Diário do Alentejo

Denúncias de violência doméstica aumentam no Alentejo

16 de dezembro 2021 - 09:30
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Há cada vez mais denúncias pelos crimes de violência doméstica. Em 2011 foram reportados às autoridades 878 casos. Em 2020 foram mais 25 por cento: 1096 casos, 231 dos quais no Baixo Alentejo (onde a taxa de incidência deste crime “disparou” 38 por cento. Em declarações ao “DA”, a procuradora Aurora Rodrigues, do DIAP de Évora, diz que a situação ainda será pior do que a demonstrada pela estatística oficial pois, devido á pandemia, “as vítimas ficaram mais isoladas, sobretudo as mulheres, e mais controladas. E daí que, provavelmente, 2020 nem reflita bem a realidade”.

 

Texto Luís Godinho 

 

Em março de 2021, Paulo Duarte foi condenado pelo Tribunal de Beja a uma pena de dois anos de prisão por um crime de violência doméstica, 10 anos por homicídio qualificado agravado, na forma tentada, e mais cinco pela prática de um crime de homicídio simples agravado, também na forma tentada. Em cúmulo jurídico, acabou condenado a uma pena de 14 anos de prisão, reduzida para 12 por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, transitada em julgado.

 

O tribunal deu como provado que o arguido manteve um relacionamento amoroso com a vítima, A., entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, altura em que esta “retomou” o relacionamento com um antigo companheiro. “Não me voltes a procurar que eu estou com o meu namorado”, disse-lhe A., através de mensagem telefónica. “Sabes, vai-se acabar mesmo tudo de uma vez, podes querer”, respondeu o homem, que no dia seguinte se dirigiu ao lar, na Vidigueira, onde a vítima trabalhava. Telefonou-lhe sete vezes. E enviou mensagens de texto: “Andaste a gozar comigo, lembra-te que tens uma filha”.

 

Seguiram-se mais telefonemas, não atendidos, e mais mensagens: “Talvez um dia pagues o que tens feito”. Até que na madrugada de 27 de fevereiro de 2021, munido de uma caçadeira, Paulo Duarte regressou ao lar. Esperou. Acompanhada por uma colega de trabalho, A.  saiu do trabalho e dirigiu-se para o carro, estacionado a cerca de 50 metros. “Paulo Duarte, colocando-se atrás das vítimas, sem que as mesmas o vissem, efetuou três disparos na direção das mesmas, atingindo A. na face, pescoço, tronco e membros superiores e C. no antebraço, mão esquerda, e coxa direita”.

 

Segundo o tribunal, o arguido agiu “com o propósito de pôr termo” à vida da vítima. Mas não só. “Sabia o arguido que as expressões que dirigiu a A. eram aptas a atingir a sua honra, consideração e dignidade pessoal, e a causar-lhe medo, perturbação, inquietação e humilhação, e, não obstante, quis atuar da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, que também logrou conseguir, bem sabendo que, na qualidade de ex-namorado da vítima, sobre si impendia um dever acrescido de respeito para com aquela, bem como um dever acrescido de não atentar contra o seu bem-estar físico e psíquico”.

 

É um caso extremo de violência doméstica. A que se poderiam juntar muitos outros, tanto ou mais graves. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2011 as autoridades policiais registaram 878 casos de violência doméstica no Alentejo (167 no Baixo Alentejo), números que “dispararam” em 2020: 1096 casos em todo o Alentejo (aumento de 24 por cento), e 231 no Baixo Alentejo (mais 38 por cento).

 

“Os casos de 2020, provavelmente, até nem refletirão bem a realidade porque foi quando começou a pandemia e houve muitas denúncias que não foram feitas. Portanto, as vítimas ficaram mais isoladas, sobretudo as mulheres, e mais controladas. E daí que, provavelmente, 2020 nem reflita bem a realidade, que é capaz, admito, de ser superior”, diz Aurora Rodrigues, Procuradora da República jubilada do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Évora, com jurisdição em toda a região.

 

“Há estudos que indicam que, efetivamente, em 2020 a realidade será superior às denúncias. A diferença entre 2011 e 2020 tem que ver que ao longo do tempo as vítimas foram ganhando alguma determinação pelo menos no sentido de apresentarem denúncias, de se queixarem e denunciarem as situações. O processo foi interiorizado de outra forma, no que respeita às vítimas, de modo que deixaram de entender, como muitas vezes entendiam, que o normal é ser vítima, que é normal as mulheres serem vítimas na família”, acrescenta Aurora Rodrigues. “Talvez a diferença entre esses dois números poderá ser essa, mas talvez os números, sobretudo quanto a 2020, não reflitam a realidade”.

 

Isto porque, apesar de tudo, “ainda é difícil” uma vítima apresentar queixa. Explica a procuradora: “Os estudos indicam que as vítimas tentam resolver por si as situações. Acreditam muitas vezes, até pelas crenças que têm, que a situação se resolve. E isso depois também tem que ver com a forma como a violência doméstica, a violência no seio da família, em relações de intimidade, se apresenta”. E apresenta-se com ciclos. “Há uma primeira fase que é crescente, depois há a fase do apaziguamento e, como tal, as vítimas acreditam que a situação se pode resolver e elas próprias não se determinam à apresentação da situação, à denúncia da situação. Essa é uma das dificuldades. A outra das dificuldades é que as estruturas não estão ainda, do meu ponto de vista, preparadas para acolher as mulheres quando denunciam as situações” de violência doméstica.

 

Não estão preparadas de um ponto de vista logístico – “por exemplo, está previsto que as mulheres e pessoas que são vítimas, e são vítimas vulneráveis, sejam atendidas por profissionais da polícia, das forças de segurança, do mesmo sexo, quando assim o pretendem, e isso nem sempre está garantido e está longe de ser garantido” – e, por outro lado, “nem sempre as vítimas são acreditadas”. Ou seja: “Nem sempre quem está para receber uma denúncia acredita no que a vítima relata. E muitas vezes não o diz expressamente, não recusa receber a queixa, mas a forma como a vítima é tratada, sobretudo as mulheres que são vítimas de violência doméstica, revela que esta não está a ser compreendida, que não está a ter credibilidade por parte do profissional que recebe a queixa”.

 

E depois, há ainda a questão do acompanhamento das vítimas. Segundo Aurora Rodrigues, “fazer uma denúncia talvez até nem seja o mais difícil”, o maior problema vem a seguir: “O que é que a vítima faz? Volta para casa? Tem uma estrutura de emergência para a acolher a ela e aos filhos, como normalmente sucede? As vítimas não vêm sozinhas, vêm com os filhos e ir para uma pensão é uma resposta? Não é. Justificar-se-ia a existência de casas abrigo de emergência, que não existem. Isto não significa que não existam em todo o País, existirão nos grandes centros, das grandes cidades. O País, a esse nível, como em muitos outros, funciona a velocidades diferentes”.

 

Outro caso, que remonta a 2018 e julgado este ano no Tribunal de Beja. Jean-Claude da Silva foi condenado a dois anos e seis meses de prisão pelo crime de violência doméstica, a três anos e seis meses pelo crime de violação (ocorrido em Vagos) e a mais cinco anos por outro crime de violação (em Vila Nova da Baronia, concelho de Alvito), num cúmulo jurídico de sete anos e seis meses de prisão, além das penas acessórias de frequência de programas específicos de violência doméstica, em ambiente prisional, e proibição de contactos com a vítima.

 

Entre os factos dados como provados em tribunal, incluem-se discussões do arguido com a vítima, M., “relacionadas com o seu descontentamento com o horário de trabalho”, tendo o homem “desferido bofetadas, cabeçadas, empurrões contra o roupeiro, e apertos de pescoço à vítima, que provocavam o seu desmaio”. Além disso, no período em que durou o relacionamento, “foi o arguido quem levou e foi buscar a vítima aos seus locais de trabalho”, era ele “quem escolhia a indumentária diária, nomeadamente roupa, acessórios, calçado e roupa interior” e ainda quem “geriu o vencimento da vítima, não permitindo que a mesma fizesse uso de quaisquer quantias sem autorização sua”. A mulher chegou a estar “proibida” de falar com os filhos ao telefone.

 

“As vítimas não só não têm a resposta, como não sentem que há respostas imediatas. Pensam que para arriscar, uma vez que a apresentação de uma denúncia implica um risco, desde que o agressor tenha conhecimento disso, a vítima torna-se mais vulnerável e o agressor pode tornar-se mais violento, a escalada de violência pode aumentar e daí que não tenham, de facto, as vítimas, a vida muito facilitada”, explica Aurora Rodrigues. “Não só não encontram resposta, muitas vezes, como receiam não as encontrar e, mal por mal, ficam no mal que conhecem. Daí que este aspeto tenha de ser alterado e as vítimas tenham de ganhar confiança. Só que essa confiança tem de se traduzir em respostas reais”. Respostas que não existem.

 

A Procuradora da República reconhece que “ainda é muito difícil” a apresentação de queixa, “sobretudo no que respeita à violência psicológica, porque não há só violência física, aliás as duas aparecem juntas, bater numa pessoa é violentá-la também psicologicamente”. Ou seja: “A prova como os factos ocorrem na maior parte dos casos num espaço limitado, fechado, que é a casa de família, é difícil de fazer sobretudo porque se atende às evidências físicas quando há outro tipo da violência. Mesmo quando se atende à violência física e às lesões, não se atende muitas vezes ao trauma. O trauma é um aspeto que está a leste e a léguas de ser avaliado e conhecido”.

 

Segundo Aurora Rodrigues, “quando uma vítima apresenta lesões é mais fácil provar que foi agredida, embora não seja assim tão fácil quanto isso, mas é mais fácil. Só que quando se atende à violência e às lesões, não se atende ao trauma, portanto isso é um dos aspetos que terá que ser alterado”.

 

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