Diário do Alentejo

Ilustração| Susa Monteiro/ArquivoIlustração| Susa Monteiro/Arquivo

Não sou uma pessoa de animais.

Desde cedo, e porque tinha um quintal com uma dimensão razoável, em criança sempre tive animais: cães, gatos, pássaros, hamsters, tartarugas... Por vezes em convivência conjunta.

Nunca lhes liguei muito. Recordo-me de ter tido um gato bebé, a quem adorava dar leite numa taça em cima da mesa.

Dos cães tinha medo. Quando passavam do quintal para o interior, eu tentava esconder-me, ou colocar-me na cabeceira do sofá, não percebendo na altura que só queriam brincar.

A separar o meu quintal do da vizinha havia um muro com pouco mais de metro e meio. Não raras foram as vezes em que a bola lá foi parar e, ainda hoje, estou para saber como me safei uma das vezes em que fui lá apanhá-la, sendo recebido por dois cães que, fazendo o seu papel de seguranças, deram conta da invasão.

No verão, já na casa dos meus avós paternos onde passava uma temporada, sempre houve cães. Também aqui a nossa convivência era cordialmente pacífica, desde que cada qual estivesse no seu canto.

À medida que fui crescendo, o medo deu lugar ao respeito. Porém, o sentimento de relação, a ligação afetiva, nunca chegou. Mesmo tendo passado fins de semana destacado para tomar conta de dois cães em simultâneo, numa casa que não era a minha, com passeios incluídos no menu, claro está. Aí falou sempre mais alto a ideia de passar um fim de semana sozinho numa casa só para mim, e com 18 anos (não mais) não havia como não achar a proposta tentadora.

De um dos lados da família praticamente todos os agregados (e que são alguns!) têm cães. Ao contrário de mim, passaram ao estágio seguinte da relação e, sem dificuldades, adotaram os seus cães, em alguns casos já vários numa espécie de linha de sucessão sem ligações familiares como elementos da família.

Partilhei, aliás, durantes dois anos, a casa com uma tia e com a sua cadela. Rapidamente soubemos o lugar de cada um. Impressionante verdade essa de que os cães percebem facilmente o que sentimos por eles. Aqui, mais uma vez, imperou o respeito (em especial porque o invasor era eu) por ela e pela dona (acho que hoje em dia já se diz tutora e eu não quero aqui ofender ninguém!).

Voltando ao início, não sou pessoa de ter essa ligação afetiva com os animais mas, mais do que isso, considero que são uma responsabilidade que eu não quero para mim. Essencialmente no caso dos cães, que exigem dos seus cuidadores uma atenção e uma disponibilidade que eu entendo não ter ou não querer forçar.

Acredito nos benefícios que trazem em matéria de companhia, no desenvolvimento das crianças, etc., etc., etc.... Mas, como em todas as nossas decisões, tem que haver uma balança.

A minha tem os seus pesos claramente desequilibrados, até ver.

Por herança, falta de incentivo, genética ou simplesmente porque sim, a minha filha não simpatiza com cães, em especial se forem maiores do que ela (o que não será difícil, no caso) e, particularmente, quando se mexem (característica que, não sendo a pilhas, será comum a todos eles).Defendo o respeito. Defendo que devo respeitar este receio e protegê-la. Defendo que deve ser ela a abrir o espaço no tempo que entender, para que esta relação possa evoluir. Sem pressas nem pressões.

Infelizmente, como em muitas outras matérias, nem sempre a razoabilidade ou o respeito imperam aqui neste tema.

Já ouvi muitas coisas, sendo a mais comum: “Tens que a habituar para ela perder o medo”.

Poderia encarar este apenas como mais um dos muitos palpites a que estamos sujeitos no exercício da paternidade e fazer com ele o que faço com todos os outros que não pedi...

Mas neste caso não. Este assunto, digo-vos eu, mexe comigo. Não sei se por me rever, ou, simplesmente, por despertar em mim uma necessidade de proteção para com ela que, a bem dizer, é transversal a esta coisa de sermos pais.

Poderão defender alguns que ao fazê-lo não estou a protegê-la nem a dar-lhe ferramentas para lidar com esta questão.

Pois não posso estar mais em desacordo.

Sou pela naturalidade e não pela imposição. Quase com nove anos, ainda não lhe caiu nenhum dente e eu não optei por lhos arrancar de forma forçada só porque tem que ser.

Há dias, num parque infantil, ao chegar, junto ao portão estava uma senhora, já idosa e com uma muleta, com um cão, cuja raça até é considerada perigosa e obrigaria ao uso de açaime (mas não é este o ponto), sem trela. Dentro do parque, apenas uma criança, que estava com a dita senhora. Ao entrar, com a minha filha, encostei a porta do parque, pois achei que havendo a hipótese do cão se entusiasmar e entrar por ali, não seria um cenário fácil. Reforço que estamos a falar de um parque infantil. Pois que a senhora ficou muito indignada com o meu gesto, que questionou, e hoje só vos escrevo este testemunho porque, felizmente para mim, os seus olhos não eram armas de fogo.

Por mais que me tentem convencer, não entendo porque se passeiam cães, seres imprevisíveis, sem trela. Para bem deles e dos restantes, não deveria ser uma prática tão recorrente como é. Cada um é livre de nas suas casas dormir com cão, sentá-lo à mesa ou oferecer-lhe um bolo de aniversário para cantar os parabéns. Mas o que entendo que devem ter presente é que há quem não esteja à vontade com eles. E esse entendimento não pode passar pela típica abordagem: “Ele não faz mal, não morde”.

É neste ponto que eu gostava que nos encontrássemos todos: o do respeito pelo próximo, que, na maior parte das vezes, nem conhecemos. Também nesta relação deve haver consentimento mútuo para o contacto e para a convivência.

O facto de haver quem defenda a máxima de que quanto mais conhece as pessoas mais gosta dos animais, não lhes confere o direito de os impingir aos restantes, por mais que a Humanidade esteja de facto a passar um mau bocado.

Note-se que esta posição não pode ser confundida com achar que os cães não têm lugar nas famílias, ou que devem ser tratados “abaixo de cão”, pois não é disso que se trata. Quem opta por ter a seu cargo um cão deve ter mais do que um lar e um saco de ração para lhe dar. Contudo, para quem a opção é não o fazer, deve estar tudo bem também.

Não vou aqui opinar sobre a já permitida entrada de cães (que não apenas os cães-guia) nos centros comerciais, desde que com seguro. Serão sempre opções com as quais cabe a cada visitante, informado, decidir o que fazer.

Mas não posso deixar de mencionar o quanto me choca a constante comparação de um animal a um filho, a humanização dos mesmos ou, ainda, a altivez e o desdém de quem entende que o respeito por parte de quem opta por não ter (ou não querer conviver com) um cão diariamente, independentemente do motivo, tem que ser maior do que o vai no sentido inverso.

Por haver lugar para todos e cada um ter o seu, vivamos cada qual com as suas opções e com a noção de liberdade que está cada vez mais deturpada pela sobreposição dos interesses individuais que se confundem com ela.

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