Diário do Alentejo

Do chá ao vinho: uma brisa inglesa nas terras quentes de Almodôvar

16 de setembro 2025 - 08:00
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

O grupo familiar inglês Birchall Graham, ligado ao negócio do chá, investiu na herdade dos Toucinhos, permitindo trazer a ousadia da cultura da vinha e do vinho para o concelho de Almodôvar, numa área antes dedicada apenas a culturas extensivas de sequeiro.

 

Texto | Manuel BaiôaFoto | Ricardo Zambujo

 

Este investimento permitiu diversificar as atividades agrícolas através do regadio e demonstrou que nesta região se podem fazer grandes vinhos. Os primeiros vinhos que chegaram recentemente ao mercado são promissores com a marca “PIRR”, tendo o colheita branco 2023 ganho a “Medalha Grande Ouro” no “Concurso dos Melhores Vinhos do Alentejo 2025”, organizado pela Confraria dos Enófilos do Alentejo. Para além da vinha, abriram um campo experimental de ervas aromáticas para chá e projetam brevemente construir uma adega e um espaço de enoturismo. As culturas de sequeiro continuam na herdade, com o adensamento do montado através do sistema keyline, que aproveita melhor a água da chuva e reduz a erosão dos solos. Mantêm na herdade um rebanho numeroso de ovelhas e planeiam, a médio prazo, construir uma rouparia para retomar a produção de queijo nesta antiga propriedade.

 

 

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 Família Graham: chá e vinho A herdade dos Toucinhos foi adquirida em 2014 pelo casal inglês David e Lesley Graham, e pelos seus filhos, Daniel e Tresham Graham. Este investimento tem uma dimensão de negócio, mas também afetiva. Tresham Graham explicou-nos que a sua “família cultiva há décadas uma ligação profunda com Portugal.”. O seu avô do lado materno é italiano e tem casa no Algarve desde os anos 70, onde ele teve a fortuna, desde criança, “de passar muitos tempos felizes em Portugal”. Os seus pais também tiveram sempre uma forte ligação a Portugal, “tendo passado a viver definitivamente em Portugal desde 2006, após a sua aposentação”. Como família, “nós sempre gostámos muito da comida e do vinho de Portugal.

 

E nós notávamos que os vinhos portugueses estavam-se afirmando desde os anos 2000, com um maior foco na qualidade. Isto incentivou a nossa imaginação, sobre o que nós podíamos fazer neste mundo do vinho”. Paralelamente, “o meu pai, David Graham, foi sempre um homem muito curioso. Gostou sempre de viajar pelo Alentejo, pois considerava esta terra muito linda. Ele viveu em criança no Quénia e na Índia, e esta zona de Almodôvar transmitiu-lhe algo especial, conectando-o com a sua infância em África. Por isso começámos a explorar se seria possível investir num negócio de vinho nesta zona”.

A família Graham tem uma longa tradição no negócio do chá. As origens começam com o capitão Birchall George Graham, que foi destacado para a Índia, como oficial do regimento do Duque de Wellington, onde serviu por vários anos. Em 1872 plantou os seus primeiros arbustos de chá e iniciou uma empresa neste ramo na região montanhosa de Darjeeling, na cadeia inferior dos Himalaias, hoje mundialmente conhecida pela qualidade e sabor distintos dos seus chás, sendo muitas vezes chamados de “champanhe dos chás”. A empresa continuou nas gerações seguintes, mas o foco mudou para o chá africano, no Ruanda e no Quénia. Atualmente, Daniel e Tresham, a quinta geração da família Graham, lideram as duas principais empresas do grupo. A LAB International Limited é gerida por Tresham Graham, empresa especializada no comércio de chá preto, com escritórios em Londres (Reino Unido) e Mombaça (Quénia). A LAB é um dos principais compradores no leilão semanal de Mombaça e exporta mais de 50 milhões de quilos de chá preto por ano para mais de 30 países. Por sua vez, Daniel Graham, gere a Birchall Tea, empresa especializada na produção e distribuição de chás premium da África Oriental.

É servido no n.º 10 de Downing Street, residência oficial do Primeiro-Ministro, e também no castelo de Windsor, residência oficial do Rei. Possuem uma fábrica de chá de última geração em Wiltshire, Reino Unido, com um alto padrão de sustentabilidade e respeito pelo meio ambiente.

Tresham Graham é um provador profissional de chá. Viveu cinco anos e meio em Mombaça, “onde provava 800 a 1200 taças de chá por semana”. Por isso, tem “o palato bem desenvolvido em termos de sabor”. Com toda a experiência adquirida no negócio do chá, “achamos que poderíamos utilizar algumas das nossas competências no negócio do vinho no Alentejo, pois temos uma marca de chá premium no Reino Unido, tendo experiência na criação de uma marca e na sua distribuição”. Sentiram que tinham “todos os elementos para criar com sucesso um empreendimento na área do vinho, apresentando um produto de qualidade, com boa imagem, capacidade de distribuição e apresentando-o com uma história adequada, inspiracional e autêntica”.

Tresham Graham revela que a família pretende “contribuir para aumentar a reputação dos vinhos do Alentejo e em particular do sul do Baixo Alentejo, com um produto genuinamente autêntico”. Se conseguirem atingir esse objetivo “todos nós nesta região seremos beneficiados”. Compara a sua entrada nos vinhos alentejanos, com a sua chegada ao Ruanda, onde “também enveredámos por esse caminho. Nessa altura o Ruanda não era percecionado como uma área de produção de chá de grande nível. Mas iniciámos um processo de constante ativação para a qualidade e posicionamento. E hoje o Ruanda destaca-se como o país africano com maior reputação pela qualidade e pelo alto preço do seu chá”. Este empreendimento é uma oportunidade de combinar a tradição portuguesa “com técnicas modernas e uma nova apresentação”, ao mesmo tempo “estamos abrindo uma nova zona de vinhos em torno de Almodôvar”. A herdade dos Toucinhos é um “investimento de longo prazo e não estamos procurando um retorno instantâneo”.

 

A herdade dos Toucinhos A família Graham adquiriu a herdade dos Toucinhos com 506 hectares, e no ano seguinte, em 2015, chegou o engenheiro agrícola Nuno Rodrigues para administrar a propriedade. Nuno Rodrigues estudou em Beja, mas posteriormente trabalhou em diversos projetos ligados ao setor do vinho no Douro e em Setúbal. O desafio que tinha em mãos era gigantesco: conseguir plantar uma vinha para produzir vinhos premium e super premium numa zona sem tradição vinícola, num terreno pouco fértil, áspero e pedregoso, com insuficiência de água, numa região com um clima extremamente quente e com pouca precipitação.

Foram elaborados dois estudos para analisar a viabilidade de plantar uma vinha para a elaboração de vinhos de grande qualidade. O primeiro estudo foi feito pela Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo (Ateva), sob supervisão do então diretor executivo, Francisco Mata, que concluiu da viabilidade da plantação e da adequação do terreno à produção de vinhos premium. Só havia um problema: a propriedade não tinha captações subterrâneas e superficiais suficientes para regar os 200 hectares de vinha previstos. Foi então elaborado outro estudo incidindo sobre a viabilidade económica e sobre o aproveitamento da água, conduzido pela EDIA. Concluiu-se que a área de vinha tinha de ser reduzida para 82 hectares e seria necessário obter a concessão da água da barragem da Boavista para a rega.

A barragem da Boavista está situada junto à herdade dos Toucinhos e foi construída pelo estado português nos anos 80. É administrada pela Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e as suas águas são do domínio público hídrico e geridas pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA). A barragem foi inicialmente construída para regadio, mas tal nunca se concretizou, sendo a sua água usada para abastecer o concelho de Almodôvar. Após a ligação do concelho de Almodôvar à barragem de Monte da Rocha em 2016, a água da barragem da Boavista podia passar a ter outra utilidade. A administração da herdade dos Toucinhos iniciou então uma negociação com a APA para a concessão da água da barragem da Boavista para regadio, tendo tido a intermediação da Câmara Municipal de Almodôvar. Nuno Rodrigues explicou que a barragem da Boavista passou a ser “uma reserva de água redundante”, o que facilitou a concessão da água por 25 anos, permitindo assim iniciar a plantação da primeira fase da vinha em 2016. Mesmo assim, fizeram quatro furos e pequenas barragens na propriedade para ajudar na rega da vinha e das ervas aromáticas.

A vinha tem neste momento 82 hectares, tendo sido plantados 24 hectares em 2016, 45 em 2017 e 13 em 2018. Plantaram uma diversidade notável de castas, entre regionais, nacionais e internacionais. Contudo, 75 por cento do encepamento da vinha é composto por cinco castas, quer nos brancos quer nos tintos. As castas principais brancas plantadas são a Arinto, a Verdelho, a Alvarinho, a Sauvignon Blanc e a Antão Vaz. Todavia, têm também outras castas brancas que dão o “sal e pimenta” aos seus vinhos, nomeadamente, Roupeiro, Chardonnay, Viognier, Rabigato, Encruzado, Fernão Pires e Moscatel Graúdo. Têm ainda duas castas rosadas, Gewurztraminer e Pinot-Gris. Em relação aos tintos, as cinco principais castas plantadas são a Aragonês, a Trincadeira, a Syrah, a Alicante Bouchet e a Touriga Nacional. Mas possuem ainda outras castas como a Touriga Franca, a Petit Verdot, a Cabernet Sauvignon, a Pinot Noir, a Vinhão, a Moreto e a Merlot. Segundo Nuno Rodrigues, esta grande diversidade de castas possibilita “uma diferenciação e permite criar novas gamas no futuro. Trabalhamos com esta variabilidade para aumentar a complexidade e oferecer um produto diferenciado ao consumidor”.

A vinha está implantada numa zona de pequenas colinas com várias exposições solares. O solo maioritário de xisto, e com algum granito em profundidade, teve um grande trabalho de preparação antes da plantação da vinha. Foi necessário partir as rochas em profundidade para que as raízes das videiras pudessem penetrar mais facilmente no solo. Retiraram uma grande quantidade de pedras que vão ser utilizadas em muros e construções.

Na opinião de Nuno Rodrigues, “a frescura e mineralidade que encontramos nos nossos vinhos derivam dos solos pobres de xisto onde está implantada a vinha”. A acidez vibrante dos vinhos “deriva também do pH relativamente baixo do solo, que se situa nos 5,5”, facto muito importante numa região de calor tórrido como é Almodôvar. Têm várias estações meteorológicas e sondas espalhadas pela vinha para monitorizar a necessidade de água no solo, aportando assim em cada talhão apenas a água necessária ao desenvolvimento das videiras e dos cachos.

Segundo Nuno Rodrigues, as castas que têm mostrado melhor comportamento e melhor aclimatação ao terroir são “as castas tradicionais Aragonês e Trincadeira, bem-adaptadas ao Alentejo, mas também a Touriga Nacional”. Nas castas brancas, “a Antão Vaz e a Roupeiro têm mostrado bom desempenho, habituadas ao clima quente do Alentejo”. Com bons resultados e consistência surgem também a Verdelho e a Alvarinho, esta última com uma excelente acidez e maturação precoce. No entanto, “será sempre um Alvarinho muito diferente dos vinhos verdes. Esta casta permite fazer uma colheita mais cedo, uma colheita a meio e uma colheita mais tardia, para estilos de vinhos diferentes. Mais cítrica e tropical ao início, fruto de caroço no meio e frutos secos para o final. É uma casta com uma personalidade incrível no Alentejo e com produtividades interessantes!”. A produção média nesta zona é relativamente baixa, entre as seis e as oito toneladas por hectare, mas esta contenção será certamente uma forma de obter uvas mais concentradas e de melhor qualidade, para a elaboração de grandes vinhos.

A vindima é realizada à máquina e à mão, consoante o talhão e o vinho pretendido.A herdade dos Toucinhos está a fazer uma transição para a agricultura biológica e sustentável. Têm uma grande preocupação no consumo moderado de água e de energia, tendo instalado painéis solares fotovoltaicos, sendo por isso quase autónomos a nível energético. À semelhança do que fizeram no Ruanda, onde plantaram 36 hectares de floresta, avançaram para a densificação do montado, tendo plantado 150 hectares de sobreiros com o sistema keyline, que permite conduzir lentamente a água da chuva para onde é mais necessária, aumentando e maximizando a infiltração. Aumenta-se assim a retenção de humidade e resiliência à seca e melhora-se a estrutura e fertilidade do solo, permitindo assim um melhor estabelecimento e crescimento das árvores. Tresham Graham diz com regozijo que “está muito feliz por terem plantado uma floresta em Portugal. Entendemos que o ambiente e a floresta são nossos amigos e pretendemos ser um projeto sustentável”. Como forma de conexão ao negócio principal da família, plantaram um campo experimental com dois hectares de lúcia-lima, que poderá ser expandido no futuro. As ervas no montado e na vinha são controladas através do pastoreio de 600 ovelhas. Nuno Rodrigues pretende instalar uma rouparia na herdade dos Toucinhos, recuperando assim a produção de queijo de ovelha na propriedade. Têm ainda 2,5 hectares de olival tradicional da variedade galega, podendo vir a engarrafar azeite a médio prazo.

A vinificação decorre hoje numa adega parceira, mas há já planos para construir adega própria, prevendo-se o início de atividade na vindima de 2027. No futuro pensa-se construir um enoturismo para 25 camas, com um restaurante e um museu. Neste momento já estão concluídos o abastecimento de água municipal e a ligação à Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), bem como a conexão à banda larga. Tresham Graham realça que “este é um projeto português, com investimento inglês, pois se percorrerem a herdade verão que é definitivamente um projeto português em todos os aspetos, desde o agrícola à arquitetura”. No edifício dos escritórios já recuperado, foi mantida a “estrutura antiga, mas com uma imagem mais moderna. É assim que queremos continuar a fazer este empreendimento”.

 

“PIRR”: o primeiro vinho do portefólio Quando foi elaborado o estudo sobre o tipo de vinhos a produzir na herdade dos Toucinhos ficou assente apostar num “perfil de vinhos premium e super premium, mais fresco e com menos álcool, definindo-se então as castas a plantar”. Vinhos de entrada de gama “não são competitivos neste território, pois as produções aqui são baixas”, conclui Nuno Rodrigues.Num primeiro momento foram lançados vinhos tendo por base uma linha clássica. Futuramente irão surgir vinhos premium (novas tendências) e ícones. A primeira marca criada surgiu com o nome “PIRR”, que recupera a ancestral palavra escocesa para brisa suave e marítima – metáfora da frescura inesperada que a família encontrou nas colinas da sua nova propriedade. Posteriormente surgirão outras marcas para as gamas superiores. Neste ano foram lançados o “PIRR colheita branco 2023”, o “PIRR colheita rosé 2024” e o “PIRR colheita tinto 2022”. Durante o mês de agosto foi lançado o vinho “PIRR reserva branco 2023”.

 

Os vinhos colheitas combinam castas regionais com outras nacionais e internacionais. Fermentam e estagiam em inox com bâtonnage. Uma parte do lote do tinto (15 por cento) beneficia ainda de estágio em barricas de carvalho francês. No reserva branco “procuramos um perfil de guarda, com fermentação malolática parcial, pois aqui temos um potencial de acidez elevado”, conforme nos disse Nuno Rodrigues. A fermentação malolática parcial reduz um pouco a acidez dos vinhos, mas permite aumentar a textura cremosa e o volume, ampliando a complexidade e a sensação aveludada dos mesmos.

No primeiro ano do seu lançamento o “PIRR colheita branco 2023” ganhou a “Medalha Grande Ouro” no “Concurso dos Melhores Vinhos do Alentejo 2025”, organizado pela Confraria dos Enófilos do Alentejo, demostrando assim o potencial desta região e do seu terroir. A herdade dos Toucinhos pretende afirmar-se no mercado nacional, onde os vinhos alentejanos são líderes, com cerca de 37 por cento do mercado, mas pretende ter uma quota importante no mercado externo, onde o Alentejo ainda só exporta cerca de 25 por cento da sua produção. Para isso temos de “competir com as melhores regiões de vinhos do mundo, apresentando um produto de grande qualidade, genuíno e autêntico”, concluiu Nuno Rodrigues.

 

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