No coração da sub-região da Vidigueira ergue-se uma das propriedades vitivinícolas mais emblemáticas do Alentejo. A Herdade Grande celebra em 2025 os seus 105 anos de história familiar, uma jornada que começou em 1920 quando Ernesto dos Santos Lança, homem de Aljustrel e de espírito visionário, se deixou seduzir pela vastidão fértil a sul de Vila de Frades. Comprou a propriedade, instalou aí a sua casa e fez do vinho uma das suas muitas atividades agrícolas. O vinho de talha era então o protagonista. Hoje, passadas quatro gerações, a talha continua a ser usada para produzir vinhos com larga tradição, mas o inox e a madeira tornaram-se os materiais dominantes para ajudar a produzir vinhos de lote ou de uma única variedade de uva. Hoje vamos falar de dois vinhos de casta única que me impressionaram e simbolizam o novo fôlego da casa: o “Herdade Grande Roupeiro Branco 2022” e o “Herdade Grande Tinta Miúda Tinto 2021”.
Texto | Manuel Baiôa
Vinhos monocasta: Roupeiro e Tinta Miúda Os vinhos monocastas, elaborados a partir de uvas de uma única variedade, representam uma filosofia enológica que privilegia a expressão pura de cada casta no seu terroir específico. Esta abordagem, embora menos comum na tradição portuguesa, em que predomina “a arte do lote”, permite descobrir nuances e características que podem ficar diluídas ao misturar várias castas. A palavra casta deriva do latim castus, que significa “puro ou sem mistura”, uma etimologia que encapsula perfeitamente a filosofia por detrás destes vinhos da Herdade Grande. Cada garrafa torna-se assim um retrato fiel a uma variedade específica no terroir único da Vidigueira.
A casta mais emblemática da Vidigueira é a Antão Vaz, mas existem outras variedades que encontram neste território um lugar especial para se expressarem. Diogo Lopes, enólogo de mão firme e mente aberta, regressou recentemente à Herdade Grande com uma missão clara: dar voz às castas menos óbvias, escutando o que a terra tem para dizer. “O Roupeiro é uma variedade muito bem-adaptada ao terroir da Vidigueira”, também designada por Códega no Douro, Síria nas Beiras, Dão e Bairrada, e Crato na região do Algarve. É considerada uma das castas brancas mais antigas de Portugal. “Faz parte da coleção de castas originais desta sub-região e desde sempre foi muito importante nos lotes tradicionais da região. Talvez o que lhe tenha faltado é algum destaque individual, como monocasta. É isso que tentamos explorar agora, mostrando que é uma das melhores e mais equilibradas variedades desta zona. Aliás, e digo-o com toda a convicção, apesar de estarmos na terra do emblemático Antão Vaz, para mim a Roupeiro é a melhor casta branca desta zona, porque consegue ter um pouco de tudo, desde boa fruta, boa acidez e muita elegância; tudo o que se quer num branco”, explica. E é isso mesmo que este branco agora reclama.
O “Roupeiro 2022” é feito a partir de uvas colhidas manualmente e fermentado em parte em barricas de 400 litros e em parte em inox. No nariz surgem notas florais e alguma mineralidade; na boca, lima, maçã e pera dançam numa estrutura afinada, limpa, sofisticada. Um vinho que não grita, mas seduz com elegância contida – ideal para mariscos e peixes grelhados.
Já a “Tinta Miúda 2021” é outra revolução – silenciosa, mas segura. Nasceu do espírito inquieto de António Lança, engenheiro agrónomo e timoneiro da terceira geração, que procurava castas nacionais capazes de exprimir um novo Alentejo. Esta variedade “mantém muita acidez natural e isso é fundamental para o perfil de vinhos que queremos fazer, plenos de caráter e elegância. Tem sido para mim uma das maiores surpresas nos tintos e impõe-se todos os anos entre as variedades que mostram mais qualidade e equilíbrio. É hoje um valor seguro da Herdade Grande, assume-se como espinha dorsal dos melhores tintos que fazemos; e expressa também um novo potencial para a região.”, diz o enólogo.
Este tinto, de cor granada intensa e aroma envolvente, conjuga frutos vermelhos com fumados e especiarias. Na boca é fresco, estruturado, amplo e envolvente, com um final persistente. Estagiou 12 meses em barrica francesa e tem vocação gastronómica evidente: pratos de forno, caça e carnes com alma.A produção limitada de ambos os vinhos – 1500 garrafas do “Roupeiro” e 3400 do “Tinta Miúda” – é reflexo da filosofia da Herdade Grande: menos quantidade, mais identidade. Mariana Lança, quarta geração e atual diretora-geral, reafirma que “a estratégia não passa por crescer em volume, mas em valor. Defendemos vinhos distintos, que falam da nossa terra com autenticidade”.
Num momento difícil de vendas para o vinho português, e em que se debate identidade e diferenciação, a Herdade Grande oferece respostas serenas e firmes. A talha foi recuperada, sim, com simbolismo e memória. Mas, para além dos vinhos de lote, os vinhos de casta única marcam o novo rumo. Porque cada vinha tem uma história, e cada casta uma voz. A Roupeiro e a Tinta Miúda falam agora mais claro – com sotaque de Vidigueira e vocação universal.
