Diário do Alentejo

Mais de 350 crianças em risco no Baixo Alentejo

23 de julho 2021 - 16:35

As comunicações sobre eventuais situações de perigo e o número de processos instaurados pelas comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ) diminuíram em 2020, segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ, elaborado pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. Este decréscimo é justificado pela pandemia de covid-19 e consequente encerramento das escolas, uma das principais entidades comunicantes. As comissões de Beja, Odemira e Moura, que apresentam, geralmente, o maior número de casos no conjunto das 14 CPCJ do distrito de Beja, instauraram, no ano passado, 242 novos processos, menos 47 do que 2019. As três comissões contabilizam, no total, 351 processos ativos.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

No primeiro semestre deste ano a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Moura recebeu 89 comunicações de eventuais situações de perigo, número que ultrapassa já as comunicadas durante todo o ano de 2020 (86). Em 2019 registaram-se 100. O decréscimo de comunicações de 2019 para 2020 – uma tendência verificada a nível nacional, segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2020 –, é explicado, de acordo com a presidente da comissão, pelo “primeiro confinamento” devido à pandemia de covid-19 e consequente encerramento dos estabelecimentos de ensino.

 

“A principal entidade sinalizadora é a escola. Durante o primeiro confinamento os procedimentos a adotar face à situação ainda não tinham sido definidos, o que explica, em parte, o decréscimo das sinalizações”, diz Marisa Moita Ferreira. A responsável frisa que “as escolas desempenham um papel social incontornável no desenvolvimento das crianças, garantindo-lhes o acesso a serviços essenciais de educação, proteção, nutrição, apoio psicossocial e saúde”, e que o seu “encerramento potenciou o risco de exposição à violência para mulheres e crianças e limitou bastante a ação protetiva da escola e o papel que a mesma representa no que diz respeito à monitorização e sinalização de situações de risco e perigo”.

 

Em 2021, prossegue a presidente, “há um maior número de sinalizações, o que conduz a um maior número de processos instaurados”, e que se deve “a uma maior sensibilidade da comunidade e entidades e também a uma maior visibilidade da CPCJ, e da sua prática, e à facilidade que as entidades têm em efetuar as sinalizações, uma vez que existe um maior esclarecimento relativo à atuação da CPCJ e ao dever protetivo de todos os cidadãos, que passa por comunicar as eventuais situações de perigo”.

 

Em 2020 foram instaurados 51 novos processos de promoção e proteção, menos 22 do que em 2019. No primeiro semestre deste ano foram abertos 40 novos processos. No total, incluindo os transitados e os reabertos (a maioria deve-se a reincidências), em 2019 foram acompanhados 165 crianças e jovens; em 2020, 121; e, no primeiro semestre deste ano, também 121. Atualmente, estão ativos 81 processos. Em relação ao escalão etário, destaca-se, em 2019, 2020 e nos seis meses de 2021, os jovens entre os 15-17 anos.

 

CPCJ MANTIVERAM ACOMPANHAMENTOS

 

Marisa Moita Ferreira salienta, contudo, que, desde o início da pandemia, a CPCJ de Moura “mantém a sua prática e o acompanhamento diário das crianças com processo na comissão”. No primeiro confinamento as instalações estiveram encerradas “durante um curto espaço de tempo, mas depois disso, e até durante o segundo confinamento [em 2021], mantivemos a nossa ação exatamente igual, com os cuidados associados à situação de pandemia, dando resposta em tempo real às situações que nos foram chegando”, diz. E acrescenta: “Este ano todos estávamos mais preparados, inclusivamente as escolas, o que motivou uma vigilância mais ativa das crianças e jovens que, estando em casa, continuavam ou não a frequentar as aulas”.

 

À Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Odemira foram comunicadas, em 2020, 80 situações de perigo, menos 10 do que em 2019. “Os estabelecimentos de ensino representam um número muito significativo entre as entidades sinalizadoras, e com as escolas fechadas grande parte do ano letivo 2019/2020 [devido ao confinamento] é natural que os casos comunicados tenham baixado”, justifica a presidente, Ana Correia.

 

Em 2019 foram instaurados 87 novos processos e, em 2020, menos 10. Incluindo transitados e reabertos, em 2019 foram acompanhados 117 crianças e jovens e, em 2020, 110. Atualmente, a CPCJ de Odemira tem 144 processos ativos. À semelhança de Moura, em 2019 e 2020, destaca-se a faixa etária 15-17. Seguem-se, nos dois anos, embora em situação inversa, as faixas 6-8 e 11-14 anos.

 

A responsável pela CPCJ de Odemira sublinha, também, que “os serviços não encerraram” devido à pandemia. “As reuniões semanais da comissão restrita e as mensais da comissão alargada sempre se realizaram, recorrendo muitas vezes à videochamada. Suspenderam-se, durante os períodos de confinamento, os atendimentos presenciais e as visitas domiciliárias. A CPCJ contactava as famílias por telefone com o objetivo de conhecer a situação escolar das crianças no domicílio, necessidades sentidas, maior articulação com as entidades responsáveis em matéria de infância e juventude. Algumas crianças continuaram a frequentar o ensino presencial”.

 

“Quando as escolas recomeçaram as aulas presencialmente, os casos explodiram”, afirma, por sua vez, a presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Beja. Em 2019 foram abertos 129 novos processos, em 2020, 114, e, no primeiro semestre deste ano, “já foram instaurados 65”, realça Maria de Jesus Ramires. “Se compararmos os processos instaurados de 2019 a 2021, no primeiro semestre, nitidamente se percebe que houve uma ligeira descida de 2019 para 2020, mas que, em 2021, no primeiro semestre, há uma tendência para a sua subida”, esclarece. E prossegue: “Olhando para os totais de processos transitados, instaurados e reabertos ou transferidos de outras CPCJ – 2019 (286), 2020 (290) e 2021 (222) – verifica-se uma incidência de aumento de número de casos”.

 

Quanto às comunicações de situações de risco, o aumento verificado no primeiro semestre deste ano, comparativamente a igual período do ano passado, deve-se ao acréscimo de comunicações por parte das escolas “devido à situação pandémica”, diz a responsável. “O ensino à distância, e devido a um conjunto de dificuldades identificadas, como acesso à Internet, a equipamentos adequados, e, sobretudo, o facto de alguns encarregados de educação não valorizarem a escola como prioritária, levou ao absentismo ou abandono escolar. O estatuto do aluno prevê que ao fim de 10 faltas consecutivas seja comunicado às comissões a situação escolar da criança, logo, a escola, esgotadas as diligências necessárias, comunica à CPCJ”.

 

Maria de Jesus Ramires frisa, ainda, que a pandemia mostrou “como é importante a equipa ser coesa”, pois conseguiram “manter a funcionar a comissão com todas as suas valências, independente do número de comissárias presentes”.

 

A presidente realça, contudo, que, desde 2019, se tem vindo a verificar “um aumento de processos”, sendo que, em 2018, por exemplo, “o número de ativos não chegava aos 100”. Tal se deve “a alguma dificuldade na intervenção mais direta das entidades da primeira linha”, isto é, com “competência em matéria de infância e juventude (saúde, educação, segurança social, entidades policiais, autarquias, IPSS, entre outras), que deverão atuar em consenso com a família, no âmbito das suas atribuições, promovendo ações de prevenção, de estratégias de intervenção necessárias e adequadas à diminuição ou erradicação dos fatores de risco”.

 

Esgotadas as intervenções, “e se a criança ou jovem continuar em risco/perigo”, então é que a comissão deverá atuar. No entanto, só o poderá fazer “após o consentimento dos pais, representantes legais ou quem tenha a guarda de facto, e a não oposição da criança, se tiver 12 ou mais anos”, salienta Maria de Jesus Ramires, que chama atenção para o facto de ser “muito fácil ‘julgar’ o papel interventivo ou não dos comissários, quando, por desconhecimento, acusam de não haver atuação na situação de perigo”. “Se não nos for dado, por escrito, este consentimento, não poderemos atuar e aí o processo irá para tribunal. Não basta estar ‘sinalizado’…”.

 

NEGLIGÊNCIA, ABSENTISMO/ABANDONO ESCOLAR E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 

Negligência, comportamentos de risco/antissociais e absentismo/abandono escolar constituíram as categorias de perigo mais representadas nas comunicações recebidas pela CPCJ de Moura em 2019. Em 2020 e 2021 o absentismo/abandono escolar passam a ocupar o primeiro lugar, seguidos da negligência. Em terceiro surge a violência doméstica, uma categoria que, segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2020, está a ganhar destaque a nível nacional.

 

Marisa Moita Ferreira reforça que “a negligência”, que pode assumir vários tipos, “ao nível da saúde, educação e falta de supervisão e acompanhamento familiar”, é, “de todas as problemáticas, a que maior incidência tem no concelho de Moura”.

 

“Existe uma grande prevalência da negligência ao nível da educação, que se traduz no absentismo e abandono escolar precoce, e que se deve à pouca valorização que as famílias, maioritariamente com níveis muito baixos de escolaridade e elevada taxa de desemprego, atribuem à educação, não encarando a valorização académica dos seus descendentes como fator potenciador de um estilo de vida mais autónomo”, especifica, sublinhando que “o casamento precoce e a gravidez adolescente são também fatores que causam grande preocupação” no concelho.

 

O “aumento das sinalizações por violência doméstica”, refere ainda a responsável, é motivado “por as pessoas e entidades estarem mais despertas para o facto de uma criança que assiste a episódios de violência doméstica também ele ser vítima da mesma, apesar de não ser a principal visada”.

 

Na CPCJ de Odemira as principais situações de perigo comunicadas, em 2019, foram “exposição a violência doméstica, exposição a comportamentos desviantes e a criança/jovem assume comportamentos que afetam gravemente a sua saúde, segurança, desenvolvimento, sem que os pais se oponham de modo adequado”. Em 2020, mantêm-se a “exposição a violência doméstica e a criança/jovem assume comportamentos que afetam gravemente a sua saúde, segurança, desenvolvimento, sem que os pais se oponham de modo adequado” e é acrescentada à lista a “negligência”.

 

“A exposição a comportamentos desviantes diminuiu durante o período de confinamento de 2020 (reduzido poder de mobilidade) e aumentou a negligência (escolas fechadas, cansaço/teletrabalho em simultâneo com o cuidar do ou dos filhos, mais escola online, falta de paciência por parte dos pais, falta de cuidado em relação aos filhos)”, esclarece Ana Correia.

 

Segundo a responsável, estas situações de perigo podem ser explicados por “contextos familiares onde o conceito de igualdade de género ainda é um problema e onde os direitos da mulher como pessoa e cidadã não são respeitados. Pais com fracas competências parentais. Percurso escolar de sucesso pouco valorizado na família. Baixas perspetivas para o futuro por parte das crianças e jovens”, pelo que é fundamental “continuar com as campanhas de sensibilização para a igualdade de género” e apostar “em projetos dirigidos a pais para a promoção de uma parentalidade positiva”.

 

No primeiro semestre deste ano, na CPCJ de Beja, “o direito à educação (absentismo e abandono escolar)” surge no topo das situações de perigo comunicadas, seguido de “criança/jovem exposto ou assume comportamentos que põem em causa a sua segurança e desenvolvimento” e “violência doméstica”. “Sabemos que a situação pandémica que estamos a viver tem contribuído para o desemprego, promovendo um agravamento social e económico das famílias e, consequentemente, para a degradação das relações familiares. Isto conduz ao abandono escolar, à violência e a comportamentos antissociais”, conclui Maria de Jesus Ramires.

 

PAPEL DA FAMÍLIA “TEM DE SER VALORIZADO”

 

A presidente da CPCJ de Moura defende que “deverão ser implementadas políticas que estimulem uma parentalidade positiva e efetiva”, com vista à diminuição das situações de risco. Nesse âmbito, a comissão está a concluir o Plano Local de Promoção e Proteção das Crianças e Jovens do Concelho de Moura, inserido no Projeto Adélia. O plano “tem por base um diagnóstico local e visa a implementação de boas práticas que entendemos que vão contrariar as tendências atuais”, diz. E conclui: “O papel da família tem e deve ser valorizado e a esse nível tem de haver um investimento que permita dotar os pais, ou responsáveis legais, e a família, de ferramentas necessárias ao acompanhamento salutar das sua crianças e jovens”. A presidente da comissão de Odemira considera que “a proteção das crianças e jovens de um determinado território é da responsabilidade de toda a comunidade (pais, educadores, família, profissionais de saúde)”, que deve “assegurar os meios para que as crianças cresçam em segurança e onde os seus direitos sejam respeitados”. “Problemas complexos como este não devem ser tratados por uma só pessoa ou entidade. A consciência protetiva de uma comunidade, que deverá ser trabalhada e sensibilizada, é o motor para assegurar o bem-estar e o crescimento feliz e cívico das crianças”, sublinha.

Comentários