Diário do Alentejo

Diocese de Beja acrescenta mais quatro casos de abuso sexual de menores aos cinco identificados pela Comissão Independente

18 de março 2023 - 09:00
Os cinco suspeitos de abuso sexual na diocese de Beja, quatro sacerdotes e um leigo, já faleceram
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Quatro sacerdotes e um leigo suspeitos de abuso sexual na diocese de Beja, sinalizados pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja em Portugal, já faleceram. A estes cinco, mencionados no relatório final da comissão apresentado a 13 de fevereiro, acrescem outros quatro que o bispo de Beja identificou com base em informação do arquivo diocesano e que deu a conhecer à comissão independente, por escrito, em outubro de 2022. Segundo um comunicado enviado por D. João Marcos ao “Diário do Alentejo”, “não existe qualquer denúncia, tenha ela sido comunicada ou esteja em arquivo na diocese de Beja, que não tenha merecido o devido seguimento, nem tampouco existe qualquer caso atual que aguarde ação da diocese de Beja”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Os cinco suspeitos de abusos sexuais de menores, quatro sacerdotes e um leigo, cujos nomes constam da lista enviada pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja em Portugal ao bispo de Beja, já faleceram, revelou D. João Marcos ao “Diário do Alentejo”.

 

De acordo com um comunicado entretanto enviado pelo prelado ao “DA”, o primeiro caso remonta a 1963 e “diz respeito a um sacerdote que viveu na cidade de Beja e que, na sequência do ocorrido, deixou a diocese”.

 

O segundo refere-se a uma situação que terá acontecido “na segunda metade da década de Sessenta, em 67-68, e está relacionada, igualmente, com um sacerdote que tinha responsabilidades na educação de crianças”.

 

O terceiro nome surge “numa situação bastante vaga” e diz respeito “a um leigo que exercia funções de sacristão na cidade de Moura ou numa freguesia deste concelho”. O quarto, que se apresenta, também, “numa situação algo vaga”, refere-se ao ano de 1978 e “está relacionado com um sacerdote de Serpa ou de uma freguesia do mesmo concelho”.

 

Por fim, o quinto diz respeito “a uma situação ocorrida nos inícios da década de 80, em Mértola, e trata-se de um sacerdote que ali se encontrava, mas não era o pároco da vila”.

 

No mesmo documento, é sublinhado que “nenhuma destas situações consta dos arquivos da diocese ou foi de alguma forma denunciada junto da mesma, sendo que, através do relatório enviado [pela comissão independente]” não foi possível “apurar os factos e contornos das denúncias”. Porém, reforça, pode afirmar-se “que os agora denunciados já faleceram”. Assim, “é de todo impossível e ineficaz fazer quaisquer diligências de investigação. Todavia, manifestamos o nosso compromisso, zelo e empenho em prestar o apoio necessário a qualquer vítima que pudermos identificar”, acrescenta o comunicado.

 

Recorde-se que segundo o relatório final, apresentado no dia 13 de fevereiro pela comissão independente que foi criada por decisão da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), foram validados 512 testemunhos a nível nacional.

 

A comissão aponta, por extrapolação, tendo em conta os testemunhos, para um número mínimo de vítimas na ordem das 4815. Dos 512 casos, só 25 foram enviados para o Ministério Público, porque a maioria já prescreveu. O mesmo documento indica que as cinco vítimas referentes ao distrito de Beja residem, atualmente, nos concelhos de Beja, Serpa, Moura, Odemira e Santiago do Cacém.

 

MAIS QUATRO CASOS IDENTIFICADOS PELA DIOCESE

A estes cinco casos da diocese de Beja mencionados no relatório final acrescem quatro que D. João Marcos identificou com base em informação do arquivo diocesano, denunciados entre os anos 2001 e 2020, e que deu a conhecer à comissão independente, por escrito, em outubro de 2022, conforme o “Diário do Alentejo” já tinha noticiado.

 

Segundo refere o comunicado, “todos, sem exceção, mereceram o devido e obrigatório encaminhamento, tanto civil como canónico, com um decurso normal e necessário quanto às diligências de investigação e probatórias”.

 

Desses quatro, “o primeiro é de 2001, foi tornado público e bastante comentado nos jornais da época por envolver um sacerdote e uma jovem de 17 anos”. O processo seguiu para Roma e a sentença “foi a sua demissão do estado clerical”.

 

O segundo “tratou-se de uma acusação a um sacerdote que estaria a perseguir um menor”. O assunto foi tratado em tribunal e “a sentença foi a absolvição da pessoa em causa”. O terceiro diz respeito “a uma denúncia anónima que a diocese de Beja recebeu diretamente do Dicastério da Doutrina da Fé”. O “assunto foi investigado internamente e entregue à Polícia Judiciária e, posteriormente, arquivado por falta de provas”.

 

O último caso reporta-se a 2020 e “está relacionado com um leigo em formação para o sacerdócio, que foi denunciado por assédio sexual”. O suspeito “foi expulso do Seminário e o assunto foi entregue às autoridades civis e julgado no Tribunal da Comarca de Beja, aguardando-se a sentença”.

 

No comunicado enviado pelo prelado é reforçado que “não existe qualquer denúncia, tenha ela sido comunicada ou esteja em arquivo na diocese de Beja, que não tenha merecido o devido seguimento, nem tampouco existe qualquer caso atual que aguarde ação da diocese de Beja” e que a diocese continuará o seu “compromisso sério em colaborar com as autoridades civis e eclesiásticas, na transparência e rigor das nossas práticas, tratando com imparcialidade e firmeza eventuais situações de abuso, sexuais ou quaisquer outros, e a trabalhar em conjunto com todos os que servem o bem comum nas nossas comunidades, sobretudo junto dos mais novos”.

 

COMISSÃO DIOCESANA DE BEJA VAI SER RESTRUTURADA

Na terça-feira, na sequência do que foi proposto pela CEP, de afastar todos os membros do clero das comissões diocesanas para que as vítimas se sintam mais confortáveis para apresentar as suas denúncias, o bispo de Beja, em conjunto com a Comissão Diocesana de Beja para a Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, decidiu restruturar a referida comissão, retirando o presbítero e integrando um médico, que se juntará, assim, aos dois elementos que se mantêm – uma advogada e uma técnica superior de serviço social, ambas envolvidas em comissões de proteção de menores civis.

 

Está previsto ainda, adianta D. João Marcos ao “DA”, a inclusão de outros profissionais, nomeadamente, da área da psicologia.

 

“As comissões diocesanas foram pensadas para ajudar as vítimas, a falarem com confiança, e se está um padre, neste contexto em que estamos a viver, é prudente substituí-lo”, diz o bispo, acrescentando que a “diocese, sendo tão extensa, precisava, também, de uma comissão diocesana com mais elementos, para funcionar melhor, não que tenha funcionado mal até agora, pelo contrário”.

 

"NÃO HÁ LUGAR NA IGREJA PARA PADRES ABUSADORES"

Entretanto, na sexta-feira passada, dia 10, D. João Marcos, num comunicado enviado à agência Ecclesia, diz que, por “desacerto no modo e na oportunidade do que disse” no passado dia 7, durante uma entrevista a uma televisão portuguesa, deu a entender que subestima “a enorme gravidade dos abusos sexuais de menores e que o perdão de Deus permite ao abusador retomar a sua vida normal como se nada tivesse acontecido”.

 

“De nenhum modo é esse o meu pensamento. Compreendo a deceção que provoquei dentro e fora da Igreja e a todos peço perdão”.

 

Na véspera da emissão do comunicado, em declarações ao “Diário do Alentejo”, o bispo de Beja já tinha referido que as suas recentes declarações a um órgão de comunicação social nacional sobre o perdão a padres abusadores de menores na Igreja Católica, e que originaram polémica, não foram devidamente interpretadas.

 

João Marcos garantiu que não era sua intenção passar a mensagem do perdão “como uma capa que se põe por cima de tudo”. “Não era isso que eu estava a dizer, peço desculpa porque a minha comunicação também não foi clara”, afirmou, sublinhando que “há aqui dois níveis”: “O nível da justiça, e aí estou inteiramente de acordo com o que o papa Francisco diz, ou seja, tolerância zero. Não deve haver lugar na Igreja para padres abusadores, porque é a negação clara do ministério da Igreja, daquilo que a Igreja faz e continua a fazer, portanto, nesse sentido, tolerância zero em relação aos padres abusadores”. Mas, por outro lado, adiantou, “também é necessário, depois, pensar que somos pecadores, mas que somos pecadores chamados à conversão, portanto, a ser santos, e tirar isso da Igreja é a Igreja negar-se a si mesma”.

 

Ou seja, “devem ser castigados e perdoados caso mostrem arrependimento”, reforçou, sublinhando, no entanto, “que as vítimas são o centro das atenções de tudo isto”. “Não podemos desvalorizar o sofrimento destas pessoas que ficaram marcadas para toda a vida por esses atos”.

 

Quanto à suspensão de padres suspeitos de abusos, uma questão sobre a qual também não existe consenso na Igreja, D. João Marcos considera que “é prudente” suspender preventivamente os suspeitos e frisa que na Província Eclesiástica de Évora, que inclui as dioceses de Évora, Beja e Algarve, os bispos estão “de acordo em relação aos procedimentos que devem ter em relação aos padres que forem marcadamente acusados por práticas pedófilas”.

 

O bispo de Beja sublinha, no entanto, que também é necessário defender “o bom nome das pessoas, pelo menos enquanto as coisas não ficarem claras”. “Tive aqui alguns casos desse género, algumas acusações que são muito duvidosas. Das investigações que fizemos, muitas vezes ficávamos na dúvida”, acrescenta.

 

Questionado quanto às medidas de prevenção que deverão ser adotadas a fim de evitar casos futuros, o prelado é de opinião que “é um trabalho para toda a diocese, para os pais dos menores, para os catequistas, para os padres, para todos”.

 

Citado recentemente pelo jornal “Público”, o arcebispo de Évora revelou que os bispos do Sul irão dar início, em abril, “a um trabalho na arquidiocese de Évora, que será um projeto de segurança elaborado por peritos, com procedimentos, com formação, sobre como as paróquias, catequeses, movimentos, congregações, devem atuar. Será um guia de procedimentos com que a arquidiocese de Évora se vai comprometer”. “Nós não podemos estar em dioceses sem esse plano de segurança, de formação e, ao mesmo tempo, de procedimentos concretos”, reforçou.

 

A finalizar, D. João Marcos sublinha que “sempre houve problemas na Igreja, e problemas também deste género”. “Sabemos que é horrível, é uma matéria muito complicada, mas a Igreja está a enfrentar conforme pode. É a primeira vez que acontece uma análise destas na Igreja portuguesa e, portanto, estamos todos a aprender também”.

 

COMISSÃO DIOCESANA IRÁ TER "UM PAPEL MAIS VISÍVEL"

A presidente da Comissão Diocesana de Beja para a Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis reforça, por sua vez, em declarações ao “Diário do Alentejo”, que a única queixa recebida, referente ao crime de “tentativa de abuso sexual de menor” ocorrido em 2020, “seguiu as suas vias normais” e “a pessoa foi retirada imediatamente das suas funções”, encontrando-se a aguardar sentença no tribunal de Beja.

 

Com o cessar de funções da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, Natália Antunes acredita que a comissão diocesana passará a ter “um papel mais visível”.

 

“De facto, a comissão independente foi muito conhecida e acredito que os casos tenham sido mais reportados à comissão independente do que propriamente às comissões diocesanas. Para já, diria que o ser independente é logo um bom chamativo, mas não deixa de ser uma comissão pedida pela Igreja, não foi uma entidade civil que se lembrou disso”, diz a advogada, sublinhando que a comissão diocesana também surgiu em plena pandemia de covid-19, pelo que não foi “muito divulgada”.

 

A responsável frisa que a comissão diocesana “vai continuar a ter exatamente o mesmo papel”, “a mesma responsabilidade, que é muita”, estando pronta “a agir rapidamente em caso de denúncia, seja a nível civil, seja a nível eclesiástico”.

 

“A comissão diocesana é como uma comissão de proteção de crianças e jovens (CPCJ). A intenção é proteger todas as vítimas que venham a fazer a denúncia junto de nós”, esclarece, sublinhando que a comissão “irá ter também um papel no encaminhamento” das vítimas para ajuda profissional “do foro psicológico”.

 

Natália Antunes espera, assim, que as pessoas entendam a comissão diocesana “como uma ajuda” e “que não se sintam julgadas, nem perseguidas, nem desvalorizadas, muito pelo contrário, porque é precisamente para acolher a vítima, para lhe dar suporte”, que estas entidades foram constituídas.

 

No que diz respeito aos agressores, a advogada diz que “têm de ser punidos civilmente, sempre, e eclesiasticamente também”, mas “não têm de ser abandonados, desprezados”. “Achamos que os agressores também têm de ser acompanhados psicologicamente, porque são pessoas que têm de ter um distúrbio no comportamento. Têm de ser ajudados para que os abusos não voltem a acontecer”.

 

Questionada quanto às medidas de prevenção que deverão ser adotadas a fim de evitar casos futuros, Natália Antunes sublinha que este não é um problema exclusivo da Igreja, “é um problema da humanidade”, e que “os jovens, as crianças estão hoje muito mais despertos para estas questões e, com certeza, têm uma relação muito mais aberta com os pais, com os adultos, para falar nestas questões tão sensíveis e de forma a que também os próprios agressores sintam as suas ações muito mais dificultadas”.

 

"MISERICÓRDIA E PERDÃO NÃO DISPENSAM JUSTIÇA"

O pároco de Ourique, Hugo Gonçalves, numa nota publicada recentemente no Facebook, diz que, “após a apresentação [do relatório da comissão independente], nos dias e semanas subsequentes, esperava que os bispos reagissem em uníssono, [e] que para isso se reunissem, analisassem exaustivamente o relatório, pedissem perdão e propusessem um caminho concreto que levasse a cuidar das vítimas e a purificar a Igreja”.

 

Aquilo que viu, adianta, “foi os bispos a falarem a várias vozes (…), a sua inabilidade e também do secretário da Confederação Episcopal Portuguesa em comunicar, como que erráticos, confusão em terminologias – como se o simples leigo soubesse distinguir – e esquecendo que a misericórdia e o perdão não dispensam a justiça”.

 

Reforçando que aos bispos “falta clareza e simplicidade naquilo que têm a dizer aos católicos e não católicos em Portugal”, Hugo Gonçalves diz que aguarda “com esperança” que os bispos, a CEP, possam, “com serenidade e ponderação, recomeçar o caminho que teve início com a criação da comissão independente, que saibam dar respostas concretas às vítimas e à sociedade e que – a título permanente – encontrem um leigo especialista na área da comunicação para que os possa assessorar”.

 

O pároco de Moura, José Manuel Guerreiro, por sua vez, na mesma rede social, faz suas “as palavras” do padre Hugo Gonçalves. Entretanto, na passada sexta-feira, dia 10, a coordenadora da equipa do serviço da Pastoral do Ensino Superior de Diocese de Beja e membro da equipa nomeada para preparar e acompanhar a fase diocesana do Sínodo dos Bispos 2021-2024 cessou as suas funções.

 

Em nota publicada no Facebook da pastoral, Maria do Sameiro Pedro diz que não consegue identificar-se “com um qualquer exercício de poder clerical em Igreja, sobretudo, se em dissonância com o magistério do Santo Padre”.

 

A docente do Instituto Politécnico de Beja adianta que “os acontecimentos do último mês e as ações, e, mais ainda, as omissões deliberadas, em que se precipitaram estruturas de poder eclesiástico em Portugal”, têm-na deixado “triste e indignada”. “(…) as mais recentes declarações públicas do senhor bispo de Beja impelem-me a agir e, ao mesmo tempo, impedem-se de continuar a exercer qualquer função que resulte de nomeação por si feita”, acrescenta, frisando que “não há lugar para o silêncio e passividade”.

Comentários