Na Costa Vicentina, no concelho de Odemira, está a nascer uma nova sub-região de vinhos alentejanos. Numa zona desafiante em termos de viticultura germinou o projeto Vicentino, que agora passou a dispor de uma adega moderna.
Texto | Manuel BaiôaFoto | Ricardo Zambujo
Nesta região costeira as ondas do Atlântico arremetem com fúria contra as escarpas da costa alentejana. A cada embate libertam no ar milhões de gotículas salgadas em suspensão. Estas minúsculas faíscas do oceano depositam-se nas plantas e nos terrenos junto à costa, cobrindo a paisagem com um véu húmido e invisível. É neste local do Alentejo que se unem a água salgada, a pedra, o ar e a terra, e que mostram vinhos com características novas, frescos, selvagens e salinos, necessitando de alguns anos em garrafa para amaciar o seu ímpeto.
Da Noruega a Portugal Ole Martin Siem nasceu na Noruega e começou muito cedo a estudar e a trabalhar no setor agrícola, na área das verduras e plantas ornamentais. Depois de visitar e trabalhar em muitos países, descobriu a costa alentejana nos anos 80 do século passado. Rapidamente reconheceu nesta região potencialidades ao nível do solo e do clima para as produções agrícolas que idealizara, pois não havia grandes geadas no inverno. Comprou 300 hectares a sul de São Teotónio e, em 1987, iniciou uma plantação de hortícolas (cenouras e couve chinesa) e plantas ornamentais (espargos, fetos e eucaliptos ornamentais), destinadas inicialmente aos mercados nórdicos na época de inverno. Nasceu assim a Frupor, uma das empresas de referência no concelho de Odemira, que emprega atualmente mais de 200 pessoas.
Ole Martin viajou por muitos países e teve sempre uma paixão pelos grandes vinhos do mundo, onde os vinhos alentejanos também tinham um lugar especial. Nessa altura, os mais famosos vinhos alentejanos estavam no interior, não havia tradição de plantar vinhas junto à costa alentejana, pois a viticultura alentejana da época não estava ainda preparada para enfrentar as doenças que surgem numa zona muito húmida. Mesmo assim, e contra várias vozes críticas, decidiu plantar uma pequena vinha, junto à sua casa, num terreno barrento que não era propício à plantação de hortícolas e plantas ornamentais. Confiava na sua equipa, “pois eram agricultores experimentados e bons a produzir, e com a vinha não haveria de ser diferente”, conforme recordou a enóloga residente, Ana Rita Bouça.
Em 2007 plantou sete hectares de vinha, sendo nos primeiros anos apoiado por Hans Jorgensen, das Cortes de Cima, e pelo seu enólogo de então, Hamilton Reis. Fizeram um vinho de pequena produção, chamado “Atlantic”, sendo a maior parte das uvas vendida às Cortes de Cima. Foi uma fase experimental para estudar o potencial da região. A produção foi crescendo e com um maior conhecimento do ecossistema avançaram para o lançamento do primeiro vinho Vicentino, o “Sauvignon Blanc 2014”. A partir desta data a vinificação passou a ser realizada na Adega da Casa de Santa Vitória, em Beja, sob a supervisão do enólogo Bernardo Cabral.
Este primeiro vinho Vicentino ganhou fama, pois mostrava um “Sauvignon Blanc com sabor a pimentos, ficando toda a gente fascinada pelo vinho. Era algo diferente e único, colocando esta região no mapa de muitos apreciadores de vinho”, conforme relata Ana Rita Bouça. Ole Martin ficou muito satisfeito com os primeiros vinhos Vicentino e decidiu plantar mais hectares de vinha na sua propriedade, chegando hoje aos 30 hectares. Em 2017, os amigos franceses e investidores de longa data Antoinette e Olivier Lemens (ligados anteriormente a uma empresa de transportes) juntam-se ao projeto, aportando mais 30 hectares situados na mesma zona. Passaram a dispor de 60 hectares, o que dificultava a logística de elaborar o vinho na Casa de Santa Vitória, em Beja, e, posteriormente, na Perescuma, na Vendinha (Évora). Era necessário avançar para a elaboração de uma adega, tendo o projeto tido alguns atrasos devido à pandemia de covid-19.
Os desafios das vinhas junto à costa atlântica As vinhas estão situadas a menos de dois quilómetros da costa, perto da praia da Zambujeira do Mar, numa localização única e privilegiada, em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Quando as visitámos estavam na fase da floração, com leguminosas, gramíneas e lindas flores nas entrelinhas para azotar a terra e aumentar a biodiversidade. Nesta zona os invernos são amenos e húmidos, com a constante presença dos ventos marítimos. No verão as altas temperaturas alentejanas são atenuadas pelo Atlântico, sendo normal haver algumas horas de nevoeiro matinal. Por isso, a temperatura máxima costuma estar 10 graus abaixo de outras zonas do interior alentejano, permitindo, assim, que as uvas amadureçam lentamente e de forma equilibrada, até se conseguir a maturação ideal para criar vinhos em que a elegância e a frescura se sobrepõem à robustez e à maturação clássica dos vinhos alentejanos. As vinhas estão plantadas em solos de xisto, barro e areia e zonas de transição, sofrendo uma grande influência marítima. Este fator tem vários aspetos positivos referidos anteriormente. Mas também levanta sérios desafios. Foi necessário realizar uma grande aprendizagem para atuar numa viticultura muito diferente do Alentejo interior. A condução das vinhas, o tipo de tratamento e a frequência dos mesmos é muito diferente. Nesta zona surgem mais doenças, o que exige mais tratamentos. Este contexto associado ao tipo de solos origina produções limitadas, que não ultrapassam as seis toneladas por hectare. Esta aparente limitação imposta pelo terroir revela-se, na verdade, um convite à excelência. É justamente essa contenção que impulsiona as vinhas a produzirem frutos de maior qualidade, tratados por agricultores com longa experiência na agricultura atlântica, liderados pelo engenheiro Jorge Martins.
A Vicentino possui cerca de 60 hectares de vinhas próprias, tendo apostado numa mistura de variedades autóctones e internacionais. Nos brancos, produz Alvarinho, Arinto, Viosinho, Sauvignon Blanc e Chardonnay e, nos tintos, Touriga Nacional, Aragonez, Pinot Noir, Syrah, Merlot e Alicante Bouschet. Segundo Ana Rita Bouça, as castas que melhor se adaptaram a este território foram a Alvarinho, a Arinto e a Aragonês. Depois existem castas “mais complicadas, mas com muitos bons resultados”, como a Pinot Noir, a Chardonnay e a Sauvignon Blanc. As castas mais difíceis têm sido a Merlot e a Alicante Bouschet. Esta última tem sido uma das mais desafiantes, pois “é uma casta que demora muito tempo a atingir um bom ponto de maturação”.
A adega da costa atlântica O crescimento da área da vinha levou à necessidade de construírem uma adega própria junto às suas vinhas. O projeto foi pensado em 2020, mas a adega só viria a começar a ser construída em 2022, juntando numa nova empresa os amigos Ole Martin Siem, Antoinette e Olivier Lemens. Durante a vindima de 2023 a adega já esteve a funcionar, mas ainda com as obras a decorrerem. Em outubro de 2024 foi finalmente inaugurada uma sofisticada adega, repleta de maquinaria e depósitos de vários materiais e dimensões. A adega foi desenhada pelo arquiteto Francisco Adão da Fonseca, com a ajuda técnica do enólogo Bernardo Cabral. Está preparada para processar 650 mil litros/ ano, embora, neste momento, a Vicentino apenas produza cerca de metade. Está assim preparada para um aumento da produção e para fazer prestação de serviços a pequenos produtores da zona, que começaram também a lançar vinhos.
O terreno foi escavado para implantar parte da adega no subsolo, melhorando assim a sua climatização e os processos enológicos por gravidade. Numa das paredes da mesma conseguimos ver o terreno e as rochas onde foi implantada. Está equipada com placas solares para diminuir os custos energéticos e com um sistema de poupança e reciclagem de água. A sustentabilidade é um ponto fundamental do projeto, sendo a Vicentino membro do “Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo”, através do qual trabalha para melhorar o desempenho ambiental, social e económico das atividades de vinificação.
Segundo a enóloga residente, Ana Rita Bouça, tiveram três grandes preocupações no desenho da adega. A receção das uvas deveria permitir que elas chegassem com grande qualidade, sendo, por isso, apanhadas à mão. Depois, passam obrigatoriamente uma noite dentro de uma câmara de frio na Frupor. O arrefecimento das uvas permite melhorar “os controlos microbiológicos, ou seja, não necessitamos de usar sulfuroso à entrada”, pois “tentamos manter um bocadinho aquilo que existe dentro da própria uva”. Por outro lado, “em todo o processo da prensagem, se o vinho estiver sempre mais frio, todos os processos seguintes acontecem de uma maneira mais natural”.
Investiram também na escolha das uvas, utilizando um desengaçador vibratório que esmaga menos as uvas. A seguir, estas passam por um tapete de escolha de bagos, “evitando os bagos mais verdes”, que aportam demasiada adstringência e amargor. Todos os processos são feitos por gravidade, não sendo necessário usar bombas. Assim, não “massacrarmos demasiado as massas ou as próprias uvas” e isso “vai-nos reduzir alguns aromas desagradáveis”. O terceiro ponto crucial nesta adega é a diversidade de materiais disponíveis para a fermentação e estágio dos vinhos. Para além do inox, têm tulipas (10 000 litros) e ovos (900 litros) de cimento que “mantêm a fruta, a frescura e a vibração natural de cada casta, dando-lhe ao mesmo tempo estrutura e algum tanino, mas não o tanino típico da madeira”. Dispõem ainda de balseiros de 5000 litros para brancos e 7500 litros para tintos. Nas barricas usam as de 225 litros nos tintos e as de 350 litros nos brancos. Estas últimas provêm da Borgonha, do produtor e enólogo Henri Boillot, amigo da família. As varas da casta Chardonnay que foram plantadas no Vicentino também procedem da sua propriedade e dão origem ao vinho “Vicentino Chardonnay Moonlight”.
A nova adega está preparada para receber turistas, com bar, loja de vinhos e esplanada, possuindo vários programas e experiências de enoturismo para visitar a adega e as vinhas, podendo realizar provas de vinhos das várias gamas do produtor. Existem ainda no local algumas casas destinadas ao turismo de habitação que convidam à tranquilidade.
Vicentino: uma gama diversificada de vinhos Há histórias que se agarram ao vento e às falésias como se fizessem parte da própria paisagem. A que dá nome à Costa Vicentina e ao vinho Vicentino é uma dessas lendas, nascida nos tempos do nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, que ordenou uma missão audaz: recuperar as relíquias de São Vicente, supostamente sepultadas nas imediações agrestes de Sagres. Durante dias, o navio da expedição vagueou em vão por entre enseadas e promontórios, até que o silêncio do mar foi rompido por um bando de corvos. Surgidos como presságio ou milagre. Os pássaros guiaram a tripulação até ao túmulo sagrado. A missão, enfim, cumpria-se. Na viagem de regresso rumo a Lisboa, duas dessas aves negras mantiveram-se fiéis ao cortejo, como sentinelas aladas, acompanhando o navio com as relíquias ao longo da costa. Assim, São Vicente tornou-se o padroeiro de Lisboa e os corvos um dos seus símbolos. Aquela faixa de litoral por onde passaram ganhou o nome de Costa Vicentina e os corvos, carinhosamente apelidados de “Vicente”, ainda hoje são tidos como símbolos da devoção e do mistério que ali sopram com a brisa do Atlântico.
A marca Vicentino associa esta antiga lenda portuguesa ao cosmopolitismo dos seus proprietários, à tradição vinícola do Alentejo e às particularidades climatéricas deste local. Dispõe de portefólio muito alargado com 16 referências, distribuídas por cinco gamas: “Poente”, “Naked”, “Nascente”, “Neblina”, “Luar”.
Com a gama “Poente” surge o vinho “Vicentino” colheita branco e tinto, que combinam diversas castas. Estes vinhos são o espelho de um encontro improvável entre o Alentejo quente e generoso e a brisa atlântica que tempera a terra. São vinhos em que convivem a força e a delicadeza, o calor do interior e a frescura do litoral, elaborados e estagiados maioritariamente em inox.A gama “Naked” mostra vinhos jovens, puros, sem madeira, que procuram transmitir a essência do lugar. Segundo Ana Rita Bouça, estes vinhos procuram “atrair pessoas mais jovens”, com “vinhos fáceis, simples, sem grandes complicações”, com três referências: branco, rosé e tinto.
A gama “Nascente” está focada em mostrar a expressão de cada casta no território da Costa Vicentina. Selecionaram seis vinhos monovarietais: um Sauvignon Blanc, um Alvarinho e um Arinto, nos brancos, e um Syrah, Touriga Nacional e Merlot, nos tintos. Com a gama “Neblina” surgem o “Vicentino Reserva”, branco e tinto. São vinhos de lote, totalmente fermentados e estagiados em madeira. São vinhos mais trabalhados em adega, com as notas de fruta a darem lugar a notas complexas realçadas pelas barricas de carvalho em que fermentaram.
Por fim, a gama “Luar” procura mostrar a excelência do terroir único da Costa Alentejana através de duas castas francesas internacionais e exigentes. As uvas Pinot Noir e Chardonnay encontram nas vinhas Vicentino o ambiente ideal para revelar os seus melhores atributos. Nesta gama temos a oportunidade de provar três vinhos: um tinto de Pinot Noir, fermentado e estagiado em barricas de 225 litros, um rosé de Pinot Noir e um branco de Chardonnay. Este último vinho é elaborado a partir das varas trazidas da Borgonha das propriedades de Henri Boillot e fermentado e estagiado nas suas antigas barricas. Mais recentemente surgiu o espumante “La Mer”, novidade desta gama a partir das castas Pinot Noir e Chardonnay.
Todos estes vinhos são cuidadosamente elaborados sob a supervisão atenta de Bernardo Cabral, viticultor e enólogo do Vicentino, garantindo que cada garrafa reflita o melhor da casta e da região. Bernardo explica que “cada vinho resulta de um somatório de pequenos detalhes na sua elaboração, desde a vinha até à garrafa, e que elevam as melhores características da casta neste terroir tão único”.
Em suma, no concelho de Odemira está a nascer uma nova sub-região de vinhos alentejanos que mostram uma faceta nova da região transtagana. Estão a surgir vinhos salinos, frescos, tensos e desafiantes. Necessitam de um maior tempo de estágio para amaciar e acalmar o seu vigor e mostrar todas as suas virtudes. Por isso devemos bebê-los com pelo menos três ou quatro anos. Mas pode deixá-los descansar na sua garrafeira por 10 anos, pois aí irão revelar toda a sua complexidade. Nas garrafas do Vicentino há mais do que vinho. Há uma nova geografia sensorial do Alentejo. Um Alentejo virado para o mar. Um Alentejo que aprendeu a ser salgado, sem perder o corpo e a essência. Um Alentejo mais contido, mais fresco, mais livre – como o voo dos corvos que um dia guiaram São Vicente.
