Investigadora da Universidade de Évora defende que os homens vítimas de violência doméstica devem ter os mesmos apoios do que as vítimas mulheres. Com uma prevalência muito inferior ao que se verifica no género feminino, porque “a vergonha” ou o não reconhecimento de que estão perante uma situação de abuso impede que peçam ajuda, dados da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima mostram, no entanto, que a procura de apoio por parte dos homens tem vindo a aumentar nos últimos anos.
Texto Nélia Pedrosa
A violência doméstica contra os homens “deve ser encarada como um problema social emergente”, que necessita de “mais investimento e apoio” por parte do Estado e das instituições particulares de solidariedade social (IPSS), à semelhança do que acontece com as vítimas mulheres. Estas são algumas das conclusões do estudo “Violência doméstica e a (in) sustentabilidade das IPSS na prestação de apoio aos homens vítimas de violência”, da autoria de Ângela Malveiro, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais NOVA.UÉvora.
A investigação, realizada no âmbito do seu doutoramento em Sociologia da Universidade de Évora, teve como ponto de partida a primeira casa-abrigo para homens vítimas de violência doméstica criada em território nacional, em Faro, em 2016, então administrada pela Fundação António Silva Leal e já extinta – em abril de 2020 foi inaugurada, pela Caritas Diocesana de Aveiro, uma outra casa de abrigo para homens, a única atualmente em funcionamento no País.
“O que pretendíamos era perceber também como é que as IPSS, que são quase sempre pioneiras nestas questões sociais, nos projetos e iniciativas, apoiavam estes homens vítimas. Qual a importância das IPSS nestes novos desafios sociais dos tempos modernos”, esclarece a investigadora bejense, administradora da referida fundação, adiantando que se pretendia, igualmente, que a investigação “levasse a alguma mudança” e que o fenómeno “da violência na perspetiva do homem” começasse a ser investigado.
Ângela Malveiro, que, para além da casa-abrigo, entrevistou responsáveis da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima e do Ministério da Administração Interna, “que financiava” o projeto-piloto de Faro, sublinha que “a maioria” das vítimas masculinas “nem se identifica” como tal, “porque acha aquilo tudo muito normal”. “Insultos, pressão psicológica, controlo, são também formas de violência. E os homens passam muito por estas situações”, diz a investigadora. Por outro lado, “muitas vezes, quando fazem queixa na polícia”, as situações de violência acabam por ser “menosprezadas” pelos profissionais das forças de segurança. “Dizem: ‘Vire-se é contra ela, então não tem mais força do que a sua mulher?’”. E muitos serão os que não chegam a fazer queixa por “vergonha” ou porque “a parceira ou o parceiro pede desculpas e acreditam”.
O último Relatório Anual disponibilizado pela APAV adianta que, em 2020, das 13 093 vítimas diretas apoiadas pela associação, 74,9 por cento eram mulheres e 17,5 por cento homens. A prevalência do crime sobre as mulheres continua a ser muito superior, mas dados da APAV mostram que o número de casos masculinos registado nos últimos anos tem vindo a aumentar. Em qualquer uma das situações, porém, os números nunca espelham a realidade.
Segundo Ângela Malveiro, não restam dúvidas de que a implementação de estruturas e iniciativas de apoio orientadas para as vítimas homens é fundamental. “A questão é: há interesse em continuar [com estes projetos para as vítimas masculinas]? Percebi que há interesse da parte de todos. Todos percebiam a validade desta resposta social, independentemente da instituição em que se inserisse. Toda a gente defendia que é uma casa necessária, porque não se podem misturar homens e mulheres vítimas [num mesmo espaço], quando eles sentem que o outro é agressor”. Mas, diz, “há constrangimentos, nomeadamente, ao nível da sociedade”.
No seu entender, as verbas destinadas à violência sobre as mulheres devem ser mantidas, ou até aumentadas – “são numa escala muito grande e ninguém tira a validade à violência contra as mulheres, nem à necessidade desse apoio –, devendo ser canalizadas novas verbas para as vítimas homens. “A partir do momento em que se tira de um lado para se dar a outro começa a haver a questão dos interesses”, salienta.
APOSTA EM CAMPANHAS DE SENSIBILIZAÇÃO E FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS
A par do investimento em projetos destinados a apoiar as vítimas masculinas, quer ao nível do atendimento, quer do acolhimento, a investigadora considera que se deve apostar na promoção de campanhas de sensibilização para a problemática, à semelhança do que foi feito na década de Oitenta do século passado para as mulheres, e também na formação adequada dos profissionais das forças de segurança e da saúde, “para estarem conscientes e alerta para este tipo de crime e de violência”.
“Foi feita uma aposta brutal nos anos Oitenta/Noventa pela consciencialização da mulher enquanto vítima e os homens também precisam dessa consciencialização”, reforça, sublinhando que as vítimas homens “levam um atraso de 40 anos em relação às mulheres”. “Quando se fala nas mortes associadas à violência doméstica, já se começa a falar nos homens, o que era impensável há uns anos, mas é preciso fazer mais”, acrescenta.
Assim que se retomar “uma certa normalidade” com o abrandamento da pandemia de covid-19, Ângela Malveiro pretende continuar a dedicar-se ao estudo da violência doméstica no masculino, “comparando números e analisando o que se passou com a pandemia”, porque, “certamente, que os números de vítimas, homens e mulheres, terão aumentado”. Face “à escassez de dados” relativos às vítimas masculinas, diz, a análise abrangerá sempre o território a nível nacional “para ter alguma relevância”.
APAV REGISTA QUATRO VEZES MAIS MULHERES VÍTIMAS DO QUE HOMENS
De acordo com o último Relatório Anual disponibilizado pela APAV, a associação apoiou, em 2020, um total de 13 093 vítimas diretas, sendo que 74,9 por cento eram mulheres e 17,5 por cento homens. Os crimes contra as pessoas (94 por cento) tiveram um maior destaque, com especial relevo para os crimes de violência doméstica (72,6 por cento), que incluem “crimes como maus tratos físicos e psíquicos, ameaça/coação, injúrias/difamação e crimes de natureza sexual”. Também em 2020, ao nível das três estruturas de atendimento a vítimas de violência doméstica existentes no distrito de Beja, das 88 vítimas acompanhadas pelo Núcleo de Atendimentos à Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Beja (NAV), três eram homens; dos 68 novos casos registados pelo gabinete VERA – Vítimas em Rede de Apoio, cinco diziam respeito a homens; e 93 por cento das vítimas acompanhadas pelo GAVA – Gabinete de Apoio à Vítima eram do sexo feminino. As últimas estatísticas da APAV referentes aos homens vítimas de violência doméstica indicam ainda que, entre 2013 e 2018, a associação registou um total de 2745 homens adultos vítimas de violência doméstica e que entre 2013 e 2018 foi possível verificar um aumento percentual de 33,4 por cento.