Diário do Alentejo

Cabeça Gorda, a aldeia ponderosa do Baixo Alentejo

03 de março 2023 - 09:00
A pouca chuva tem condicionado a quantidade de cogumelos silvestres, o tesouro da terra

Entre hoje e domingo a freguesia de Cabeça Gorda, no concelho de Beja, recebe a 9.ª edição do Silarca – Festival do Cogumelo, que anseia pelo “regresso do convívio” após dois anos de interregno. O “Diário do Alentejo” foi à apanha da silarca no parque biológico da freguesia e conversou sobre aquele que é um dos eventos que mais tem crescido nos últimos tempos.

 

TEXTO ANA FILIPA SOUSA DE SOUSA

FOTOS RICARDO ZAMBUJO

 

De boina castanha na cabeça e com as mãos atrás das costas, João Pires, apanhador da terra, procura por entre as folhas e as raízes das árvores algum terreno solto que indicie, por debaixo dele, uma Amanita ponderosa ou, como é comummente conhecida, silarca. O solo está seco, um dos principais reflexos dos poucos dias em que a chuva apareceu por estes lados, porém, nem isso desmotiva os cerca de cinco apanhadores que, de manhã, percorrem o parque em busca de algumas silarcas. “Temos de ir mais para longe. Aqui ao pé da vedação estão todos apanhados”, diz, enquanto aponta para dois buracos revoltos na terra.

Por esta altura do ano, a aldeia de Cabeça Gorda, no concelho de Beja, é palco de um dos maiores certames micológicos, que se diferencia pelo estudo e comercialização de cogumelos silvestres. “Nesta época do cogumelo e do Festival da Silarca, as pessoas estão sempre à procura [de cogumelos]. Além de ajudar a passar o tempo, é também uma mais-valia para aqueles que têm uma reformazinha pequena, porque vendem o que apanham. Acaba por ser um contributo e um pequeno sustento para algumas famílias”, revela.

Esta é uma das particularidades que o festival traz consigo, ou seja, a possibilidade de vender e comprar cogumelos silvestres certificados na lota mitológica durante três dias, além de permitir que “curiosos” aprendam em workshops, colóquios, e no próprio passeio micológico, a conhecer e a identificar as diferentes espécies de cogumelos existentes no concelho e no País.

Para Sandra Torres, secretária da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda, este evento cria “uma dinâmica” na aldeia ao nível “do comércio tradicional e do turismo rural”, que “leva o nome da freguesia e o potencial dos nossos recursos silvestres a todo o País”. Lucília Simão, presidente da autarquia, corrobora: “Nós, em 2014, em parceria com a Associação de Defesa do Património de Mértola (ADPM), entendemos que, devido ao parque biológico e aos cogumelos silvestres que lá estão, deveríamos preservar, explorar e promover da melhor forma possível a aldeia, ao nível social e económico, através deste produto”.

À medida que se caminha para o interior da reserva natural, a vegetação torna-se mais verde e densa, deixando antever que aquela é uma zona mais húmida e pouco frequentada por apanhadores. O silêncio da concentração apenas é interrompido pelo chilrear de um ou outro pássaro que voa de árvore em árvore. “Podemos estar aqui uma hora e não encontrar nada e vir cá amanhã ao mesmo sítio e apanharmos meia dúzia”, elucida João Pires, enquanto caminha com os olhos postos no chão.

 

Multimédia0

 

“O FESTIVAL TEM CRESCIDO E NÓS COMEÇAMOS A SER POUCOS PARA TRATAR DE TUDO”

Ao longo dos últimos nove anos, à exceção de 2021, em que se realizou em formato on line, e de 2022, em que foi cancelado, o Silarca – Festival do Cogumelo tem visto crescer o número de expositores, stands e visitantes. Este ano, o certame que começa hoje, sexta-feira, conta com mais de 100 inscrições, “entre no mercado, os stands e as tasquinhas” e um número igualmente semelhante de pessoas que participarão no habitual passeio micológico no parque biológico, agendado para amanhã, dia 4.

“Tivemos um interregno de dois anos em virtude da pandemia e este ano o Festival da Silarca está de regresso à nossa praça Magalhães Lima com muitas inscrições, à volta de 100, para os stands e tasquinhas, o que nos deixa a pensar que o evento já ganhou alguma proporção”,refere a secretária de 40 anos. “O festival tem crescido e nós começamos a ser poucos para tratar de tudo, então, às tantas, andamos um bocadinho a fugir”, completa Lucília Simão.

A falta de outros apoios financeiros, assim como a reduzida equipa executiva, são alguns dos fatores que, com o crescimento do evento, têm vindo a dificultar a sua organização. Contudo, para a presidente, este não é o ano certo para pensar sobre o que se poderá fazer no futuro. “Nós, este ano, em primeiro lugar estamos apenas com a expetativa de retomar o evento depois dos últimos dois anos de paragem. O evento tem crescido, temos tido muita procura e vamos vendo que teremos de crescer mais um pouco, mas, neste ano, a nossa principal preocupação é retomar os convívios”, diz. E acrescenta: “No ano que vem logo vemos como é que iremos fazer”.

 

Multimédia1

 

“INFELIZMENTE NÃO CHOVEU, AINDA SE CONSEGUEM APANHAR ALGUNS, MAS NÃO TANTOS COMO ERAM ESPERADOS”

Este não tem sido um ano forte para as silarcas. “Choveu aquele período onde tivemos logo um boom de cogumelos, mas a nossa expetativa era que chovesse mais, principalmente, antes do festival, que era o que indicava que ia acontecer, mas, infelizmente, não choveu. Ainda se conseguem apanhar alguns, mas não tantos como eram esperados”, explica Sandra Torres. “Provavelmente agora, durante o festival, chove e depois a seguir temos outra abundância”, brinca.

João Pires concorda. “A época da apanha do cogumelo normalmente acontece entre março e abril, mas depende muito de quando chove. Já houve anos em que se começou a apanhar em janeiro, porque tinha chovido muito antes… a chuva tem de estar sempre certa para haver silarcas”, relembra.

Após algum tempo de procura, o apanhador de 66 anos, percebe uma revolta de terra no meio de algumas ervas. “Aqui está um de certeza”, anuncia. Semienterrado, aos olhos dos mais desatentos era fácil passar despercebido.

“A apanha de cogumelos por vezes é difícil. Por exemplo, este cogumelo que apanhei era difícil de alguém dar com ele, porque estava muito camuflado. É preciso que saibamos onde há mais humidade e procurar aí, às vezes temos de os desenterrar, outras vezes estão ao de cima”, diz, enquanto limpa a terra da silarca com as mãos.

Em jeito de despedida, Sandra Torres diz esperar que, pelo menos, durante os próximos três dias, a chuva continue a dar tréguas e permita que o Festival da Silarca regresse ao seu “normal”, porque “toda a gente está à espera deste grande evento que queremos que seja o melhor dos últimos anos”, conclui.

 

 

BRUNO FERREIRA CONTINUA A SER O EMBAIXADOR DO FESTIVAL

A amizade que Bruno Ferreira, ator e locutor, tem por Cabeça Gorda desde há vários anos fez com que este se tornasse o embaixador oficial do Festival da Silarca. Segundo Lucília Simão, presidente da junta de freguesia, este “tem feito um trabalho excelente na promoção deste evento e da Cabeça Gorda desde 2016” e “cada vez com mais entusiasmo”.

 

A ARTE DE UNIR O CONHECIMENTO À TRADIÇÃO

Para Sandra Torres, secretária da Junta de Freguesia de Cabeça Gorda, uma das mais-valias do Silarca – Festival do Cogumelo é a possibilidade que é dada aos visitantes de conhecerem e aprenderem todo o processo que envolve a micologia, especialmente, no que diz respeito à Amanita ponderosa. “Temos pessoas muito interessadas, tanto na parte tradicional da apanha das silarcas com os nossos apanhadores, como na parte teórica da identificação e do reconhecimento da importância que é este recurso silvestre, que até há bem pouco tempo não valorizávamos”, refere. Neste âmbito, para hoje está agendada a atividade de educação ambiental “Escola Micológica – Micorrizas e Cogumelos: A Internet das Árvores”, com os alunos da Escola Básica n.º 1 e Jardim de Infância de Cabeça Gorda, às 10:00 horas, e a apresentação do projeto “REA Alentejo – Modelo de Reabilitação de Ecossistemas para as Zonas Semiáridas do Sudeste de Portugal”, às 17:15 horas. Nos próximos dias é a vez dos workshops “(H)à Conversa entre Cogumelos” (dia 4), às 18:30 horas, e “Introdução ao Cultivo de Cogumelos” (dia 5), às 16:30 horas.

Comentários