Diário do Alentejo

Um olhar sobre as rádios locais em tempos de pandemia

01 de fevereiro 2022 - 10:25
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Há uma perspetiva boa e outra péssima dos impactos da pandemia de covid-19 na vida das rádios locais do Baixo Alentejo. Comecemos pela boa. Os diretores de todas as rádios locais ouvidas pelo “DA” registam um aumento do número de ouvintes, gente interessada em obter informação local, credível e em cima da hora sobre a evolução da pandemia. Mas, por outro lado, as dificuldades das empresas e o cancelamento dos eventos autárquicos levou a um corte muito substancial nas receitas publicitárias.

 

Acresce que os apoios do Estado se revelaram “insuficientes”. Reportagem com as rádios Voz da Planície, Planície, Castrense, Vidigueira e Pax.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Como em todas as áreas da sociedade, também os órgãos de comunicação social, particularmente os de âmbito local, sofreram com a pandemia. “Tivemos impactos de vária ordem: os económicos e financeiros, mas também relativos à nossa própria organização interna de trabalho. Tivemos que nos adaptar e também reinventar, desenvolvendo novas estratégias que nos levaram não só à diversificação das fontes de financiamento, mas também a uma nova forma de fazer informação e animação”, conta Natasha Lemos, diretora de informação da Rádio Voz da Planície.

 

A paralisação de muitos setores de atividade e o cancelamento de eventos conduziram à suspensão ou cancelamento de contratos publicitários, o que se traduziu na “redução de um conjunto de receitas que habitual- mente contávamos para a sua promoção”.

 

Segundo Natasha Lemos, a pandemia “veio acrescentar dificuldades às dificuldades com que os meios de comunicação locais já se debatiam”, sendo que “a capacidade de resiliência e de superação, aliados ao ‘know-how’ dos profissionais que trabalham na Voz da Planície foram a chave para ir vencendo esta batalha, que continuamos a travar, dia-a-dia”.

 

Quanto a apoios do Estado, a emissora não contou com mais do que 5500 euros, através de um contrato publicitário com o Turismo de Portugal, um apoio que “não foi suficiente, nem tão pouco justo, pois consideramos que os critérios estabelecidos favoreceram largamente os denominados grandes meios de comunicação social de âmbito nacional. As rádios locais, à semelhança dos outros meios de menor dimensão, ficaram com algumas das migalhas”.

 

De acordo com Natasha Lemos, os órgãos de comunicação social locais “deviam ter sido encarados de outra forma, ou seja, o nosso papel de proximidade com a comunidade, que acaba por ser uma forma de democratização da informação, devia ter sido considerado”. Exemplo disto é a campanha eleitoral para as eleições legislativas. “Ao contrário do que sucede nas eleições autárquicas, nestas eleições, as rádios locais estão impedidas de transmitir os tempos de antena, e logo excluídas de uma fonte de receita”.

 

MAIS OUVINTES

José Manuel Albardeiro, diretor da Rádio Planície, de Moura, anota outro impacto da pandemia: “O aumento da audiência, com o crescimento do número de ouvintes que procuravam nas rádios locais e regionais uma informação mais próxima e uma nova forma de se entreter. Deste ponto de vista, foi possível perceber a importância que as rádios, principalmente as de proximidade, tem na vida das pessoas”.

 

Segundo Manuel Albardeiro, a Planície “não sofreu perdas significativas” ao nível de receitas, acabando por ser “ beneficiada com o pagamento de novas verbas, como a publicidade institucional”. Em resumo: “Houve de facto um decrescimento do número de pequenos anunciantes, mas mantiveram-se as grandes empresas e a venda de publicidade às autarquias, que juntamente com os apoios que chegaram não permitiram quebras”. Ainda assim, considera que o apoio ao nível da publicidade institucional, tanto da parte do Estado como as autarquias, terá de se manter no período pós-pandemia, uma vez que “vêm reforçar as receitas já existentes” e permitir às rádios encontrar fontes de receitas “alternativas” às pequenas empresas.

 

O ano que agora se inicia, revela o diretor da Planície, será de “remodelação” em várias áreas. “A nível logístico, iremos deixar as instalações onde nos encontramos há mais de 30 anos e passaremos para um novo espaço. Em relação à programação continuaremos com os programas financiados e os de participação e temos a esperança de investir e desenvolver a parte digital da rádio, mais concretamente as redes sociais”. O objetivo é o mesmo de sempre, “manter a proximidade à região e às pessoas com o público já existente e tentar chegar ao público jovem”.

 

“A pandemia veio demonstrar que as rádios locais e regionais são muito importantes na pro- cura de informação e de entretenimento. Por exemplo, quando a covid-19 começou, a informação que as pessoas recebiam estava direcionada para o panorama nacional e foram as rádios as pioneiras a informar a nível local como estava a situação no concelho ou no distrito onde as pessoas viviam. Este clarificar de informação verdadeira num nível de proximidade levou as comunidades a não procurarem notícias falsas noutros meios menos fidedignos, como as redes sociais”, conclui José Manuel Albardeiro.

 

“PERDA IMPORTANTE DE RECEITAS”

Na Rádio Castrense, conta Nelson Medeiros, o diretor-geral da estação, os impactos da covid-19 foram sentidos de três formas: deixou de ser possível a presença de público nos estúdios - “por exemplo, o programa Património, que já conta com 32 anos de emissões regulares, sempre acolheu no estúdio os nossos poetas populares, os nossos contadores de estórias, os nossos músicos e os nossos artistas e isso teve de ser interrompido” -, aumentou “de forma significativa” o contacto telefónico com os ouvintes e registou-se uma “perde importante” de receitas publicitárias.

 

“Como se sabe, o tecido económico do Baixo Alentejo é débil, não existem grandes empresas, com exceção de uma ou outra. O pequeno comércio, muito não conseguiu suportar o primeiro ano da pandemia e um dos custos que cortou foi no investimento comercial”, recorda Nelson Medeiros, estimando a perda de receitas em cerca de 80 por cento, “um grande rombo”. Ainda assim, acrescenta, a existência de um “controlo orçamental muito rigoroso” permitiu à Cortiçol, a cooperativa proprietária da estação, ultrapassar as dificuldades e até investir: “Os estúdios foram totalmente requalificados, num investimento de perto de 20 mil euros, foram adquiridos equipamentos totalmente digitais e todos os equipamentos foram substituídos, desde as mesas de mistura, aos microfones, processadores de voz e de áudio”, além de um interface digital para a emissão “online”.

 

Para o responsável pela Castrense, a “principal lacuna” continua a ser a falta de recursos humanos: “Sem meios humanos qualificados, o trabalho de todos fica dificultado. Temos duas ou três pessoas a fazer o trabalho de cinco ou seis, torna-se humanamente pesado, mas a boa vontade e o profissionalismo de todos tem levado a estação a bom porto, ainda que os ventos às vezes nos sejam desfavoráveis”.

 

Nelson Medeiros considera que os apoios financeiros do Estado às rádios locais “são manifestamente insuficientes, já que a carga fiscal, taxas, impostos, licenças e direitos de autores que pagamos nos fazem andar quase sempre com uma ‘garrafa de oxigénio’ às costas”. Na sua opinião, “o Estado é mais implacável com as rádios locais do que com as rádios nacionais”. E explica: “A única coisa que ainda nos ajuda são os projetos de modernização tecnológica que submetemos à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo e que por norma vêm aprovados. Mas para que isto aconteça, temos que ter sempre a nossa parte de investimento garantida, sejam 30 ou 40 por cento do valor do investimento. Ainda assim, se as contas não estiverem com saldo positivo, nem sequer as rádios se podem candidatar a apoios do Estado. Por isso, dão um chouriço a quem lhes dá um porco, como se diz na gíria”.

 

Outros casos de “ injustiça tremenda” na relação do Estado com as rádios locais, sublinha, prende-se com o facto de alguns alvarás serem adquiridos por grupos económicos transformando as frequências em “meros retransmissores, que não cumprem a lei das horas de emissão local e dos noticiários locais que têm que emitir”. Nelson Medeiros dá, como exemplo, a rádio de Almodôvar, “em que a antena está a emitir desde o Pico do Mú, mas cuja emissão vem de um computador instalado em Évora através de link hertziano e em que a maior parte do tempo é emissão religiosa” de uma igreja evangélica. “Será que isto é rádio local? Não há estúdios no concelho, não há repórteres, não há nada… estas coisas a Autoridade Nacional de Comunicações e os outros organismos responsáveis não conseguem ver”.

 

“ TEMPESTADE QUASE PERFEITA”

O diretor da Rádio Vidigueira, Joaquim Oliveira recorda que a emissora “conquistou muito do seu espaço” devido ao papel que desempenha em momentos de crise. “A flexibilidade enquanto meio de comunicação, e a possibilidade de potenciar a informação em direto e a disponibilização de conteúdos na hora, são algumas das características que destacam a rádio em momentos críticos”. É sobretudo nestas alturas que as pessoas “procuram informação credível de um modo rápido” e a estação que dirige, assegura, “tem tido ao longo da sua história a capacidade para corresponder às expectativas dos ouvintes”. E sublinha: “Desta vez repetiu-se a história, a pandemia provocada pela covid-19 gerou transformações na vida de todos nós e teve, naturalmente, impacto nas rádios. Obrigou-nos, mais uma vez, a sermos criativos, dinâmicos e disponíveis. Não foram tempos fáceis, tivemos alguns contratempos em termos técnicos e estruturais”.

 

De acordo com o responsável, foram criadas “equipas em espelho” e houve pessoas em teletrabalho, tudo isso contribuindo para que “fossem criadas novas sinergias e novos hábitos” laborais. “Reinventámo-nos todos os dias. Com o esforço e a dedicação de todos, conseguimos manter a emissão no ar e em direto no período mais critico da pandemia, para que aqueles que contribuem para a nossa existência enquanto rádio são se sentissem sós e desamparados”.

 

A nível financeiro, Joaquim Oliveira quantifica a quebra de receitas publicitárias em mais de 50 por cento, com o cancelamento ou suspensão de diversos contratos. Acresce que a rádio é propriedade da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vidigueira, também eles, à semelhança de todo o País, afetados por um aumento de despesa decorrente da resposta à pandemia. “É só juntar o que a covid-19 provocou nestas instituições ao que provocou nos meios de comunicação social e temos a tempestade quase perfeita”.

 

Em termos conjunturais, como a maioria dos nossos colaboradores são funcionários da Associação, mantivemos a nossa equipa e conseguimos levar o barco a bom porto. Já em termos estruturais, tivemos que adiar, para já, por o período de uma ano, o plano de reestruturação, de meios técnicos, funcionais e de programação, previstos para a rádio”, acrescenta o diretor da Rádio Vidigueira, para quem os apoios do Estado não só “não foram suficientes” como se “materializaram apenas num ano civil, quando já se levava dois de pandemia. Esperamos que neste ano de 2022 se equacione fazer qualquer coisa nesta matéria”.

 

Joaquim Oliveira lembra que antes da chegada do novo coronavírus muitas rádios locais já se encontravam em “sérias dificuldades”, sendo que e no contexto atual as despesas mantiveram-se ou agravaram-se. “Por sua vez, as receitas publicitárias também diminuíram, originando grandes dificuldades de funcionamento que se têm agravado substancialmente com a evolução da crise económica. Até agora, o Governo apenas apresentou uma medida de apoio extraordinário à Comunicação Social, a compra antecipada de publicidade do Estado, o que se manifesta muito pouco em relação aquilo que se poderia fazer”. Na sua opinião é “urgente” a criação de medidas específicas de apoio extraordinário às rádios locais, no apoio à criação de conteúdos informativos e culturais.

 

Ainda assim, nem tudo foi mau. “Mais do que nunca a relação com a rádio por parte dos ouvintes é total, é quase uma relação de dependência. Neste contexto de pandemia, marcou-se uma relação de proximidade e de identidade entre os ouvintes e a sua rádio local, criando-se laços de afeto e de pertença, que a maior parte das vezes, nem é pelo que as rádios transmitem, mas pelo que representam para a sua comunidade. Tornando-as tão especiais, através do sentimento de pertença que os ouvintes nutrem pelas emissoras da sua localidade”.

 

Para Joaquim Oliveira, no Baixo Alentejo as rádios locais são “o expoente máximo de uma relação comunicativa diferente, uma relação de proximidade e de fidelidade dos ouvintes, potenciado em diversas dimensões de identidade local e entretenimento voltado para as populações, consubstanciado no acompanhamento do pulsar social das comunidades”. Explicando melhor: “As rádios locais são nestes tempos de pandemia, o suporte e o escape de uma solidão sofrida e disfarçada, são de uma importância vital para muitas pessoas”.

 

A Rádio Vidigueira, acrescenta, está a meio de um processo de remodelação. “Iniciámos em 2019 um plano que devido à pandemia teve que ser adiado por um ano, de reestruturação geral da rádio. Renovámos equipamentos, licenças dos programas de automação de emissão, comprámos uma antena de emissão nova, computadores, mesa de emissão, enfim um sem número de pequenos equipamentos que são necessários para o normal funcionamento de uma rádio. Para este ano, prevemos comprar um emissor novo e paralelamente vamos iniciar o procedimento de mudança da antena de emissão de Santo António para o Mendro, e vamos apostar na criação de uma ‘app’”. E quanto à programação? Se a pandemia o deixar, haverá novidades “em breve”.

 

A crise, provocada pela pandemia de covid-19, levou ao encerramento de empresas e colocou outras em dificuldades. Consequência imediata: o investimento publicitário caiu. Com as autarquias, a situação repetiu-se: o cancelamento de feiras e eventos culturais traduziu-se numa diminuição da publicidade. Como da parte do Estado “não houve qualquer tipo de apoio”, António Lúcio, diretor-geral da Rádio Pax, diz que tem sido necessário “um grande esforço” para garantir o “normal funcionamento e programação”. O objetivo para 2022 é manter os oito funcionários e sete colaboradores remunerados da empresa

 

Durante os últimos dois anos, durante a pandemia, as rádios sofreram diversas transformações a diferentes níveis. Que impacto sentiu a Rádio Pax com esta mudança repentina?

As rádios desde sempre que acompanham a vida das pessoas e se estas sofreram transformações, este meio também sentiu o impacto causado pela pandemia que se tem vivido. No caso da Rádio Pax esse impacto foi sentido essencialmente ao nível da publicidade, porque as rádios vivem sobretudo de publicidade. Por exemplo, houve muitas empresas que fecharam ou reduziram trabalhadores e por isso deixaram de publicitar na rádio, o que levou a que nós tivéssemos de fazer um grande esforço para que esse que esse efeito negativo não fosse sentido no normal funcionamento e programação da rádio.

 

E a nível de receitas, sentiu-se muito essa repercussão negativa?

 Como já disse anteriormente, a Rádio Pax teve que se esforçar para que o impacto negativo da pandemia não se notasse no trabalho diário da estação, mas como é óbvio as receitas desceram significativamente, o número ficou muito abaixo do espetável. Contudo, conseguimos manter o equilíbrio financeiro face ao trabalho que foi feito em outros anos de precaução para uma eventual crise como esta.

 

E apoios? Houve reforço de apoios por parte do Estado ou das autarquias?

Em termos práticos não houve qualquer tipo de apoios. O Estado facilitou em relação a pagamentos, como o de IRS por exemplo, e ainda que tenha dado início ao apoio da publicidade institucional isso, na prática, não se refletiu em nenhum incentivo. Na realidade, se as rádios estivessem dependentes do Estado já teriam acabado há algum tempo. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo (CCDR Alentejo) permite, através das candidaturas a determinados projetos financeiros, atualizar ligeiramente a parte técnica da rádio, mas de facto não existem apoios específicos e práticos. Em relação às autarquias, elas só conseguem “apoiar” através da publicidade, contudo durante a pandemia os eventos e atividades foram todos cancelados e por isso as receitas que vinham dessa publicidade também diminuíram.

 

Que “feedback” receberam dos ouvintes durante a pandemia?

É curioso… durante a pandemia o “feedback” que a rádio recebeu dos ouvintes através de telefonemas, emails ou de outra forma aumentou significativamente em comparação com o recebido nos meses anterior, principalmente do estrangeiro. A comunidade alentejana emigrada em várias partes do mundo queria ter uma informação pormenorizada e certa sobre a situação na sua terra e entravam em contacto propositadamente com a Rádio Pax para obter esse esclarecimento.

 

Quais os projetos para 2022?

Em termos de programação, a Rádio Pax quer continuar a apostar na informação, que é o alicerce da estação. O nosso objetivo é manter solidamente toda a informação da região e dar atenção a todos os acontecimentos locais. Queremos também continuar a garantir aos nossos ouvintes programas de interesse, que vão de encontro às necessidades da população. Bem como, continuar a valorizar a música tradicional, ou seja, o Cante Alentejano e o Fado, por exemplo. Em relação à dinâmica da empresa, a nossa aposta é tentar manter os oito funcionários e os sete colabora- dores remunerados da rádio.

 

E por último, para si, qual é o valor das rádios locais para o Baixo Alentejo?

As rádios desempenham um papel muito importante nas regiões, principalmente nos momentos de crise. Nestas alturas, as pessoas tendem a procurar informação credível e rápida, a nível local, e as rádios oferecem isso. A nova realidade digital permite também fazer chegar essa informação, em diferentes plataformas, a mais público e esse é o verdadeiro valor das rádios locais alentejanas.

 

 

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