Diário do Alentejo

Maria José Rijo, uma autora do Alentejo

14 de junho 2021 - 14:20

Texto Júlia Serrão

 

Autora de crónicas e livros, é também criadora de outras expressões artísticas, numa existência interessantíssima que passou ainda pelo exercício de um cargo político no poder local. O seu último título, “Do Alentejo ao Alentejo”, resultou “da simpatia” de várias pessoas, que tiveram a ideia de selecionar os textos que foi publicando ao longo dos anos. Nascida na aldeia de Santa Vitória, perto de Beja, Maria José Travêlho Rijo fixou-se em Elvas, onde casou e hoje vive, assumindo-se como uma “alentejana de raiz”.

 

Resume os sabores e as receitas tradicionais de algumas regiões, mas é mais do que um livro de gastronomia. O título de Maria José Travêlho Rijo é também o retrato do País e de uma época. E, sobretudo, de um Alentejo marcado pela pobreza, onde as mezinhas, que a autora descreve muitas vezes com recurso à oralidade da região, acabam por ser resposta para os males do corpo e da alma. Aconteceu por vontade do seu amigo Mário Cabeças, da editora Maria Rolim e de Isabel Farias, que escreveu o prefácio. Maria José recebe-o como “um presente”, sentindo-se “muito agradecida”. Traz a chancela da Colares Editora, e é a quarta obra da autora, que tem publicados dois livros de poesia e um de rezas e benzeduras.

 

Diz que o primeiro, de poemas, intitulado “…E vim cantar”, é “bastante bom”. O segundo, “nem tanto”. Lançada em 1956, a obra recebia elogios da crítica. Na edição de 4 de fevereiro do “Diário do Alentejo” desse ano, Melo Garrido falava na revelação de “uma poetisa de original inspiração e de sensibilidade aguda e requintada”. E num livro cujos versos “perpassam, vincadamente, os sonhos e anseios malogrados da autora e também os seus altos ideais de beleza e arte”, não sendo, no entanto, “só um expressivo lamento”. Escrevia: “Há nele, também, versos bem modelados e harmoniosos, nos quais a autora foca outros temas humanos que mais impressionam a sua maneia de sentir e de analisar, que sempre chocam e emocionam os espíritos que não se conformam com as estreitezas, as inferioridades e as injustiças duma vida banal e sem um sentido de elevação fora de comum”.

 

O jornalista, que também foi diretor do jornal, concluía explicando que a autora ilustrava o livro com desenhos dela, revelando “outra magnifica faceta do seu temperamento artístico”. De facto, Maria José Travêlho Rijo era mulher de muitos talentos. Quatro anos antes destacara-se nos Jogos Florais de Portugal, vencendo o primeiro prémio no concurso de Artesanato Bonecos Regionais (e arrecadando uma menção honrosa no de quadras populares).

 

UMA MULHER FEITA DE HISTÓRIAS

 

Nasceu na primavera de 1926, a 6 de abril, na aldeia de Santa Vitória. Ali cresceu rodeada de mimos, tendo uma educação de exceção, no seio de uma família extensa: para além dos pais e da irmã mais velha, compunham o agregado a avó paterna e duas tias. Teve uma infância “muito feliz”. O pai, ferroviário, estudara num seminário. “Sabia latim, gostava de literatura, lia imenso e era uma pessoa muito culta, com um humor muito interessante”, recorda. Proporcionava à família um nível de vida que contrastava com o dos habitantes da povoação, e para além dela. “No Baixo Alentejo dos anos 30 a pobreza era imensa. As pessoas praticamente só tinham comida durante a época da ceifa, das mondas ou da apanha da azeitona. Terminados esses períodos viviam de indigência”. Reconhece que foi privilegiada: “Na escola, só andavam calçadas as filhas dos lavradores, a minha irmã e eu. E a ignorância do meio era tal que quando a minha irmã precisou de óculos, as mulheres da aldeia andaram com ela de casa em casa dizendo ‘olha a cagança desta gente, a criança com uns olhos tão lindos e espetam-lhe com uns ‘olícos’. O que para nós era o natural conforto do viver em casa, para elas era um luxo e às vezes um mito, uma coisa com que se sonha”.

 

Explica que, agora, quando pensa nesses tempos e se pergunta o que sentia, está convencida “que era que as crianças gostassem” dela e se “sentissem à-vontade para brincar” na sua companhia. “Porque elas gostavam de nós, mas havia sempre a distância da criança bem-vestida”. Para encurtá-la ou por solidariedade, as filhas do ferroviário roubavam coisas em casa para “levar presentes às meninas”.

 

Maria José Travêlho Rijo absorveu esse mundo que depois transportou para as suas crónicas. Aos 95 anos, lembra-se de tudo com “minúcia”. Como consegue? “Não sei. Sei que sou feita dessas histórias.” Lia muito e teve “necessidade” de escrever desde muito cedo. E pela vida fora. Ainda na aldeia de Santa Vitória, revelou outras aptidões, se calhar inspirada nas mulheres da casa, eximias na renda de bilro. Fazia roupas para as bonecas e tinha tanta habilidade que o pai, por graça, dizia que a rapariga ainda ia “‘acabar na alta-costura’”. Ao que a mãe se apressava a responder: “Deus me livre”. A senhora abandonara os estudos e o desejo de ser professora para casar. “Éramos uma família engraçada!”

 

Terminado o ensino primário, Maria José mudou-se para Beja com a irmã e uma tia, para parte de uma casa que o pai alugara. E quando a irmã concluiu o curso dos liceus e rumou a Lisboa para continuar os estudos, ela foi viver para Elvas, para casa de uma tia que também era sua madrinha, para prosseguir os seus. Pouco depois conhecia o homem que viria a ser seu marido, e que, segundo veio a saber, “por coincidência, comandava o esquadrão de cavalaria”, que atravessava as portas de Olivença, quando ela, de camioneta, entrava pela primeira vez na cidade: o alferes Rijo (José de Almeida).

 

TALENTOS ARTÍSTICOS

 

Tinha 17 anos. Casou aos 21. E só voltaria a viver no Baixo Alentejo muitos anos mais tarde: em Beja, onde o marido, que fez carreira na direção do Banco de Portugal, se encontrava a trabalhar. Com ele percorreu Portugal, viveram nos Açores, em Angra de Heroísmo, regressando depois a Elvas, porque o Alentejo estava-lhes no sangue. Ainda está no dela, que lhe sobreviveu. “Aqui tudo é bonito, porque não há artificio. É terra. Ou pelo menos era terra, seara e arado. Havia ali um encanto, qualquer coisa que não se esquece mais. Eu sou uma alentejana de raiz”. Enaltece o melhor do território, que diz ser a “autenticidade da gente do campo, a simplicidade e a coragem”, sobretudo a de outros tempos em que homens e mulheres iam para a ceifa, e as mães amamentavam os filhos à sombra das azinheiras, em pausas curtas. “Há muito sofrimento amassado nesta terra”, lembra. “Mas também havia a beleza das estações no Baixo Alentejo. Aquilo parecia um namoro entre o céu e a terra. É esse Alentejo que eu ainda trago comigo, não é o de agora. Enfim, é o progresso”. Diz que o pior de tudo são “as culturas intensivas de oliveiras e amendoeira”, que agora avançam na paisagem. “Estão a esgotar a terra numa ânsia de lucro que a terra não consente”.

 

Enquanto se habituava ao tratamento que a condição de casada lhe trazia, “senhora dona”, e se esmerava nas tarefas dentro de casa que era compromisso de honra de toda a mulher”, como explica numa crónica do recente livro, Maria José continuava a escrever e a (re)descobrir e expressar outros talentos artísticos. Aos 26 anos já se destacava no artesanato, vencendo concursos com os seus bonecos regionais, e quatro anos depois dava a conhecer o primeiro livro de versos. “Mas, na verdade, acho que o meu caminho teria sido a escultura”, desabafa, lembrando o fascínio que sentia perante o tronco de madeira em bruto: “ver o boneco” à sua frente, e começar a esculpir até conseguir atingir a forma pretendida. “Dava-me uma excitação que não dormia, enquanto não terminava a peça. Ficava com febre”.

 

Vendo-lhe o sofrimento, o marido avisava-a que “aquilo ia dar cabo” dela. A certa altura pôs termo à “doença”. Continuou a criar, mas sem aquele delírio. Experimentou outras matérias, que abordava com igual traquejo. Tinha habilidade para tudo, do desenho em papel à pintura em tela. Havia ainda a paixão pelos trabalhos de conchas e, em 1965, consegue levar uma exposição ao Palácio Foz, em Lisboa. Chamou-lhe “Lembranças do Mar” e recebeu largos elogios da crítica.

 

VEREAÇÃO E CULTURA

 

Simultaneamente, e ao longo de mais de 40 anos, manteve um artigo semanal no jornal “Linhas de Elvas”. No seu “À la minute” fazia comentários à política local, “com observações sobre coisas da cidade, com sentido de justiça e sem facciosismo”, comenta. Também contou histórias “que tinha guardadas na alma”. A experiência, que lhe deu muito prazer, foi um êxito. Os textos tornaram-se “tão populares, que as pessoas ficavam à espera do que eu ia dizer”.

 

Certa vez escreveu sobre o pão, e as suas palavras foram colocadas no quadro de dia da Assembleia da República, com a referência devida à autora. Outra vez criticou a falta de imaginação de uma suposta comissão de festas de verão, que todo os anos apresentava o mesmo programa desinteressante, lançando algumas ideias inovadoras. João Carpinteiro, ao que parece “gravou aquilo”, e quando se lançou na corrida às autárquicas de 1985 foi convidá-la a fazer parte da lista que encabeçava. Ficou logo estipulado que lhe seria entregue o pelouro da Cultura e do Turismo. Maria José vacilou, mas o marido incentivou-a a aceitar, quando o grupo saiu vencedor. Não tinha ordenado, e só muito mais tarde passou a ser paga a meio tempo. “De início foi um deslumbramento. Depois senti-me desmotivada perante certas situações, mas decidi levar o mandato até ao fim”.

 

Em 1987, Elvas foi convidada a receber as comemorações do Dia Mundial da Música. Com o objetivo de promover a arte musical nos diferentes setores da sociedade e divulgar a diversidade da música, a vereadora, que não sabia muito do assunto, rodeou-se de quem sabia para criar um programa. “Fui buscar uma professora de música que era minha amiga e que se apaixonou pela ideia”. Um ano depois surgiu a Escola de Música que, como explica numa entrevista citada no livro editado pela Colares, “nasce de um sonho que me foi manifestado pela D. Maria Elvira Vaz Serra (…) fiquei particularmente sensibilizada (…) e pensei para comigo: ‘porque é que Elvas não há de dar aos seus filhos a oportunidade de poderem estudar música sem a necessidade de sair de cá?”

 

Defende que estes projetos, que ainda hoje estão em pé, “abriram horizontes”. “Pelo menos em alguma coisa Elvas deixou de depender de Badajoz. Há aqui uma ascensão de dignidade que era necessária.” Do seu currículo, faz também parte uma campanha, com cerca de dez artigos bem documentados por especialistas sobre o Forte de Nossa Senhora da Graça, para salvar a obra de arquitetura militar do século XVIII.

 

“Tenho consciência que procurei servir e, dentro dos meus limites, fiz aquilo que na altura me foi possível. Gostaria de ter feito mais e melhor, mas não me envergonho do que fiz”. Sublinha: “Eu costumo dizer, e umas pessoas entendem e outras não, que se não tivesse mais nada para justificar a minha ida para a Câmara, salvar a biblioteca municipal já era motivo”. Graças à sua intervenção fica a dever-se a sobrevivência de um fabuloso espólio de cem mil volumes manuscritos, que estiveram em risco de desaparecer.

 

“GOSTAVA QUE OS MEUS TRABALHOS FICASSEM NUM MUSEU”

 

Durante a apresentação do livro, a editora da Colares Maria Rolim, que conheceu recentemente a autora e mais profundamente a sua obra, disse que já era “altura de se fazer a Casa-Museu Maria José Travêlho Rijo.” Recordando o episódio, esta diz que “não é para tanto”, mas reconhece que gostava muito que os seus trabalhos ficassem a salvo num museu. “Porque, honestamente, acho que merecem. Tenho uma coleção de trabalhos de conchas que considero artísticos, perdoem-me a imodéstia”. Admite que ainda teve esperança de que viessem expor a suas “coisas” numa sala do recentemente reconstituído museu de Elvas, mas isso não aconteceu. “Não puseram. Sei que os meus trabalhos de madeira seriam aceites de caras, mas para onde forem uns vão outros”, argumenta perentória.

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