Diário do Alentejo

Os Diários de Lanzarote

24 de novembro 2023 - 12:00
Segunda-feira, 25 de setembro de 2023, uma semana antes
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto | João de Carvalho 

 

No aeroporto de Madrid, o ponteiro dos segundos avançava, incansável, rumo ao minuto seguinte. E quando atingido esse próximo minuto, o tal ponteiro dos segundos recomeçaria a sua marcha, avançando, novamente, rumo ao minuto seguinte, tal Sísifo e a sua pesada pedra, todos os dias, montanha acima. 19h40, dali a pouco 19h41.

Depois de partir de Lisboa, a escala em Madrid mostrou-se interminável. Nas portas de embarque, a única mochila que levei descansava comigo, pousada sobre uma cadeira contígua àquela onde o meu corpo repousava. Dentro dessa gorda mochila azul emaranhavam-se todo o tipo de coisas que um viajante sempre precisa. Desde roupas, comprimidos, uma escova para o cabelo, outra para os dentes, mais alguns acessórios de higiene pessoal, até preservativos, mais nada cabia, nem tão-pouco um milímetro de espaço vazio. Tudo se misturava e lutava, aos empurrões, pelo seu espaço na mochila azul-escura. Desenrolava-se uma autêntica guerra civil numa bagagem silenciosa, mas apenas as minhas costas se debatiam com os remorsos dessa pesada guerrilha, tanto que mais ninguém pareceu reparar no confronto territorial que se disputava dentro da mochila. Toda a santa gente olhava para os relógios do aeroporto, na espera impaciente de chegar a hora certa sabe-se lá do quê. A hora certa. Há e sempre haverá uma hora certa. Era hora de esperar que os minutos avançassem até que batessem nas acertadas 21h50 do voo para Lanzarote. Foi o que fiz, aproveitando para dar algum alívio às costas, recostando-me no assento. Se há algo que faço bem é descansar, entregar-me ao ócio, pensar em nada. Mas não, ali mostrava sinais de inquietação. De vez em quando, levantava a cabeça e observava os meus companheiros, aqueles que em breve estariam, tal como eu, a caminho de Lanzarote. Cada um desses passageiros funcionava como um espelho, como se cada um deles fosse todas as gotas de água onde Narciso ousou contemplar-se. Todos apresentavam, nas respetivas faces, um ar sisudo. E eu revia-me nesses sérios e graves ares. Talvez porque essa sisudez me alertava para o medo de andar de avião. E quando o medo se alastra ao pânico, é muito fácil uma pessoa perder-se. Mas apesar dessas caóticas sensações, o meu rosto permanecia calmo. Uma paz de expressões exteriores contrastava com um caos interior justificado. Se o avião cai, morro – pensava. Esta simples lucidez arrasava-me e, apesar da improbabilidade de um acidente, o pânico de um desastre aéreo toda a vida foi uma realidade nos meus pesadelos. O ar sisudo não residia só na cara dos viajantes, alargava-se ao aeroporto e ao seu arrogante teto feito às ondas. Por um momento, fechei os olhos e tentei esquecer-me de tudo, inclusive de mim. Nesse breve vazio mental, lembrei-me de Baudelaire e de como nunca evitara os prazeres do vinho e do ópio, mesmo consciente acerca das possíveis e perigosas consequências desses paraísos artificiais. Ora, fazia esforços para introduzir essa lógica na minha vida: não obstante os perigos do avião, há que viajar. Para sugar a vida até ao tutano, uma pessoa tem de expor-se. Os medos são úteis, mas passageiros, quando enfrentados numa revolta feliz. Assustado, não me deixei vencer nem pelo medo nem pelo cansaço que me fatigava os olhos. E não senti heroísmo nenhum em ultrapassar medos deste tipo. Enfrentava apenas uma ânsia dos privilegiados (viajar) e saber isso era o suficiente para, naquele momento, suportar-me. Numa hiperextensão do pescoço, olhei para o teto que continuava feito às ondas, misturando-se, nos meus pensamentos, com o mar disposto à volta de Lanzarote. Num desvario repentino, invoquei mentalmente o memorial da passarola que, num ato blasfemo, ousou sobrevoar os céus de um convento. Omiti dos meus desvarios mentais o desfecho dessa viagem de passarola. Suspirei e enchi-me de coragem. Abriram as portas de embarque. O ponteiro dos segundos corria, às voltas, incessante e entusiasmado. Estava quase na hora certa: a hora de voltar a voar.

Depois de aterrar em segurança, um homem perde os medos e parece até gostar de voar. Mas posteriormente, quando é necessário fazer a viagem de volta, também os medos, essas emoções vitais, retornam.

Assim que saí do aeroporto, fui recebido principescamente pelo Juanjo. Tratou-se de um encontro, visto que nunca tinha estado com o Juanjo, mas tudo me pareceu um reencontro. Ao observar o à-vontade e a ligeireza com que ele saiu do carro, percebi que estava perante um amigo de longa data. Pus-me também mais tranquilo e relaxado. Entrei no carro branco e elétrico do meu anfitrião e, pelos caminhos de Lanzarote, falei. Naquele momento, no universo de uma ilha para mim desconhecida e escondida pela noite assumida, dois estranhos amigos falavam pela primeira vez. O tema da conversa foi-se desenrolando como uma serpentina. Falou-se do carro elétrico e das suas vantagens e, logo depois, uma confissão. Não sabia a que horas chegavas, mas comprei umas bolachas e um leite de aveia, também alguma fruta; não sou o melhor anfitrião – disse-me o meu amigo num espanhol que, dada a simplicidade, percebi. Mentiu-me. Às vezes o que alguém perceciona de si mesmo não corresponde à realidade. O melhor anfitrião compraria comida ao seu hóspede, mesmo sem o conhecer. E foi isso que o Juanjo fez. Agradeci-lhe a comida e desmenti-o. Nem fui eu que desmenti o meu amigo, foi ele próprio, através de um gesto que lhe contrariou as palavras. Foi sob esta discussão que avistei pela primeira vez a Casa de Saramago. Nesse momento a noite cintilou, refletindo-se no meu espírito. Deixei de ouvir o Juanjo e sorri. Depois do caminho percorrido até Casa, chegara a hora de instalar-me e, chegada a hora, a tranquilidade do Juanjo fez-me sentir como se estivesse na minha própria casa. O facto é que não me encontrava na minha própria casa, mas Saramago tem o poder da hospitalidade, tanto nos seus livros, como na sua própria Casa. Ainda mais na sua própria Casa. Lembro-me de quando, pela primeira vez, entrei. Atravessei as portas de entrada sem saber o que me esperava. Fui encaminhado, escadas abaixo, para a cave de Casa. Entenda-se que a cave é gigante, ultrapassa os limites de uma cave “normal”; está equipada com casa de banho, dois quartos e, numa mesma divisão, sala de estar e cozinha. O Juanjo deu-me a liberdade de escolher o meu quarto e eu, com todo o gosto, fi-lo. O da cama de casal – disse-lhe. Um homem dorme melhor sozinho numa cama espaçosa – pensei, enquanto, muito rapidamente, entrei no quarto, pousei a mochila e tornei a sair da divisão. Encarei a sala, cujas paredes, pintadas de um amarelo vivo, ostentavam pinturas e posters de prémios. Subitamente, dei conta de estar numa cave gigante, não só espacialmente, mas também no seu espírito. Quantos significantes hóspedes já deve ter recebido esta cave? Talvez Eduardo Galeano, Susan Sontag ou Carlos Fuentes. Foi com este pensamento que, depois de algumas conversas com o querido Juanjo, adormeci, sentindo-me grandiosamente em mim e caindo para dentro do cansaço de um dia tão longo e interminável. Mas esse dia chegou ao fim, provando que tudo termina, até o que designamos como interminável.

Comentários