Diário do Alentejo

Férias com tudo incluído

25 de setembro 2023 - 10:00
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Texto Jorge Martins 

 

Passamos o ano de trabalho a pensar nelas. As férias são o momento para nos perdermos mas, também, para nos encontrarmos. São, por defeito, o momento em que temos mais tempo para estar sem tempo.

 

Na era de estudantes, catraios, esse era um período que trazia um misto de excitação inicial, com saudades dos parceiros de luta pelo meio, e uma ansiedade misturada com tristeza, que marcava os últimos dias antes de começar o novo ano letivo.

 

Esta era atenuada pelo momento da compra dos livros e do material escolar, que anunciava um novo desafio mas trazia um pouco de entusiasmo por irmos usar todas aquelas coisas.

 

Trazia ainda, do que me lembro, a consciência da inconsequência de não ter feito os trabalhos de férias e que eram, quase sempre, feitos à pressão e com muito sacrifício, nos últimos dias.

 

Mas o sentimento de que podíamos ter feito mais, mesmo que tivéssemos tido três meses para o fazer, era inevitável. Nunca tive grandes férias na infância. Vivia numa casa cheia de gente e parca em recursos. Filho de pais separados e sem a “modernice” das guardas partilhadas, desde cedo (ou desde sempre!) o caminho era ficar com a mãe, que trabalhava de sol a sol para garantir, entre outras coisas, que no momento do tal regresso estávamos munidos do básico e necessário para seguir viagem para mais um ano escolar.

 

As férias, essas, ficavam para quando o pai nos levava uns dias até ao centro do país, numa casa de família, em que família nunca faltava.

 

Desses tempos trago muitas e boas memórias. O rio. O adro da igreja onde aprendi a andar de bicicleta e atropelei o meu irmão.

 

O chão de cimento onde, ao puxar as pernas penduradas na cama, provoquei um valente galo na cabeça dessa mesma vítima que, perante a falta do pré aviso, soltou as mãos apoiadas num velho baú e que, no final, ainda levou um valente raspanete do pai. Uma tarde inteira sentado numa cadeira com uma tia ultra paciente a despejar azeite no meu longo e encaracolado cabelo que recebeu, inoportunamente, visitas indesejadas, mas cujo plano de o cortar nunca esteve em cima da mesa.

 

O pão quente de madrugada. As visitas do vizinho psicologicanente debilitado. Os regressos anuais da tia emigrada que terminavam, invariavelmente, com uma nota de cinco contos para cada um dos dois e que me fazia sentir que tinha dinheiro para o resto do ano.

 

As cartas para a mãe com quem comunicavamos na ausência de telefones. As camas no chão. As tendas improvisadas. A primeira (e única) vez que provei figos (e jurei para nunca mais). As noites a jogar bilhar no café que me faziam sentir um pequeno adulto ao pé dos maiores, acordado até tarde (no fundo, um desejo de todos os pequenos). As compras cujo carrinho era uma espécie de bar aberto às guloseimas. O supermercado, embora renovado, ainda existe.

 

O rio, embora mais baixo, também. A família, embora unida, já não está toda. A tia, ainda emigrante, já não vem com frequência. O cabelo está mais curto e visivelmente mais branco.

As memórias, essas, perduram e hão-de ficar, algumas, eternizadas nas fotos com as quais pontualmente me cruzo. Havia também as colónias de férias. Rumava a casa da avó, do outro lado da cidade, depois de uma longa jornada a organizar e engomar a roupa (porque os transtornos obsessivos não aparecem do nada) e de uma espera, não menos longa, pela boleia do pai.

 

Nesta altura comecei a ir de autocarro sozinho da casa dela para a escola de onde partia o autocarro para a praia. Por vezes acompanhado pela tia, que era monitora. Recordo-me de nos primeiros tempos, ter medo do mar e ir sempre ao colo de alguém. Diz quem viu que, antes desta fase, havia o pânico da areia. Vá-se lá explicar…

 

Destes tempos, cujos anos se misturam na memória, recordo ainda o Baywatch (Marés Vivas) que eu assistia religiosamente ao final da tarde, já em casa, quase sempre com um iogurte com banana cortada aos pedaços. Recordo-me do meu primeiro filme no cinema.

 

De ser salvo por um casal de me afogar no Onda Parque da Costa da Caparica. De ir ao café com os meus tios à noite e de me sentir um adolescente que, no fundo, era só uma criança com muita graça para os amigos deles, alguns com quem ainda hoje falo e recordo esses dias. Ah! E da Super Jovem, claro, revista que comprava sem falhar.

 

Passava também, a dada altura, muito tempo no computador a jogar jogos de treinador de futebol. Lá está, entre a confusão dos anos, estas são memórias soltas que foram marcando a evolução da (minha) espécie enquanto veraneante. Hoje, há pontos que se cruzam. Quando posso ainda fujo até essa casa da família e das memórias, e foi onde me refugiei nas férias covid em 2020.

 

Sou defensor, sempre que possível, da teoria de que em que equipa que ganha não se mexe. Podendo correr o risco da monotonia ou do facilitismo, a verdade é que hoje, adulto, vejo as férias como um momento para desligar. Não importa, por isso, se a receita (leia-se destino) é igual, desde que sacie essa necessidade.

 

E assim tem sido nos últimos oito anos (salvo o já referido e malfadado 2020). Dividimos o tempo entre o nosso querido Alentejo e a parte (ainda) pacata do Algarve e lá vamos, criar memórias. Este é o segundo objetivo mais relevante. Criar memórias e, um dia, poder garantir que a minha filha ao escrever palavras sobre este tema, como aqui faço hoje, possa fazer com o mesmo carinho e a mesma saudade, a sua viagem no tempo. Os momentos são feitos de pessoas, bem sei.

 

O sítio pouco importa para a equação da qualidade, mas terá certamente o seu significado emocional no momento de um eventual regresso. Sinto, por estes dias e já de algum tempo, em especial em ambiente profissional, bastantes pruridos por parte da maioria no momento da resposta à típica pergunta por esta altura: “como foram as tuas férias?”, ao assumir-se que se foi “só até ao Algarve” ou “à casinha que temos no Alentejo” ou que, simplesmente, “ficámos por aqui”.

 

Há uma espécie de estatuto instalado que não permite a alguém dizer que teve umas boas férias mesmo que isso não tenha implicado pagar dois ordenados mínimos por pessoa para uma estadia num hotel num qualquer sítioque não Portugal. Mas afinal, quanto não vale uma foto numa rede social, com a asa do avião do lado de fora da janela?

 

Somos os primeiros a insurgir-nos quando alguém ofende o nosso país, mas os mesmos da fila a renegar as suas qualidades. Digo-vos eu que as crianças nos ensinam muito. E neste tema, posso assegurar que se o local as marca, a experiência que fica nas suas memórias tem muito pouco a ver com os euros investidos.

 

Este verão trouxe mais uma lição que, sendo repetida, nos deve fazer pensar: o nosso tempo, para nós e para os outros, em especial os nossos filhos, funciona como resort com tudo incluído, sem necessidade de reserva ou check in. O verbo é ir. O objetivo é estar. O segredo é aproveitar. O desejo é voltar.

 

Para o ano há mais…

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