deste tempo, não ter sentido qualquer tipo de preconceito na pele. Os olhares, quando os sente, são fora de Beja, onde nunca os sentiu. E mesmo quando os sente, consegue perceber se se devem ao seu estilo alternativo ou à perceção de que é uma rapariga trans.
“Não aconteceu uma única vez uma pessoa olhar para mim dessa forma em Beja. E não sei dizer porquê. É quase um mistério. Tanto que a conversa [de sair do armário quando saísse de Beja] era um bocado com esse receio. De me tratarem mal aqui na cidade, por ser um meio pequeno, em que se tem a ideia que as pessoas são mais retrógradas e que aceitam menos coisas diferentes. Foi o oposto. Ainda bem”.
Quarenta anos antes de Amanda conseguir expressar como se sentia, numa aldeia do distrito de Beja, em 1980, Marisol (nome fictício) fazia algo completamente invulgar para os costumes da época e, principalmente, no interior do País. Aos 23 muda oficialmente de género e de nome. No tribunal de Beja, em junho desse ano, três juízes para validar a pretensão: “Eram juízes de Beja, Évora e Lisboa. Assim que entrei, viram que eu era uma senhora e não precisaram de mais nada”.
Se o processo de mudança de género pressupôs a ida a tribunal, já antes Marisol tinha sido sujeita a uma “visita medical”: teve que ser examinada por um médico, que não teve dúvidas de que era alguém do sexo feminino que tinha à sua frente.
“Desde pequena que eu sentia que não estava bem, que estava no corpo errado. E se tivesse que fazer tudo novamente, fazia-o”. Tendo nascido no final da década de Cinquenta do século passado, num meio predominantemente rural, Marisol reconhece que teve uma família que sempre a apoiou e aceitou. E relembra o momento em que voltou à sua terra como mulher, um momento digno de Elizabeth Taylor no filme “Cleópatra”, quando foi do Egito para Roma.
“Levantou-se a aldeia toda em alvoroço. Foi uma coisa extraordinária. Mas sempre com um grande respeito por mim”. Apesar de o preconceito ser muito mais vincado do que hoje.
Marisol viveu em Paris, Genebra e Zurique. Trabalhou como cabeleireira, no teatro e sempre com a música como companheira. Adora Edith Piaf e, tal como ela, “ne regrette rien”, ou seja, não se arrepende de nada.
“Nos dias de hoje, é mais fácil. Há muitas pessoas que não vão até ao fim (…), portanto não pode ser igual. Até porque, se entrarem num centro de saúde ou num hospital, em que precisam de alguma coisa, com o nome de mulher, mas depois… Para mim não faz sentido. Coragem tive eu, na minha época. Até porque as mudanças de papéis foram um problema. Até a viajar era complicado. Antes da ida a tribunal, quando me pediam o passaporte diziam: a senhora enganou-se no passaporte. Mas não, era meu. E era eu”.
O FUTURO
Amanda tem um acordo com os seus pais: só poderá mudar os instrumentos para uma divisão maior se acabar o secundário. E dar asas ao seu alter-ego musical, Amy R., para lançar um CD de instrumentais originais em breve.
Por agora, na pequena divisão de paredes brancas, no pequeno quarto transformado em mundo e sonhos de uma jovem de 17 anos, com posters a decorar e legos da saga “Star Wars”, os dias são mais leves. “Já não tenho aquele peso enorme de estar presa a ser uma pessoa que não sou, fingir que sou quem não sou. Tive algum tempo em que isso aconteceu, mas saí do armário e hoje em dia estou livre”.
Mesmo sem se conhecerem, e com cerca de 60 anos a separá-las, Marisol e Amanda têm muito mais em comum do que imaginam. Se uma sonha com os palcos que pisou outrora, a outra sonha acordada com os palcos que pisará.
GUIAS PARA ESCLARECER AS FAMÍLIAS E A COMUNIDADE
Segundo o Guia para Famílias de Pessoas Trans*, editado pela Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, trans* “é um termo inclusivo (abreviatura de transgénero), que engloba todas as identidades e/ou expressões de género que não coincidem com o sexo atribuído à nascença. Inclui pessoas que se identificam como transexuais, transgénero, de género fluido [identidade e/ou expressão de género que é variável, podendo essa variação ocorrer no quotidiano ou em diferentes fases da vida] não binárias [não se enquadram no binómio masculino/feminino, tal como as suas atrações emocionais, sensuais ou sexuais, não se enquadrando na definição de homossexualidade ou heterossexualidade] entre outras”.
A autora do guia e psicóloga, Ana Silva, sublinha que “trans* é um termo guarda-chuva que dá abrigo a muitas e variadas questões de identidade de género. As pessoas transgénero têm determinadas características, e as pessoas transsexuais têm outras, estando todas debaixo do termo guarda-chuva.
Se dissermos transgénero estamos a excluir as pessoas que fazem tratamentos médicos, porque os transgéneros não os fazem. Muitas vezes basta que tenham determinado nome, que vistam a roupa que bem entendem e não precisam de fazer qualquer tratamento, nem hormonal, nem cirúrgico. As pessoas transexuais são as que fazem tratamentos médicos de adequação do seu corpo ao seu género. Dependendo de cada pessoa, pode fazer os tratamentos que quiser, hormonal e/ou cirúrgico.
Assim, no transexual coloca-se a tónica na questão dos tratamentos médicos, em que quase colocamos as pessoas a achar que para serem um homem ou uma mulher verdadeiros terão que fazer todos os tratamentos e cirurgias, quando isso já não faz sentido, nem sequer a lei obriga. E ainda há as não binárias, que entram na designação de trans, mas não são transexuais, nem trangéneros”.
Ana Silva é também autora do Guia para Intervenientes na Ação Comunitária e na Comunidade Escolar sobre Orientação Sexual e Identidade de Género e do Guia para Famílias de Pessoas LGB+, editados, igualmente, pela Amplos.