Diário do Alentejo

Arquivo digital dedicado à resistência nos campos do Sul

12 de dezembro 2022 - 13:00
Projeto pretende compreender o período entre 1974 e 1990
Foto | Diário do Alentejo/ArquivoFoto | Diário do Alentejo/Arquivo

A Reforma Agrária está a ser objeto de um estudo profundo, baseado em documentação e entrevistas a todas a partes envolvidas no processo, que quase 50 anos depois ainda é tema fraturante. O projeto, que vai materializar-se numa plataforma digital com reunião e partilha de informação, está a ser desenvolvido por Paulo Lima com a Sistemas de Futuro e tem o objetivo de “comemorar o tempo”.

 

O antropólogo, que coordenou a candidatura do cante à Unesco, está particularmente interessado nos reportórios de resistência que os trabalhadores do sul ligados à Reforma Agrária vão utilizar, a partir de 1976.

 

Texto Júlia Serrão

 

Em ZIRA.pt, por enquanto só encontramos uma curta definição do que virá a ser: “Uma plataforma digital dedicada à ‘história imediata’ e à história oral da região histórica designada Zona de Intervenção da Reforma Agrária (…)” – que incluiu os distritos de Beja, Évora e Portalegre, entre outros e alguns municípios.

 

A apresentação é do antropólogo Paulo Lima, que está a desenvolver o projeto com a Sistemas do Futuro, e nos dá conta de que já há muito trabalho feito sobre este período de 1974 ao princípio dos anos 80. Construção de “uma base de dados”, análise de documentação escrita, registos orais da altura, e entrevistas que está a fazer a todas “as partes” envolvidas: ocupantes, ocupados, militares e forças militarizadas.

 

Explica que o foco do arquivo em plataforma não está “tanto” nas ocupações, produções e legislação, mas “essencialmente nos reportórios de resistência que os trabalhadores do sul ligados à Reforma Agrária vão utilizar, a partir de 1976”.

 

Referindo-a como “um dos acontecimentos históricos mais interessantes e importantes do pós-25 de Abril, que mudou de muitas formas um território e as gentes que o habitavam e habitam”. O projeto propõe também “inventariar ‘a paisagem’” construída nos últimos anos, “considerando o que é hoje a agroindústria – uma exploração incorreta do território por todos os impactos que tem tido”.

 

Lembra que o Alqueva foi talvez um dos maiores investimentos que Portugal fez, “e em vez de criar uma diversidade de culturas criou monoculturas profundamente agressivas”, que transformarão o território num deserto em poucos anos, com o “afastamento das populações”.

 

MOVIMENTOS SOCIAIS CONTÍNUOS 

O antropólogo que coordenou várias candidaturas à Unesco, como o cante, começou a interessar-se pelo tema em 2017, “na continuidade de um conjunto de interesses” associados à Guerra do Sul. “Nome dado à resistência das populações contra o liberalismo” nesta zona do País.

 

Explica que a partir de 1835/36 surge um conjunto de guerrilhas contra o Estado Liberal em particular no Alentejo, onde se destaca “o papel dos irmãos Baiôa, em Ervidel, mortos mais tarde por antigos Miguelistas”. Segue-se um “movimento sindicalista fortíssimo” já na República, que vai levar às greves de Évora, criando “endemicamente um conjunto de problemas”, onde se destacam “as primeiras mortes de Baleizão numa greve, e no ataque a um comboio em Beja”.

 

Paulo Lima diz que quando se olha para todos estes acontecimentos, a que se somam “os movimentos de oposição a Salazar” a partir dos anos 30, percebe-se que existe um “contínuo” de movimentos sociais, “que a partir de finais de 1974 são corporizados na Reforma Agrária”.

 

Houve depois outras coincidências, tendo os livros do escritor e político António Modesto Navarro particular importância: A Memória Alentejana sobre Évora, “que de alguma forma inaugura a história oral”, e Das Árvores Mortas à Reforma Agrária “com a experiência particular da Vidigueira”, publicados entre 1976/80.

 

 

Multimédia0Reunião Unidade Coletiva de Produção de Baleizão, 1981

 

 TESTEMUNHOS SOBRE O PASSADO NÃO LONGÍNQUO E O MOMENTO

Mas foi Os Poetas Populares Alentejanos – que já lhe havia despertado especial atenção “para entender a poesia popular” na vertente das “décimas, recuperadas no período da Reforma Agrária” – que voltou a interessar-lhe, uma vez que foi escrito a partir de entrevistas gravadas pelo autor entre fevereiro e abril de 1976, em 30 lugares e 20 Unidades Coletivas de Produção (UCP) em Avis, Campo Maior e Aljustrel.

 

“O que Modesto Navarro faz é tratar a poesia popular como memória social”.

 

A pedido do antropólogo há dois anos, o escritor cedeu-lhe as gravações para digitalização. “Ficámos com 120 horas de um gigantesco testemunho do que é que os trabalhadores e trabalhadoras que estavam nas UCP pensavam sobre o seu passado não longínquo – as pessoas não estão desligadas da sua história, muitas estão a falar das greves de Évora –, e sobre o que se vivia no momento.

 

E é bom não esquecer que estamos em fevereiro de 1976, meses depois do 25 de Novembro, e que não se desliguem todos estes acontecimentos”.

 

As gravações “estão contextualizadas num período riquíssimo da nossa História, mas têm de ser vistas também dentro de outro, que é, de repente, a Reforma Agrária percebe que está sozinha”, observa, descrevendo os factos: os trabalhadores ficam na posse de terra em 75/76, sai legislação que lhes permite essa expropriação, e poucos meses depois o Estado está a devolver as terras aos seus antigos proprietários. Praticamente “numa colheita, depois de se terem feito melhorias nas terras, há uma intervenção bastante pesada” do Ministério do Interior (MI) e do Ministério da Agricultura e Pescas (MAP) nesse sentido, espoletando a reação dos trabalhadores.  

 

GEOGRAFIAS DA RESISTÊNCIA E O PAPEL DAS MULHERES

A documentação do MAP “mostra” que em todos os lugares houve uma resistência passiva”. “E eu acho que o Partido Comunista Português (PCP) e os sindicatos tiveram uma importância fundamental de contenção dos trabalhadores”, defende.

 

Ainda que se registem momentos de tensão e de enfrentamento, “de grande violência por parte da Guarda Nacional Republicana (GNR)”, como aconteceu no Escoural, com a morte de dois trabalhadores em setembro de 79. “Que também tem de ser contextualizado no seu tempo”. 

 

O antropólogo fala em três pontos geográficos de maior resistência. No Baixo Alentejo é “a zona de Serpa-Pias, estendendo-se ligeiramente a Baleizão, que é um lugar que corporiza uma resistência e é expressão de uma identidade de oposição política muito forte seja ao que for”.

 

Diz que “é um caso extraordinário em tudo”, e que a morte de Catarina Eufémia não pode ser desligada da morte de mulheres em 1917 e do ataque de mulheres à pedrada a jipes da GNR, por volta de 80.

 

O papel feminino, que neste acontecimento tem sido esquecido “à exceção de um ou outro caso”, também vai ser considerado. O homem que sonhou e está a desenvolver o projeto ZIRA adianta que as mulheres têm aqui “um papel também de líderes”, como mostra a documentação e as entrevistas de Modesto Navarro.

 

Com o objetivo de perceber as expressões populares de resistência, ou como se foi compondo “as formas de resistência pelas UCP” a partir de 76 e até 82/83, Paulo Lima recua à dimensão deste “universo político extremamente interessante” durante o I Governo Constitucional: O Alentejo tinha um milhão e 100 hectares ocupados, à volta de 600 UCP, “e dezenas e dezenas” de câmaras e juntas de freguesia que não estavam sob o controlo do poder central.

 

Multimédia1Manifestação Jornada de luta em defesa da Reforma Agrária, março de 1980

 

RETIRAR AS TERRAS NA POSSE DAS UCP

Por isso, desenha-se uma estratégia do Governo de reposição das terras através do MAP. “‘Tínhamos que repor a legalidade’”, repetem-lhe nas entrevistas. A ‘legalidade’ passava “por tirar as terras que estavam na posse das UCP de diferentes formas”: separação dos trabalhadores em outras UCP, entrega de terras a seareiros e rendeiros, e captação dos melhores trabalhadores pelos antigos proprietários, envolvendo uma transferência significativa de trabalhadores.

 

Paulo Lima refere que enquanto as desocupações aconteciam, “o Estado e o Governo, e depois, localmente, quer os proprietários quer os responsáveis político, em particular do Partido Socialista (PS), vão encontrar as formas de começar a lutar contra a Reforma Agrária”.

 

O que interessa ao antropólogo são os reportórios de resistência que, à medida que vai lendo a documentação e falando com as pessoas, percebe que são de vários tipos: a formas mais antigas continuam a estar presentes, movimentos que têm muito a ver com a subsistência e o acesso ao trabalho; a par das novas, que dizem respeito a greves. “Porque não podemos vê-los apenas na forma de relação com o Estado, mas também nos momentos em que há enfrentamentos com a GNR e as forças de intervenção da Polícia de Segurança Pública (PSP)”, explica. E dando conta que “há o pronúncio de uma insurreição”, entre 1978/1980.

 

O destino dos intervenientes que ocuparam diversificou-se: “Uma parte reforma-se e emigra, outra vai envolver-se localmente nas autarquias enquanto trabalhadores e dirigentes”.

 

CRIAÇÃO DE UMA IMPORTANTE ELITE LOCAL 

A Reforma Agrária estava concluída, mas, “permitiu a criação de uma elite local a nível político importantíssima para o desenvolvimento do território, que vai transformar o Alentejo: presidentes de câmara, vereadores e funcionários autárquicos”, sublinha.

 

Por outro lado, gerou um espólio de “imóveis que vão ser importantes nos serviços futuros da região”.  Paulo Lima salienta que, durante décadas, o Alentejo foi um exemplo de gestão e de melhoramentos, operando “uma autêntica revolução nos campos do Sul, na criação de melhores condições de vida para as populações locais”.

 

Quanto ao combate à Reforma Agrária, teve por trás questões políticas. Nota que a documentação prova que as desocupações começam ainda em 1976 com o Governo liderado por Mário Soares, com três dezenas de devoluções de terras e dezenas de entregas a outros, que podem ser UCP.

 

“Portanto, não é a Lei Barreto que faz isso”, frisa. Facto que coincide com “a ideia do PS, de que Portugal tinha de entrar na União Europeia, e havia que resolver o ‘problema’”. A barragem de Alqueva é adiada “porque iria permitir que muitas UCP fossem viáveis”, garante.

 

“O sonho dos trabalhadores destas coletividades, das elites políticas e dos partidos de esquerda, em particular do PCP, era que que aquele grande empreendimento servisse para a diversidade das culturas. Daí o regadio que é feito durante as UCP, procurando aumentar os hectares regados, porque aí as produções podem ser muito diversificadas”.

 

Agora, o que está a acontecer é uma monocultura com os fenómenos associados de “exploração e deslocalização humana”. Para o antropólogo, esta é a verdadeira reforma agrária, a que teve esse nome foi “uma experiência” de agricultura sustentada que “durou muito pouco”.

 

A PLATAFORMA QUE PRETENDE COMEMORAR O TEMPO

A ideia de criar uma plataforma sobre a ZIRA que reúna toda a informação sobre o tema, tem outro objetivo, que é “comemorar o tempo”. “Nós gostaríamos muito que toda esta documentação pudesse ser inscrita num dos programas da Unesco que é ‘A Memória do Mundo’”, revela Paulo Lima, acrescentando: “a memória produzida, documental é, de facto, dos acontecimentos mais extraordinários do centro da Europa nesta altura”.

 

Mas a motivação foi a construção de um espaço “que permita recriar, e as pessoas acederem a este acontecimento fundamental da História de Portugal, e em particular da História do Sul e dos campos da ZIRA”. Assim como “potenciar a preservação desta memória documental e desta história oral”.

 

Que, na opinião do antropólogo, podia ter dois ou três caminhos: a preservação física documental; um conjunto de exposições – já estão a trabalhar nessa perspetiva, pois existe um património fotográfico enorme –; e a criação de um espaço onde se pudesse contar esta narrativa, isto é, uma espécie de centro de interpretação, que podia ser em Beja ou em Évora. “A Reforma Agrária, que é uma experiência, deve ser usada como memória. Mas também para pensar o presente e o futuro que queremos no território”, conclui.

 

 A PRIMEIRA EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA OCUPADA ACONTECE A POUCOS QUILÓMETROS DE BEJA

Localizado na freguesia de Santa Vitória, a cerca de 15 quilómetros de Beja, o Monte do Outeiro foi a primeira exploração agrícola a ser ocupada pelos trabalhadores, a 10 de dezembro de 1974, depois de um plenário de véspera na casa do povo. Faz agora 48 anos.

 

O proprietário, como referem os documentos “um absentista” de idade avançada, recusava receber dois trabalhadores colocados na propriedade no verão de 1974 pela Comissão Pró-Sindicato, e, numa manifestação de ‘força’, ainda despediu 12 dos seus 29 trabalhadores.

 

Quase um ano depois, a 17 de outubro de 1975, o Monte do Outeiro associado a mais 9 explorações agrícolas de Santa Vitória constituíam também a primeira Unidade Coletiva de Produção do Baixo Alentejo: a “Vanguarda do Alentejo”. Com uma área total de 5574 hectares, era constituída por grande diversidade cultural, área florestal e efetivo pecuário.

 

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