Diário do Alentejo

Beja: 180 denúncias anuais de violência doméstica

23 de julho 2021 - 14:05

Em 2020 as três estruturas de atendimento a vítimas de violência doméstica do distrito de Beja registaram, no total, 179 novas denúncias. Enquanto numa se verificou uma subida, quase o dobro, as outras registaram uma diminuição. Quer uma situação, quer outra, poderão, em parte, ser justificadas pela pandemia de covid-19.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

O Núcleo de Atendimento a Vítimas de Violência Domésticas do Distrito de Beja (NAV) acompanhou, em 2020, 74 novos casos de violência doméstica, mais 35 do que em 2019, ou seja, quase o dobro. Nos primeiros seis meses deste ano recebeu 29 novos casos. No total, incluindo os transitados, em 2019 foram acompanhadas 53 vítimas e, em 2020, 88. Nesses dois anos foram realizados 657 atendimentos. Entre janeiro e maio deste ano foram acompanhadas 34 vítimas e feitos 210 atendimentos.

 

Ana Lúcia Pestana e Patrícia Cardoso, respetivamente psicóloga e assistente social do núcleo coordenado pela Moura Salúquia – Associação de Mulheres do Concelho de Moura, dizem que “é difícil” tirar conclusões sobre a “flutuação do número de casos acompanhados”, dado que esta “se tem verificado também em outros períodos temporais”. Contudo, adiantam, se, por um lado, o aumento em 2020 poderá estar ligado ao facto de nesse ano ter sido retomado o atendimento descentralizado e a presença regular noutros concelhos da área do NAV, por outro, “existe também uma grande probabilidade de que os períodos de confinamento [devido à pandemia de covid-19] e os diversos fatores de ‘stresse’ adicional tenham agudizado algumas situações de violência doméstica”.

 

De acordo com as técnicas do NAV – que abrange os concelhos de Beja, Barrancos, Alvito, Cuba, Mértola, Moura, Serpa e Vidigueira –, o que “era esperado, e para o qual nos preparámos, era, de facto, um aumento das situações de violência doméstica, à semelhança do verificado noutros países atingidos” pela pandemia. “Na prática, o número de denúncias formais diminuiu, mas isto não significa que a violência tenha diminuído, porque o confinamento e o isolamento fizeram com que fosse mais difícil pedir ajuda”, dizem.

 

As técnicas sublinham ainda que, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), entre 2019 e 2020, verifica-se “um decréscimo de denúncias apresentadas a nível nacional de 6,3 por cento”. No entanto, no distrito de Beja, “verifica-se um aumento de 3,2 por cento, o que representou um total de 320 denúncias”, sendo que o NAV “registou esta tendência de forma ainda mais significativa, quase duplicando em 2020 os números de 2019”.

 

“APENAS UMA FRANJA DA REALIDADE”

 

Ainda assim, alertam, “dificilmente” os números que são divulgados pelas diversas estruturas com intervenção na área “correspondem à realidade”, dado que “muitas vítimas não recorrem a qualquer apoio e muitas mais não apresentam queixa”. E “há muitos fatores” que influenciam esta decisão. “Assim, apesar de significativos, os números das denúncias devem preocupar-nos visto que eles não representam a inexistência de situações de violência mas sim a sua ocultação”.

 

Já em Odemira, único concelho do distrito de Beja na área de intervenção do GAVA – Gabinete de Apoio à Vítima, da Taipa – Organização Cooperativa para o Desenvolvimento Integrado, verificou-se o inverso, ou seja, uma diminuição nos pedidos de apoio de 2019 para 2020, e os indicadores do primeiro semestre deste ano, comparativamente a anos anteriores, indicam a mesma tendência, diz Sara Horta, coordenadora da estrutura. Em 2019 o GAVA recebeu 48 novas denúncias; em 2020, 37; e, nos primeiros seis meses deste ano, 17.

 

Referindo-se ao mais recente RASI, em que “as denúncias pelo crime de violência doméstica em 2020 diminuíram em cerca de seis por cento”, e tendo em conta que “grande parte dos pedidos de apoio é encaminhada pelas forças de segurança no momento em que as pessoas apresentam denúncia”, a responsável afirma que “se pode inferir que esta diminuição poderá estar relacionada com isto: menos denúncias, menos pedidos”. E afirma que, “claramente, a pandemia teve, tem e continuará a ter impacto nestes casos”.

 

“As vítimas estão mais controladas pelas pessoas agressoras, ficaram, muitas delas, sem os seus fatores protetores, e os fatores de risco aumentaram em razão de uma maior convivência e proximidade com as pessoas agressoras, impostas pelo confinamento. Ter a coragem para denunciar que se é vítima, para algumas pessoas, pode ser um processo longo, muitas vezes de anos, ainda mais difícil se tornará se essa pessoa vive confinada com quem a maltrata, sem ter ponto de fuga, sem poder ir para o trabalho e privado do contacto familiar ou social”, justifica.

 

Em 2019 o GAVA acompanhou 63 pessoas, num total de 414 atendimentos; em 2020, 39 pessoas e 227 atendimentos. De janeiro a junho deste ano foram acompanhadas 31 pessoas e do início do ano até ao fim de maio realizados 123 atendimentos.

 

Ao gabinete VERA – Vítimas em Rede de Apoio, da Esdime – Agência para o Desenvolvimento Local no Alentejo Sudoeste, e que intervém nos concelhos de Aljustrel, Almodôvar, Castro Verde, Ferreira do Alentejo e Ourique, chegaram, no ano passado, 68 novas situações de violência doméstica, menos uma do que em 2019. Entre janeiro e junho deste ano há registo de 43.

 

Marina Brito, coordenadora do gabinete, diz, por sua vez, que “os números sofrem sempre oscilações de ano para ano”, apesar de em 2029 e 2020 serem muito idênticos, “situação que não é muito comum”. Em relação a 2021, até ao momento, “verificou-se um ligeiro aumento face ao ano anterior, contudo não sabemos se é uma tendência que se irá manter ao longo do ano”, salienta.

 

No total, no primeiro semestre de 2021, foram atendidas 62 vítimas de violência doméstica. Entre janeiro e maio foram realizados 490 atendimentos. Em 2019 foram acompanhadas 117 pessoas, num total de 1541 atendimentos e, em 2020, 105 pessoas e efetuados 1129 atendimentos.

De acordo com a responsável, com os dados de que dispõem, não é possível fazer “uma correlação sobre aumento/diminuição global, em 2020, de novas situações e a pandemia”. “O que conseguimos dizer é que sempre que ocorreu um confinamento, com regras mais apertadas, onde existia o dever cívico de recolhimento, foram poucas as novas situações que surgiram nesse período. De igual forma as pessoas que se encontravam em acompanhamento recorreram menos ao serviço. Nesses períodos, os contactos telefónicos, quando não colocavam as vítimas em maior risco, foram maioritariamente promovidos pela equipa técnica”. Sempre que se iniciava o processo de desconfinamento “as pessoas voltavam a retomar o habitual contacto com a estrutura e a procurar espontaneamente com maior frequência”.

 

Marina Brito sublinha, no entanto, que “esta menor procura não se justificará pela ausência de violência, mas sim por um eventual maior receio (quer do/a agressor/a, quer de uma possível infeção) na procura de apoio nessa fase”. E frisa, à semelhança das técnicas do NAV, que os casos acompanhados “serão apenas uma franja” da realidade. “Existe ainda muita violência oculta, por vergonha, por medo, por desconhecimento, por ausência de alternativas que a própria pessoa considere viáveis para si”, diz.

 

“Seria muito perigoso analisarmos estes dados sem os contextualizar”, alerta, por seu turno, Sara Horta, adiantando que “os últimos dois anos foram bastante atípicos devido à pandemia”. A coordenadora do GAVA acredita “que surgiram muitos mais casos, atendendo inclusivamente às vulnerabilidades que esta pandemia trouxe, quer ao nível do emprego, da gestão doméstica e familiar, aos fatores de stresse que desafiaram a estabilidade emocional e a saúde mental de todos nós”.

 

Perante este panorama, continua, “se já existiam alguns conflitos entre os casais ou entre os familiares antes da pandemia, mas ainda assim não eram vistos à luz da violência, com o confinamento estes conflitos encontraram o ‘terreno perfeito’ para evoluir e se instalarem num cenário de violência doméstica”.

 

EPISÓDIOS ACONTECEM FREQUENTEMENTE NA PRESENÇA DE MENORES

 

Dos casos acompanhados no distrito alguns são reincidentes. “A violência doméstica é algo muito complexo, envolve dinâmicas muito próprias, que mantêm as pessoas na relação mesmo quando esta é abusiva”, diz a coordenadora do VERA. As técnicas do NAV acrescentam que a tendência da violência doméstica “é para a escalada em severidade, intensidade e frequência”. Assim, “não existindo uma intervenção efetiva e concertada que quebre o ciclo de violência, a probabilidade de reincidência é muito significativa”.

 

Em termos de perfil, a esmagadora maioria das vítimas é do sexo feminino. No caso do gabinete VERA, dados entre março de 2020 e fevereiro de 2021 indicam que tinham, maioritariamente, entre 20 e 60 anos, o 3.º ciclo e o secundário, 50 por cento encontravam-se empregadas, 40 por cento no desemprego e o agressor era o companheiro, ex-companheiro ou marido. No NAV, segundo dados de 2020, a maioria tinha entre 45 e 54 anos, mantinha uma relação de casamento ou união de facto com o agressor, estava inserida no mercado de trabalho e tinha o ensino secundário. As mulheres acompanhadas pelo GAVA têm entre 26 e 45 anos, o 3.º ciclo, 50 por cento ocupação profissional e são vítimas dos companheiros ou ex-companheiros. No concelho de Odemira cerca de 20 por cento são de nacionalidade estrangeira.

 

O tipo mais relatado de violência perpetuada, em duas das estruturas, foi a combinação de agressões físicas e psicológicas, cometidas, no caso do NAV, “na maioria dos casos, com uma regularidade semanal”. As técnicas no núcleo sublinham que, em muitos casos, “verificou-se um agravamento nas situações de violência, o que pode ser explicado de várias formas”. Se, por lado, como já referiram, a tendência da violência é agravar-se, por outro, “a pandemia e o confinamento promoveram mais e maiores períodos de isolamento social e contacto entre vítimas e agressores, o que pode influenciar também este aspeto”.

 

Segundo a coordenadora do VERA, “os episódios de violência psicológica, na esmagadora maioria, ocorrem diariamente”. Quanto aos de violência física, “não é possível identificar um padrão que seja comum à maioria das pessoas acompanhadas”.

 

No GAVA o tipo de violência mais assinalado “é a psicológica, quase na totalidade dos casos, seguida da física”, diz a coordenadora.

 

Os episódios acontecem, maioritariamente, segundo as três estruturas, na habitação familiar e, frequentemente, na presença dos filhos menores, “o que tem naturalmente impacto nestas crianças e representa legalmente um agravamento da moldura penal”, realçam as técnicas do NAV.

 

PANDEMIA ATRASA AUTONOMIZAÇÃO DAS VÍTIMAS

 

A pandemia de covid-19 e o confinamento “têm dificultado não só processos burocráticos necessários à autonomização” das vítimas a residir numa das casas abrigo do distrito de Beja, como, “sobretudo, a sua inserção profissional, o que naturalmente atrasa o processo de apoio nesta importante vertente”, revelam os responsáveis, sublinhando que se verifica “um período maior de permanência na instituição”. A casa abrigo acolhe atualmente 22 vítimas. Em 2019 estiveram acolhidas 53 (24 mulheres e 29 crianças) e, no ano passado, 46 (26 mulheres e 20 crianças). As vítimas acompanhadas em 2019 e 2020, tinham, em média, 41 anos, estavam, maioritariamente, acompanhadas de filhos menores e a relação com o agressor era de conjugalidade ou análoga. Quando a possibilidade de acolhimento “é discutida com a vítima, há também uma avaliação do risco que é feita tendo em conta essa questão geográfica, pelo que se procura fazer o acolhimento numa zona onde o agressor tenha menos acesso e/ou ligações, aumentando a segurança da vítima”.

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