Diário do Alentejo

O ciclo vicioso da imigração no Alentejo

02 de outubro 2022 - 09:30
Doações não acompanham o número de pedidos de ajuda
Fotos | Ana Filipa Sousa de SousaFotos | Ana Filipa Sousa de Sousa

O número de casos de exploração laboral e habitacional de imigrantes na região disparou nos últimos meses. As vagas são cada vez maiores e não há respostas sociais nem soluções. A associação Estar diz que o panorama atual está “grave, caótico e descontrolado”.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Trinta. Trinta cabazes alimentares entregues em 10 horas. No início da manhã de segunda-feira estavam calendarizados, pela Associação Estar, cinco apoios do Projeto Marmita. A meio da tarde a média diária tinha sido ultrapassada. Este é um cenário que começa a ser recorrente: o número de novos pedidos de ajuda, maioritariamente de homens iludidos por promessas de trabalho, sobe há várias semanas e a tendência é que continue.

 

Os frigoríficos vazios ao final do dia são uma rotina normal e até necessária, uma vez que voltam a ser repostos durante a noite com os excedentes recolhidos de alguns supermercados depois destes fecharem, mas a falta de alimentos nas prateleiras começa a assustar quem gere e lá faz voluntariado. Os pedidos continuam a chegar, cada vez com mais frequência, porém a percentagem de doações não acompanha esta situação.

 

O perfil de beneficiários é similar desde há alguns anos. Homens. Imigrantes. Muçulmanos. Entre os 18 e os 35 anos. Pais de família. Sem escolaridade. Trabalhadores agrícolas. A maioria deles enganados com promessas de trabalho que lhes permitiria ter e dar uma vida melhor a quem ficou. Ao chegar deparam-se com casas sobrelotadas, trabalhos precários e fome.

 

Madalena Palma e Inês Féria, responsáveis pela Associação Estar, já não conseguem contabilizar o número de casos extremos de fome que lhes passaram pelas mãos. Nos últimos tempos, têm apoiado 90 pessoas semanalmente com o Projeto Marmita, um cabaz alimentar, com produtos frescos, preparado consoante as particularidades de cada elemento do agregado.

 

O número de pessoas que as tem procurado nas últimas semanas tem aumentado a olhos vistos. O pequeno alarme da porta da sede da associação, principalmente durante a tarde, nunca chega a descansar. As caras conhecidas ajudam os rostos novos que lá entram. Madalena e Inês convidam-nos a sentar, num dos três sofás da entrada, para conversar e perceber parte da sua história antes de os ajudar.

 

P. é um imigrante marroquino que chegou ao Alentejo após seis meses alojado num centro de acolhimento espanhol. Foi resgatado, a 200 quilómetros da costa sul de Espanha, por um pescador no meio do Mar Mediterrâneo, quando fugia do seu país. Agora é apoiado pela Estar porque procura trabalho. Trabalho, esse, que não há, nem para ele, nem para os seus companheiros que chegam às centenas todos os dias.

 

“O panorama social atual está grave, caótico e descontrolado. Não há trabalho, mas todos os dias continuam a chegar pessoas com promessas de contratos e ninguém lhes pergunta para onde vão e o que vêm fazer”, começa por explicar Inês Féria.

 

A facilidade de obtenção dos documentos legais é um dos principais fatores que os faz sujeitarem-se às condições de exploração laboral e habitacional, ansiando uma “entrada fácil” na Europa.

 

“Nós questionamo-los sobre a falta de trabalho cá, e o porquê de continuarem a vir, e todos nos dizem a mesma coisa: a questão dos documentos. Em Portugal é muito fácil pedir uma legalização e nós somos uma porta de entrada para a Europa, porque a maioria quer ir para França, Espanha ou Itália, mas aquele ano e meio, no mínimo, que esperam os documentos, andam por aqui vagueando”, continua.

 

Madalena Palma também não compreende esta falta de controlo que existe. Recentemente, viajou, com alguns dos imigrantes que a associação apoiou em tempos, ao Senegal, para entregar alguns livros escolares e conhecer as suas famílias e viu-se “obrigada” a dar conta de todos os seus passos durante a estadia de 10 dias naquele país.

 

“Eu fui, há uma semana, para o Senegal e quando entrei nos serviços de imigração no aeroporto tive de dizer onde é que ia, com quem ia e onde ia dormir. Tive de deixar o meu rasto [antes de entrar e de sair]. Estamos a falar de um país de terceiro mundo e depois a Portugal chegam diariamente 300 timorenses que ninguém pergunta o que é que vêm cá fazer ou onde vão dormir … vêm com uma mochila às costas e [as autoridades] acham que vêm passar férias? E todos os dias continuam a chegar de barco, pela fronteira de Espanha e inclusive pelo aeroporto de Lisboa, mas cá não há trabalho e nem respostas para estas pessoas”, revela.

 

O interior alentejano é somente um reflexo da situação a nível nacional. Segundo as responsáveis da Estar, não há respostas sociais por parte das entidades competentes e quando aparecem são burocráticas e demoradas.

 

“Nós temos agora um caso, de uns rapazes que estão a trabalhar numa empresa de trabalho agrícola com contrato e tudo certo, mas que até agora estão a viver numa tenda. E a PSP, que tem o dever legal de identificar qualquer pessoa sem-abrigo, não o faz, porque não há alternativas. As próprias entidades que têm competência dizem à PSP que não os identifique porque não têm resposta para estas pessoas”, denuncia Madalena Palma.

 

Madalena e Inês foram a primeira entidade a chegar aquando da primeira vaga de timorenses, no final de julho, desalojados na Cabeça Gorda, no concelho de Beja, pelo próprio empresário paquistanês que lhes prometeu trabalho, estadia e ajuda em troca de documentos. Na altura, a rede de tráfico humano foi denunciada, mas, passado todo este tempo, continua a não haver “soluções para essas pessoas e elas aí andam”.

 

“Este problema tem de chegar lá a cima. Enquanto não houver vontade política para mudar as coisas, é difícil, porque isto é um negócio, toda a gente ganha dinheiro com estas pessoas. É necessário rever as leis, as políticas sociais a curto, médio e longo prazo”, afirmam.

 

O PERFIL DE IMIGRANTES TAMBÉM ESTÁ A MUDAR

A cada dia que passa, o número de imigrantes marroquinos, argelinos, indianos e timorenses tem aumentado na região. A associação Estar ainda não compreende esta mudança repentina de nacionalidades que procuram Portugal, mas teme esta nova realidade.

 

A maioria chega sozinho, com promessas de trabalho aliciantes que se revelam um engano, porém, o regressar não é opção. A vergonha, a honra e o medo de voltar e desiludir a família, que ambicionava uma vida melhor à conta desta viagem, fazem-nos ficar. Em certos casos, o pagamento da divida àqueles que os trouxeram e a custódia dos seus impede-os de voltar até ao seu conforto.

 

Nas últimas semanas, Madalena e Inês têm verificado também uma outra alteração: a vinda de famílias inteiras indianas e sírias. “Temos notado que agora eles chegam já com as suas famílias. Inicialmente, vinham só eles para se tentar estabelecer e só depois traziam as famílias, mas agora, principalmente de nacionalidade indiana, já estão a trazer logo as mulheres e as crianças, mas sem nada. Sem casa, sem trabalho, sem perspetivas de nada, simplesmente chegam”, conta Inês Féria.

 

Para esta vaga repentina, Madalena Palma tem uma explicação. “Na Índia há gerações de famílias que não têm casa, há pessoas que vivem na rua porque já os pais e os avós viviam, ou seja, o virem embora com uma mão à frente e outra atrás não é algo anormal. E não nos podemos esquecer que é um dos países mais inseguros para as mulheres, [por isso] quando há pais que têm filhas, vêm embora. E o mesmo acontece com as famílias sírias com filhos homens, vêm embora [assim que podem], porque senão estes são recrutados para a guerra”, explica.

 

 

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UM CICLO VICIOSO 

Ainda que pareça que diferentes problemáticas não se cruzam, vivemos num ciclo vicioso. A inflação que se tem assistido e sustentado nos últimos meses em Portugal tem condicionado, em muito, o trabalho das instituições de solidariedade.

 

As prateleiras da Estar, que, desde sempre, mantêm uma forte afluência, nunca deixaram vislumbrar a sua cor de fundo. Agora, a madeira castanha já começa a aparecer. A estante dos óleos alimentares é aquela que sofre de maior carência, tem menos de 10 garrafas. As doações de bens alimentares desceram.

 

Os preços dos produtos aumentaram e as famílias começaram a minimizar os gastos. Doa-se roupa e cobertores, bens que não necessitam de um investimento imediato porque já estavam guardados há algum tempo.

 

Vinte e três doações materiais só no primeiro dia da semana na Estar. Maioritariamente em roupa de inverno, sapatos e mantas. Estas seguiram para a triagem. De lá, serão entregues a quem mais precisa, colocadas na loja social ou doadas ao Banco Alimentar Contra a Fome. Ainda antes das 11:00 horas, já tinham sido levados dois palotes do dia anterior que serão agora revertidos em produtos alimentares e entregues à associação.

 

Este é um ciclo vicioso. Quando o preço dos produtos aumenta, o número de donativos diminui e vice-versa. Porém, a situação atual, com a crescente quantidade de pedidos de ajuda, não consegue esperar pelo reverso da medalha.

 

A solução encontrada pela associação Estar e pelo Banco Alimentar Contra a Fome é a troca de produtos entre os dois, que ainda assim continua escassa.

 

“As doações de roupas chegam a toda a hora. A roupa que nós triamos, e que não tem condições de ser dada a ninguém, segue em doação para o Banco Alimentar para ser convertida, em peso, em alimentos que são cedidos à Estar. Nós damos cerca de uma tonelada por mês”, explica a assistente social, Madalena Palma.

 

Num dos recentes picos de imigração, a associação viu-se forçada a comprar alimentos, principalmente embalagens de leite, para assegurar as refeições. A constante incerteza económica do País não combina com o aumento cada vez mais flagrante de imigrantes que chegam.

 

“Digo, à boca cheia e a qualquer sitio onde vou, que a cidade de Beja não tem noção do quão pior estaria se nós não existíssemos. Já houve uma instituição que nos disse para nós termos cuidado com a carrinha da Estar à noite porque para muita gente esta é a carrinha da Prosegur. Agora pensemos o que acontece se nós, um dia, cortarmos com esta ajuda alimentar”, refletem.

 

 

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COLOCARMO-NOS NO LUGAR DO OUTRO

Convidados a entrar na Estar com um sorriso no rosto, torna-os frágeis. A pressa, em mostrar documentos e explicar as suas situações, evidencia as principais prioridades das inúmeras instituições por onde passaram. O importante é ver o passaporte, perceber o motivo da vinda e as suas intenções quanto aos trabalhos A Estar é uma associação de apoio imediato a situações de emergência que trabalha em parceria com as outras entidades sociais do distrito de Beja.

 

O foco está naqueles que já trabalharam, mas que por algum motivo alheio foram impossibilitados de o fazer. “No caso dos imigrantes acontece muito isso, vêm com contratos precários em que, com o fim das campanhas, ficam sem nada até que venha outro trabalho, o que muitas vezes pode implicar que percam a casa e deixem de comer”, revelam.

 

O trabalho da associação é ajudar temporariamente estes imigrantes a estabelecerem as suas vidas na região, com contratos de trabalhos legais, habitações dignas e bens essenciais assegurados.

 

“Todas as histórias que aqui passam são importantes, porque todos aqueles que nos procuram não são números, são pessoas. Nós ouvimo-las, nós olhamo-las e vemo-las e naquilo que depender de nós aquelas pessoas melhoram, de certeza, a vida delas”, afirma, esboçando um sorriso, Inês Féria.

 

Dos quase quatro anos de intervenção, ainda que percam o rasto a muitos dos que ajudam, orgulham-se dos casos de êxito daqueles que permanecem na região. B. é um dos trabalhadores de sucesso das minas de Aljustrel. Com uma idade muito superior àquela que foi pedida à Estar, aceitou o desafio. Foi contratado e atualmente está no quadro da empresa.

 

“Ele quando recebeu o seu primeiro ordenado veio mostrar-nos o recibo de vencimento e dizia-nos que nunca tinha visto tanto dinheiro na vida e que nós não tínhamos noção da quantidade de dinheiro que ele ia poder mandar para a família do Quénia”, contam.

 

Para Madalena e Inês, a capacidade de colocação no lugar do outro e de empatia para com as situações alheias é uma das particularidades que mais falta nas instituições sociais em Portugal. A burocracia existente é necessária para organizar, mas só resulta efetivamente no terreno quando conjugada com a vertente humana.

 

“Às vezes não temos noção do efeito que temos nas pessoas, nós dizemos determinadas palavras que marcam para sempre de forma positiva ou negativa a vida dos outros, agora imaginemos o que fará uma ação para com o outro. E nós temos ações para com estas pessoas todos os dias”, comenta Madalena Palma.

 

A viagem que esta fez ao Senegal veio reforçar ainda mais esta ideia. A dimensão da ajuda prestada pela Estar ultrapassa além-fronteiras e esse reflexo nem sempre é percetível. “O ter ido agora ao Senegal, conhecer as famílias daqueles que nós ajudamos cá, revela muito do nosso trabalho. Nós sabíamos que, ao ajudar um imigrante, estávamos também a ajudar todo um agregado familiar, só que estar lá e ver tem outra dimensão”.

 

O futuro permanece incerto. O inverno espera-se rigoroso. O número de imigrantes não pára de subir. A previsão é que o número de respostas e soluções não se altere. O Alentejo tem um problema em mãos que precisa urgentemente de resolver. Portugal precisa de atuar. Estamos num ciclo.

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