Diário do Alentejo

Chainho, o alentejano, guitarrista, compositor e comendador

27 de abril 2022 - 14:30

António Chainho foi recentemente condecorado, pelo Presidente da República, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, que distingue os que prestam “serviços relevantes a Portugal, no país e no estrangeiro, contribuindo para a expansão da cultura portuguesa”. Aos 84 anos e quase a somar 60 de carreira, o guitarrista e compositor alentejano, de Santiago de Cacém, mentor da primeira escola de guitarra no país, segue com uma vitalidade impressionante: continua a fazer espetáculos e a lecionar guitarra portuguesa, e vai lançar um novo álbum até ao fim do ano. Altura em que sairá também um livro que é a sua biografia. Diz que traz o Alentejo “no coração”!

 

Texto Júlia Serrão

 

“Para quem se apaixonou pela guitarra portuguesa aos 7 anos, e se dedicou cem por cento a este instrumento, foi sempre o meu ‘brinquedo’, é a melhor coisa que me podia acontecer, pois é ver o meu trabalho reconhecido”, comenta a propósito da comemoração que acaba de receber, aos 84 anos. Acrescentando que é “um dos melhores prémios, de tantos” que já recebeu.  

 

Nascido a 27 de janeiro de 1938, em S. Francisco da Serra, concelho de Santiago do Cacém, mestre António Chainho, que agora é comendador da Ordem do Infante D. Henrique, aprendeu a tocar aos 7 anos na guitarra do pai, que “tocava um pouco” e lhe ensinou “as bases do fado, os fados corrido e mouraria”. António, que tinha “bom ouvido” e um traquejo nato para o dito instrumento de cordas, absorvia os ensinamentos do progenitor. Mas aprendia, sobretudo, “ouvindo os grandes mestres guitarristas” que lhe chegava através dos “programas da rádio”, e que considera terem sido os seus “professores”.

 

Conta que acompanhava à guitarra a mãe, que tinha “uma voz lindíssima” e gostava de cantar os fados da Amália Rodrigues, enquanto costurava ou fazia as lides domésticas. “A certa altura, o meu pai até ficou com ciúmes porque eu comecei a tocar coisas, que aprendia com a minha intuição e ouvindo os guitarristas na radio, que ele não conseguia”, recorda bem-disposto. Então, entre pai e filho, trocavam-se os papeis: o mais novo explicava ao mais velho que aquilo, “ao que parecia, era um ‘dó’ ou um ‘ré’ sustenido”.

 

Com a estatura normal de um menino daquela idade, tinha alguma dificuldade em manusear a guitarra do pai “quase” do tamanho dele. Por isso, o avó comprou-lhe “uma guitarrinha, chamavam-lhe requinta, ao senhor José Rosa, que tocava umas coisitas”, e estava de passagem pela aldeia, no tempo em os artistas e os aspirantes a artistas faziam digressão pela província. 

 

QUANDO A INSPIRAÇÃO CHEGAVA, CORRIA PARA A GUITARRA 

Autodidata, foi sempre evoluindo. E, a certa altura, já iam pessoas de Santiago do Cacém e de Grândola à aldeia de S. Francisco “para ouvir o miúdo tocar”. Subiu pela primeira vez a um palco nas festas de Abela, uma freguesia vizinha, e, “tocando uma peça de um guitarrista que se ouvia muito na radio”, foi aplaudido.

 

Rapaz entre duas raparigas, uma mais velha “que cantava muito bem e tinha uma voz linda” que teria ‘herdado’ da progenitora, e a outra mais nova, António Chainho teve uma infância “muito feliz” até à morte da mãe, quando tinha 15 anos. O acontecimento marcou-o “para toda a vida”. “Lembro-me muito da minha mãe, que não teve oportunidade de ver o filho ser reconhecido… Para ela, eu era o Antoninho”, observa emocionado, transportando-se para esse tempo. Hoje, na aldeia onde nasceu, os mais velhos ainda o tratam carinhosamente assim.

 

Foi criança e brincou muito, mas o instrumento musical esteve sempre em primeiro lugar. Lembra-se de interromper muitas partidas de futebol, com os amigos, para pegar na guitarra, porque lhe surgia uma “música na cabeça” que tinha de “pôr cá fora”. Explica: “Descobrir como passar para os dedos o que estava gravado cá dentro, tirar da cabeça para executar é que era difícil”.  Com o mesmo impulso acordava muitas noites às 4 e 5 da manhã, e saía da cama para tocar. A determinada altura já tinha um gravador, por isso, gravava-se para depois se ouvir e autocorrigir. Reconhece que tinha “a vocação de apanhar as coisas de uma forma que dificilmente alguém aprende”. Para de seguida reforçar o papel da radio, onde escutava as “guitarradas transmitidas pela Emissora Nacional”. Anos mais tarde, em Lisboa, seria convidado pela estação publica a formar um conjunto de Guitarras, que durou 25 anos. Naquele tempo de ouvinte atento, estava longe de imaginar que um dia seria ele a tocar na radio. E, quem sabe, a inspirar outras crianças?!

 

À pergunta quais as melhores memórias desses anos de meninice e princípio de adolescência, responde, sem hesitar, que estão associadas à guitarra portuguesa. “São momentos de muita alegria” a tocar para a família e para os amigos, numa aldeia que até tinha “fama de ser de artistas”, comenta. Explicando que havia uma tradição em S. Francisco de cantar o fado, pelo que as pessoas se juntavam no café do pai dele, “bebiam uns copos e cantavam à desgarrada”.

 

NO CAMINHO DA PROFISSIONALIZAÇÃO 

Aos 19 anos em Lisboa para tirar a carta de condução, um primo leva-o a um café perto da rua Morais Soares que tinha um programa de fados ao domingo à tarde, e convence-o a tocar com a guitarra de um dos guitarristas do elenco. “No final, levaram-me em ombros, e fiquei com contactos”, comenta, adiantando que, “pouco tempo depois, esses guitarristas foram com fadistas muito conhecidos fazer um espetáculo de graça na coletividade de S. Francisco”. Quando se muda para Lisboa definitivamente, esses contactos vão-lhe ser “muito úteis”.

 

Mas entre uma coisa e outra, foi tempo de tropa. Cumpriu o serviço militar em Beja e fez dois anos de Ultramar em Moçambique. “Tive a sorte de não haver guerra. Então, o que fazia era tocar guitarra, para animação da companhia”. Entretanto, estreia-se na radio, participando num programa da Radio Nampula semelhante ao que passava no continente: o “Serão para trabalhadores”. E gostou de ouvir-se.

 

No regresso do Ultramar, muda-se para Lisboa, decidido a “fazer uma experiência”. O início do percurso profissional acontece de seguida: passa por “A Severa” para cumprimentar o guitarrista Carlos Gonçalves – o “último guitarrista da Amália”, que era de Beja, e com quem tinha cumprido tropa na capital baixo alentejana –, que o convida a integrar o elenco. Ficou lá seis meses.  “Quando disse ao meu pai quanto ganhava, ele respondeu-me que eu fazia mais numa noite do que ele num mês.”

 

“A Severa” é um marco importante na vida do reputado guitarrista e compositor, que sempre ouvira falar da casa de fados da Mouraria como lugar de excelência. “Eu saía do Alentejo e, poucos dias depois, estava ali a tocar”, diz com visível orgulho. “Foi ali que decidi que a minha vida tinha que ser aquela.” Seguiu-se o restaurante “Folclore”, aceitando o convite do próprio diretor, onde “ganhava mais e saía mais cedo”, pois tratava-se de um “espetáculo para turistas”. Com um horário privilegiado, saía do “Folclore” e ia tocar nas casas de fado do Bairro Alto. Passa a atuar no restaurante “O Faia”, acompanhando à guitarra o Carlos do Carmo e a mãe, ambos fadistas. Ao longo do seu percurso, atuará em muitos outros lugares, como por exemplo “O Picadeiro”, em Cascais, de que seria mais tarde proprietário.

 

O restaurante propriedade da Sociedade Central de Cervejas marcou-o igualmente “muito”: Foi com o “Folclore”, que no inverno fazia a promoção de Portugal no estrageiro, que fez os primeiros espetáculos fora do país, “numa atração de fado e guitarra portuguesa”, que envolvia ainda “mais vinte e tal bailarinos que dançavam dos paliteiros de Miranda ao bailinho da Madeira”. Eram tournées de mês e meio, primeiro na Dinamarca, depois na Finlândia e no Brasil. Trabalhava à noite, de dia perdia-se em percurso exploratórios pelas cidades.

 

Multimédia0

 

UMA CARREIRA A SOLO INVEJÁVEL  

O primeiro trabalho discográfico de António Chainho surge nos finais de sessenta, depois da formação do seu próprio conjunto de guitarras que incluía outro guitarrista e dois violas. Mas, diz-se que é quando grava com Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo e Hermínia Silva, e acompanha Carlos do Carmo e Frei Hermano da Câmara, entre outras referências do fado, que “começa a deixar marcas na história da guitarra portuguesa”, pode ler-se no site antoniochainho.com.

 

Considerado nome maior da guitarra portuguesa, mestre Chainho divide o seu percurso em três fases: “a primeira em que acompanhava os profissionais, como instrumentalista; a segunda em que fiquei só com três artistas – Frei Hermano da Câmara, Carlos do Carmo e Rão Kyao; e a terceira em que deixei tudo para me dedicar a uma carreira a solo”. A sua grande projeção acontece neste período: “Quando se acompanha fica-se na sombra, naquele tempo só se anunciava quem cantava. Felizmente, hoje, já é diferente”. Diz sobre esse ponto de viragem, em que começa a compor: “A partir daí, vou fazer os grandes recitais de guitarra a solo, deslocando-me de um lado para outro, e dividindo o palco com outros grandes músicos.” Foi assim com o grande guitarrista flamenco e compositor Paco de Lúcia e o compositor e maestro americano John Williams. A alguns, que se ‘perdiam’ na complexidade da guitarra portuguesa, conseguiu mostrar “as maravilhas” que tem dentro, um “som” que se assemelha ao de “vários instrumentos”.

 

Em 1996, o guitarrista e compositor grava com a Orquestra Filarmónica de Londres, dirigido pelo maestro José Calvário, o que diz ter-lhe aberto “caminho para o mundo”. Neste álbum gravou um tema “dedicado” ao Alentejo – ‘Voando sobre o Alentejo’ – que é uma inspiração recorrente: “Praticamente, tenho um tema dedicado à região em todos os trabalhos. Tenho o Alentejo no coração.” O lugar para onde volta sempre que pode.

 

CRIOU A PRIMEIRA ESCOLA DE GUITARRA PORTUGUESA 

O currículo do mestre é marcado por outros momentos importantes. Em 1998, grava “A Guitarra e Outras Mulheres”, onde participam Teresa Salgueiro, Elba Ramalho, Filipa Pais e Nina Miranda, que recebe o seguinte comentário da imprensa: “é fado, mas não é fado convencional, porque toda a gente que aparece no disco tem outra bagagem, e é a partir dela que o abordam”, segundo a “Sons”, citada no site do Museu do Fado. Nesse ano, António Chainho recebe o “Prémio de Música Ligeira”, atribuído pela Casa da Imprensa. O álbum “Lisboa-Rio” é resultado de uma união entre a música brasileira e portuguesa, com convidados como Ney Matogrosso e Armandinho. Mais tarde, “os papéis voltam a inverter-se (…) Chainho é convidado para acompanhar as maiores vozes contemporâneas”, escreve-se em antoniochainho.com. No Pavilhão Atlântico, acompanha o cantor lírico José Carreras. Adriana Calcanhoto convida-o a juntar-se a ela numa digressão em Portugal, e Betânia para espetáculos no Rio de Janeiro e São Paulo.  

 

Com uma enorme projeção em Portugal e no mundo, e uma vida familiar bem estruturada, casado e com três filhos, concretiza ainda um antigo sonho: criou a primeira escola de guitarra portuguesa em Lisboa, de que se orgulha muito. E em 2005, era inaugurada a Escola da Guitarra Portuguesa Mestre António Chainho da Câmara Municipal de Santiago do Cacém, numa homenagem ao grande guitarrista e compositor, que ali continua a dar aulas de guitarra, à distância. Sobre o estado desta arte de dedilhar, diz que, “atualmente, há uma dúzia de grandes guitarristas da guitarra portuguesa” e, com o ensino, seguramente vão surgir muitos mais interpretes deste instrumento que, concorda, ser um dos mais difíceis.

 

Com uma vitalidade impressionante, mestre Chainho vai continuar a tocar enquanto os dedos lhe obedecerem, e a fazer espetáculos – atuou recentemente na Expo Dubai – e está a preparar um álbum que vai sair até no fim do ano: “Metade são composições minhas, já tenho sete temas, e as restantes são dos guitarristas que ouvia na radio, numa homenagem a sesses meus professores.” Também se prevê a publicação da sua biografia, na mesma altura.

 

Multimédia1

 

UM DOS MÚSICOS MAIS PRESTIGIADOS 

O guitarrista e compositor foi distinguido com vários galardões ao longo da sua carreira. Para além do “Prémio Música Ligeira”, em 1998, pela Casa da Imprensa, e este maior que é a condecoração no Palácio de Belém pelas mãos do Presidente da República, destaca-se: a “Medalha de Honra” que lhe foi atribuída pelo Câmara Municipal de Santiago do Cacém, em 2005, que também deu o nome de António Chainho ao Auditório Municipal; na Índia foi agraciado com o título de Mestre, pela Music School of Bangalore; recebendo também outras homenagens no Japão e no Brasil. Durante a sua carreira a solo, recebeu igualmente críticas relevantes. Como a da revista internacional Songlines, orientada na descoberta da melhor música à volta do mundo, citada pelo site antoniochainho.com, que o considerou “um dos 50 músicos mais influentes da Word Music”.  Mestre António Chainho ou comendador António Chainho é já uma lenda viva na guitarra portuguesa.

 

Comentários