Diário do Alentejo

A tempestade perfeita: pandemia, seca e guerra

30 de março 2022 - 11:30

O aumento de preço dos combustíveis arrasta atrás de si uma série de outros produtos e serviços, a começar pelos cereais. A atividade agropecuária está ser severamente penalizada, mas não só: o comércio e os serviços também sofrem e, até, a proteção civil pode vir a ressentir-se.

 

Texto Aníbal Fernandes

 

“Isto não pára e as perspetivas não são as melhores”, disse ao “Diário do Alentejo” Rui Garrido, presidente da ACOS – Associação de Agricultores do Sul: “São esperados novos aumentos nos cereais, não apenas nos combustíveis, e outras matérias-primas e fertilizantes que em grande parte vinham da Rússia também vão subir”.

 

“Pouco e pouco vamos procurar novos mercados abastecedores, mas não é algo que se carregue num botão e se resolva”, explica o dirigente associativo recordando que a Rússia e a Ucrânia, são responsáveis por 30 por cento das exportações globais de trigo e de 20 por cento de milho.

 

Há duas semanas, e pela primeira vez, Portugal comprou cereais à África do Sul. Segundo o semanário “Expresso”, esse material deverá chegar durante a próxima semana por barco. No entanto, os preços já não são o que eram: o milho, em dois meses subiu de 650 dólares a tonelada para 748 dólares; o trigo, no mesmo período subiu dos 800 para os 1205 dólares por tonelada.

 

Nuno Faustino, da Associação de Criadores de Porco Alentejano (ACPA) diz que estes “são aumentos que não estávamos habituados a ter e deixa toda a gente muito preocupada. Na nossa fileira estamos dependentes dos cereais na fase de recria que dura cerca de oito meses, só após isso é que os animais se alimentam no montado”, diz explicando que “todo este processo é feito à base de ração e cereais que estão ao dobro do preço do ano passado”.

 

Mas isso não é o pior: a incerteza quanto ao preço a que estes fatores de produção possam vir a ser vendidos leva muitos produtores “a equacionar abandonar a atividade” já que as medidas propostas, nomeadamente “os empréstimos bonificados não são uma solução”.

 

Também João Rosa, proprietário do Beja Parque Hotel está preocupado com o aumento dos preços dos combustíveis e com as implicações que isso acarreta no mundo do turismo, comércio e serviços.

 

“Sabemos como a guerra começou, mas não sabemos como vai acabar. Estas situações causam transtorno em todo o lado, mas numa região débil, como a nossa, é pior”, diz, temendo que possa vir a ser muito mais grave.

 

“O setor do turismo estava a dar sinais de se levantar e quando ainda não estava de pé levou um empurrão. O aumento dos combustíveis arrasta tudo o mais e a capacidade de mobilidade das pessoas é fortemente prejudicada”, diz João Rosa, que espera que não venha a ser necessário a introdução de “senhas de racionamento” como aconteceu na altura da sua meninice, a seguir à II Guerra Mundial.

 

DOIS MESES

No que concerne a cereais para a alimentação humana (pão e massas, por exemplo) o diretor-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral, Eduardo Diniz, assegura que o País tem reservas para “mês e meio a dois meses”, esclarecendo que a França – onde nos abastecemos – está suficientemente aprovisionada, não havendo, por isso, razões que impeçam o acesso a esta matéria-prima, no entanto, o preço pode vir a ser um problema.

 

O mesmo dirigente refere que a questão da segurança e autonomia alimentar da União Europeia é um assunto em aberto uma vez que “não existe a obrigatoriedade de reservas estratégicas”, temendo-se que o problema possa prolongar-se por mais do que este ano agrícola.

 

BOMBEIROS SOFREM

Por enquanto, “não está em causa a operacionalidade dos bombeiros, mas a curto ou médio prazo pode vir a estar”, diz Rodeia Machado, presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Beja.

 

Este dirigente associativo disse ao “Diário do Alentejo” que “a situação já está mal há muito tempo uma vez que o valor de 51 cêntimos por quilómetro que as corporações recebem não é atualizado há uma década.

 

 Na realidade, o transporte de doentes está a ser “subsidiado” pelas corporações e o não aumento da comparticipação pelo governo “põe em causa o socorro prestado pelo principal pilar da proteção civil”, os bombeiros.

 

Para piorar a situação os bombeiros de Beja são credores de “muitas dezenas de milhar de euros” que resulta de serviços prestados e não pagos, a que se acrescenta, nos últimos anos por causa da pandemia, uma redução das receitas e um aumento das despesas. “Os salários podem vir a estar em causa” alerta Rodeia Machado.

 

RESILIÊNCIA DAS EMPRESAS

Em entrevista ao “DA”, o presidente da direção da Associação Empresarial do Baixo-Alentejo e Litoral – NERBE/Aebal, David Simão,  garante que as empresas precisam de “apoios imediatos e diminuição das taxas de IVA”.

 

Antes da invasão da Ucrânia pela Rússia já se observava um aumento de vários fatores de produção. Depois de dois anos de pandemia, em que situações é que se encontram as empresas para enfrentar esta conjuntura no distrito de Beja e no Litoral?

Ao longo do período de pandemia, as empresas e os empreendedores lutaram pela sobrevivência, demonstrando o espírito de resiliência a que nos habituaram. Sabemos que parte desse aumento de preços que se faziam sentir antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, se deviam à escassez de alguns fatores de produção provocada, em boa parte, pela própria pandemia, concretamente [fruto dos] longos períodos de confinamento verificados e que provocaram a diminuição da capacidade produtiva e logística. Era expectável, em condições normais, que essa escassez estivesse ultrapassada em meados do 3.º ou do 4.º trimestre de 2022, o que perante estes novos acontecimentos pode estar posto em causa. As empresas da região, encontram-se debilitadas porque estes dois anos de pandemia causaram estragos e, agora, se lhe somarmos o aumento dos preços destes fatores, irão como é óbvio refletir-se ao nível da capacidade produtiva. Em última instância, estes aumentos serão refletidos no consumidor final. No entanto irão provocar, indubitavelmente, uma contração no consumo e, por isso, esperamos e desejamos que esta guerra tenha um fim a breve prazo. Espero e apelo, mais uma vez, à capacidade de resiliência e de adaptação das empresas do Alentejo para, mais uma vez, tentarem ultrapassar esta situação.

 

Quais os setores económicos que apresentam mais fragilidades perante este cenário?

Podemos dizer que todos os setores de atividade apresentarão fragilidades, pois quando falamos de aumento dos preços da energia, todos, desde pessoas, empresas e inclusive o Estado irão sofrer estas repercussões. Na nossa região, polarizada por micro e pequenas empresas que possuem pouca capacidade económico-financeira e negocial, estas fragilidades serão ainda mais evidentes.

 

As medidas anunciadas pelo Governo são suficientes para minimizar o impacto do aumento dos combustíveis?

As medidas anunciadas pelo Governo até agora irão minimizar de forma muito ligeira esse impacto, no entanto esperamos que novas medidas sejam tomadas de imediato e que poderão passar por apoios diretos à produção e às compras de matérias-primas e materiais que tenham os seus preços afetados pela guerra, diminuição das taxas de IVA de alguns produtos, apoio à tesouraria das empresas, entre outras. Segundo a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), o distrito de Beja é o que apresenta o preço médio do gasóleo mais alto no País.

 

Consegue descobrir alguma razão que justifique esta diferença? A construção (prevista) de uma conduta de Sines para Beja poderia, de alguma forma, inverter esta situação?

É uma situação para qual não temos justificação porque não faz qualquer sentido os preços dos combustíveis, concretamente a gasolina e o gasóleo, apresentarem um preço mais alto do que o resto do País. Mais uma vez a interioridade que se faz sentir na região é comprovada. No que concerne à construção da conduta Sines / Beja poderia, na nossa opinião, ser um fator a contribuir para inverter esta situação, que conjuntamente com outras medidas governamentais de discriminação positiva nos territórios interiores de baixa densidade iriam com toda a certeza permitir

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