Junto a umas instalações desportivas, nos subúrbios da cidade, instalou-se um pequeno circo, divulgado em cartazes e através de um megafone com a forma de sino, que circulava pelas ruas dos bairros periféricos, quase desertos, em época de imenso calor.
Anunciava-se a apresentação de dois grandes palhaços, ambos com rostos brancos de pó talco e trajes com lantejoulas de mau gosto. Também se anunciava a apresentação de animais selvagens, alguns, pensava-se, em vias de extinção. Talvez um urso pardo ou algum lobo, meio selvagem, meio domesticado.
Dizia-se que os palhaços, homens de largos sorrisos, mas contidos em palavras, eram grandes amigos de longa data, ambos sócios em empresas de grande valor, auferindo altas rentabilidades. Também, ao que parece, um era uma espécie de guarda-costas do outro, mantendo-o sempre na ribalta das grandes figuras de circo, no mundo inteiro. Para além disto, conseguiu ter com ele uma tropa de amigos leais, muitos, que tinham armas de guerra que metiam medo.
Um dia, a beber o seu chazinho, num chalé de luxo, tal como acontecia muitas vezes surgiu-lhes uma conversa mais austera do que as simples piadas de mau gosto que tinham de inventar, porque o palhaço mais sério e patrão máximo do circo, sentia-se com falta de público e, por isso, a entrar em depressão. Assim, neste estado, criou uma má fama de agressividade e loucura, ao invadir a casa de uns vizinhos, onde sofreu uma enorme sova, por tirania e desrespeito pelo bom senso e regras legais mundiais.
Um passo em falso que o deixou, (e continua a deixar, cada vez mais), traumatizado. Alguma coisa teria de ser feito com urgência, sob pena de deixar de ter o público da sua terra – o que lhe dava o poder de ser tirano.
Assim, os dois palhaços, combinaram, em surdina, atuar no dia de São João, altura das festas populares. Algo em grande, direi mesmo ciclópico. Tudo tão silencioso e intimista que nem às “secretas” lhes passavam pela cabeça tal plano. E tudo arranjado à volta da taça do chá das cinco, no tal luxuoso chalé.
Chamados ao palco da política da guerra, o palhaço menor ordena aos seus amigos mais brutos e assustadoramente antropófagos, que sigam em fila, com as suas armas e viaturas armadas, em direção à capital. Passam por várias cidades que facilmente dominam sem oposição das gentes que lá habitam e soldados que por lá há. Mais de 1000 quilómetros em autoestrada, com beijos e abraços de muita gente, ficando acampados algures num parque de campismo barato ao lado da estrada, próximo da capital.
As pessoas da capital tremiam de pavor, atendendo ao que se previa acontecer. Retirado para local desconhecido, o palhaço mor mandava para o seu porta-voz (um de bigodinho), notas de imprensa onde se relatava o que esses traidores iriam sofrer nas cadeias gélidas e davam-se recompensas milionárias a quem os prendessem.
E é aqui que aparece o animal selvagem, em vias de extinção, pensava-se – um urso pardo que forrava os sapatos número 68 do palhaço mor. Mediador, diz-se na televisão, que tinha salvo e lançado, de novo, a paz. O palhaço menor, coitado, que tinha planificado esta longa viagem à capital, tinha-se esquecido que poderia haver confrontos entre o palhaço mor e os seus amigos mal organizados. Um banho de sangue. Bela desculpa que ele arranjou para safar o seu amigo da má fama, já que agora o palhaço mor, o tirano, poderia dormir descansado, pensando que o público viria de novo ao seu colo.
Vá lá que o urso, mediador manhoso, nada mediou. Simplesmente fez aquilo que lhe foi mandado fazer e assim limpar o pó de talco que o amigo ainda tinha no rosto, agora borrado de suor, largado enquanto a cena maquiavélica decorria. Aparentemente, tudo tinha decorrido como esteve sempre planeado. O palhaço menor aceitou tudo. O palhaço mor mandou retirar todas as queixas apresentadas. O urso levou para a sua terra o palhaço menor, onde caberiam também os seus amigos. Seguramente haverá por lá, também, um chalé de luxo.
A sessão noturna para adultos, não crentes, terá lugar no mesmo espaço ou um pouco mais a sul, com fogo-de-artifício e todos os ingredientes de uma verdadeira guerra fratricida. Onde a desordem e a morte de inocentes estará dependente das cabeças daqueles dois. Palhaços.
*escrito em 26 de junho de 2023
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia