Diário do Alentejo

Ventura ganhou onde existe maior comunidade cigana

05 de agosto 2021 - 10:05

Um estudo da autoria de Alexandre Afonso, professor associado da Universidade de Leiden, nos Países Baixos, conclui que o candidato do partido Chega nas presidenciais de janeiro obteve mais votos nos concelhos onde existe um maior número de pessoas de etnia cigana e onde há mais residentes a beneficiar da assistência social.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Nas presidenciais de janeiro último, André Ventura, candidato do partido Chega, obteve mais votos nos concelhos onde existe um maior número de pessoas de etnia cigana, sendo “Moura um dos casos mais extremos desta relação”. Esta é uma das principais conclusões do estudo “Correlações de apoio agregado à direita radical em Portugal”, da autoria do investigador Alexandre Afonso, da Universidade de Leiden, nos Países Baixos.

 

“O fator mais claramente associado com o voto no partido Chega é a percentagem de indivíduos de etnia cigana”, reforça o investigador em declarações ao “Diário do Alentejo”, admitindo que espera uma “tendência similar” nas autárquicas de setembro próximo, mesmo que “as campanhas locais sejam diferentes e menos centradas sobre um candidato (Ventura) do que as presidenciais”.

 

Outra das principais conclusões da investigação é que “o Chega recebe mais votos em concelhos onde há mais residentes a beneficiar da assistência social”, o que “pode significar que o voto no partido cresce onde os grupos que podem ser construídos como ‘outsiders’ (o que se aplica também aos ciganos) são maiores”, diz.

 

Contrariamente ao que se verifica com a comunidade de etnia cigana, o estudo revela que a proporção de imigrantes não tem um impacto significativo na votação em André Ventura. De acordo com o professor associado da Universidade de Leiden, isso poderá dever-se ao facto de a comunidade cigana “ser mais estigmatizada” e “sofrer mais problemas de integração que muitas comunidades estrangeiras” e também porque “há maiores concentrações de comunidades ciganas em meio rural, onde a convivência pode ser mais problemática do que em meio urbano”.

 

O estudo “Correlações de apoio agregado à direita radical em Portugal”, esclarece Alexandre Afonso, teve como objetivo “tentar explicar por que é que o partido Chega obteve mais votos em certos municípios portugueses do que em outros, usando métodos estatísticos comuns, nomeadamente, regressões”. “O objetivo é ver, controlando outros fatores, quais são as características de municípios que são associadas a maiores proporções de votos para o Chega”, acrescenta.

 

O investigador adianta, ainda, que ficou surpreendido por “não haver relação com indicadores económicos, como ganhos, preço da habitação, entre outros, já que o Chega diz querer representar os ‘deixados para trás’ economicamente”. Assim, afirma, “não são os municípios mais pobres ou com maior desemprego que votam mais no Chega”.

 

O estudo conclui igualmente que André Ventura recebe mais “percentagem de votos em concelhos mais pequenos e com menos densidade populacional” e que “há maiores percentagens de votação no Chega onde há mais idosos”, o que não quer dizer, contudo, “que os idosos votam mais no Chega”, sublinha o professor.

 

Recorde-se que nas presidenciais de janeiro o candidato do Chega teve a sua maior votação na freguesia de Póvoa de São Miguel, no concelho de Moura, onde cerca de metade votou (47,8 por cento) e, destes, 41,23 por cento deram o voto a André Ventura, que ficou à frente de Marcelo Rebelo de Sousa. Também na freguesia de Sobral da Adiça, dos 41,75 por cento de votantes, 34,05 por cento escolheram Ventura, que, assim, ganhou a Marcelo Rebelo de Sousa. Segundo os dados totais para o concelho de Moura, o candidato do Chega obteve 30,85 por cento dos votos e Marcelo Rebelo de Sousa 39,12 por cento.

 

DISCRIMINAÇÃO AUMENTA

 

O presidente da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), que tem sede em Beja, diz ao “Diário do Alentejo” que o estudo vem confirmar aquilo que já se sabia: “Tanto em Sobral da Adiça, como em Póvoa de São Miguel”, André Ventura – “um senhor que aparece do nada e ataca os ciganos” – ganhou “porque há uma comunidade cigana muito grande”. Surpreende-o sim, diz, é que, em pleno século XXI, “se veja ainda muita discriminação e muito racismo”.

 

Prudêncio Canhoto acusa André Ventura de se aproveitar de toda e qualquer situação que envolva negativamente a comunidade cigana para ganhar votos e dá como exemplo os desacatos que ocorreram no final da semana passada numa esplanada em Reguengos de Monsaraz, no concelho de Évora, que tiveram como consequência três feridos, dois deles ligeiros, vítimas de atropelamento por um homem de etnia cigana que, posteriormente, abandonou a viatura envolvida.

 

“Hoje [terça-feira, dia 20] André Ventura está em Reguengos. No norte também houve desacatos, mas lá ele não vai. Vai a Reguengos porque a confusão foi com um rapaz de etnia cigana. Vai aproveitar-se do povo, de quem está revoltado com o que aconteceu. Ele aproveita-se das situações para ganhar apoiantes e votos. Atua na hora certa. Em Reguengos também vai ganhar [nas autárquicas]”, afirma o responsável, salientando que “na comunidade cigana, como na comunidade maioritária, há bom e mau, há de tudo”, sendo que “as autoridades têm competência para resolver as situações”.

 

Ainda em relação às próximas eleições autárquicas, Prudêncio Canhoto acredita que se vai verificar o mesmo que nas presidenciais de janeiro, até porque o Chega “já tinha ganho votos nas legislativas” de 2019. “Não sei, se calhar até poderão tirar um vereador em Moura”.

 

E se “antes podia haver racismo, mas estava escondido”, diz o presidente da AMEC, atualmente, devido ao partido Chega, as pessoas falam “mais abertamente”, verificando-se “um aumento da discriminação” contra a comunidade cigana.

 

INSTRUÇÃO

 

“É A MELHOR ARMA PARA A IGUALDADE

 

Para Olga Mariano, ativista pelos direitos da comunidade cigana e atualmente presidente da Letras Nómadas – Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas, as conclusões do estudo, relativamente à comunidade cigana, são fruto da “lavagem cerebral” que André Ventura tem vindo a fazer “às pessoas dos concelhos onde habitam maiores comunidades ciganas”.

 

“Fazer dos ciganos o bode expiatório foi a forma de ele chegar às pessoas indecisas [quanto à votação], às pessoas menos letradas, de comunidades mais rurais. Aproveita-se dos poucos benefícios que a comunidade cigana tem a nível social e diz que são retirados aos salários dos trabalhadores rurais, dos que estão mais distantes dos grandes centros urbanos”, adianta a também cofundadora da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas.

 

No entanto, sublinha, no universo dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), a comunidade cigana “representa 3,8 por cento, sendo os outros 96,2 por cento não ciganos, segundo os últimos dados disponibilizados pela Segurança Social”. Olga Mariano admite que essa percentagem tenha subido com a pandemia de covid-19, mas mesmo assim continua a ser reduzida, diz.

 

E à semelhança do presidente da AMEC, considera que a discriminação aumentou devido a André Ventura. No seu caso concreto, assume que, em “71 anos de vida”, nunca se sentiu tão discriminada como atualmente. “Em todos os lados que piso sou olhada como sendo uma coisa que os vai confrontar, que lhes vai tirar a vez, que os vai roubar, manipular, são mil e um adjetivos. Antes do Chega, se havia alguma população que não gostava dos ciganos, estava muito camuflada. Esse senhor fez com que hoje em dia até seja uma coisa obrigatória falar mal dos ciganos”.

 

A ativista defende que a instrução “é a melhor arma para a igualdade”, ao permitir que a comunidade cigana “saiba com mais clareza” quais os seus direitos e deveres. “A escola é o melhor que se pode ter para nós usufruirmos do nosso direito de igualdade, de cidadania portuguesa, porque somos portugueses desde o ano 1500. Toda a nossa descendência é portuguesa. De outra forma é muito difícil”, acrescenta, frisando que a educação é a sua “luta”.

 

Para além disso, “o outro também tem de nos aceitar como um cidadão de igual para igual, porque o caminho faz-se dos dois lados. Não é só nós mudarmos, porque não vamos mudar a nossa cultura. Nós adoramos a nossa cultura, como os alentejanos adoram a cultura alentejana. O que seria dos alentejanos sem as benditas açordas, as sopas de tomate, sem as migas?”.

 

Mas a comunidade cigana só será aceite, prossegue, quando “as entidades empregadoras, numa procura ativa de emprego, numa entrevista de emprego, não discriminarem os ciganos quando eles têm as mesmas qualificações, ou superiores, do não cigano”, e quando “acabar a discriminação” no acesso ao arrendamento ou compra de habitação, deixando se ser necessário recorrer “a mediadores ou a não ciganos”.

 

Olga Mariano considera ainda que a “figura do mediador ou mediadora deve ser reposta imediatamente nas várias instituições escolares”, para que as meninas, principalmente, possam prosseguir os seus estudos no segundo ciclo. “Isso dá outra respeitabilidade, porque os nossos hábitos são diferentes. Os pais dessas meninas teriam muito mais confiança”.

 

Para Prudêncio Canhoto, resume-se tudo a uma palavra: oportunidade. “É preciso dar aos ciganos as mesmas oportunidades, em todas as áreas – escola, emprego –, para ver do que é que são capazes. Para verem que também há ciganos bons, com muita qualidade, capacitados. É preciso apostar neles”. Porque, garante o presidente da AMEC, “há muitos ciganos à procura de trabalho, mas as portas fecham-se porque se vão dar emprego a um cigano perdem logo os seus clientes”. Uma maior visibilidade da comunidade cigana na sociedade, diz, levará a uma maior integração e aceitação. “É caminho para que se vá desconstruindo esta mentalidade do ódio e do racismo”, conclui.

 

COMUNIDADE CONTINUA A CRESCER

 

De acordo com o último Mapeamento das Comunidades Ciganas do Distrito de Beja, levado a cabo em julho de 2018 pela AMEC, com o apoio do Núcleo Distrital de Beja da EAPN Portugal/Rede Europeia Anti Pobreza, e ao abrigo de uma candidatura ao Programa de Apoio ao Associativismo Cigano do Alto Comissariado para as Migrações, no distrito de Beja viviam 3666 ciganos, o que representava 2,4 por cento do total de habitantes no território nacional. Comparando esses dados com o estudo de caracterização da população cigana realizado em 2010 pelo Centro Distrital de Segurança Social, contabilizavam-se mais 1618 pessoas, o que representava um aumento de 79 por cento em oito anos. Desses 3666, 2065 eram crianças e jovens e 1601 adultos. Beja (com 1399), Moura (983), Serpa (469), Aljustrel (205) e Vidigueira (204) eram os concelhos que apresentavam o maior número de elementos de etnia cigana. Prudêncio Canhoto diz que a comunidade “continua a crescer ano após ano” e que “todos os anos nota-se que há mais crianças”. O presidente da mesa do conselho geral do Núcleo Distrital de Beja da EAPN Portugal, João Martins, adianta que os dados de 2018 já apresentam “alguma desatualização face à situação atual”, pois a comunidade cigana “cresceu ligeiramente até à presente data, com maior expressão nos concelhos de Beja, Moura e Serpa e menor em Ourique, Odemira e Barrancos”.

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