Diário do Alentejo

Crónica de Jorge Martins: Um género de igualdade

03 de julho 2023 - 11:30
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Igualdade. Este termo tão falado nos últimos tempos.

Um conceito que, explorado, nos levaria a muitas páginas de escrita ou até a uma edição especial deste jornal.

 

Na grande parte das discussões a que assistimos, conferências, artigos, publicações nas redes sociais, entre muitos outros formatos, o foco é a mulher e a necessidade premente de que a sociedade lhe atribua direitos em partes iguais, deixando cair o conceito de superioridade existencial em benefício do homem.

 

Porém, o que me leva a escrever aqui hoje é o papel do homem enquanto pai.

 

Passava pouco tempo do nascimento da minha filha. Como todo o primeiro descendente, numa experiência baseada na falta dela, foram vários os convidados a vir conhecer a joia da coroa (e muitos também os que, não o tendo sido, apareceram para a ver).

 

Numa dessas visitas (programadas), quando o casal chegou, estávamos num processo rotineiro de mudança de fralda. O primeiro comentário que ouvi do meu amigo foi em tom de questão: “Mas tu também sabes fazer isso”? Hoje, oito anos volvidos, é pai de dois.

 

O ponto aqui é que é a experiência de cada um, o quanto a que ela nos força, nos tolda o perfil e a atitude perante o que a vida nos traz. E esta é uma experiência que, não sendo abraçada da mesma forma por todos, pode trazer o melhor ou o menos bom de cada um, consoante a envolvência e sentido de pertença no processo.

 

Estamos já longe, felizmente, da ideia de que pai é apenas sustento (ou pensão de alimentos). Tenho o privilégio de ter na minha geração um conjunto de pais que considero que não só ajudam a desmistificar esta ideia como fazem esquecer, por momentos, que ela já existiu. O problema é que não é apenas um conceito do passado.

 

Há um tempo, sentados à mesa com uns amigos, o outro pai presente, da mesma geração de pais do que eu, contava que nas férias o filho ficou doente e que, estando no hotel, se viram a braços com um episódio para o qual precisaram de ir em busca de medicação, pois a mãe não se tinha lembrado de levar ben-u-ron. Não me contendo com esta observação, apenas me ocorreu questionar: “Mas ela foi de férias sozinha”?

 

Rapidamente me ocorreu que existem homens para quem a esposa lhes faz a mala, compra a roupa ou prepara a marmita todos os dias com direito a talheres e guardanapo. É normal, aceitável e inquestionável.

 

Se considero que tem mal assim ser? Não, o ponto não é esse. O que considero, sim, é que estes são sinais de uma enorme dependência que é importante contrariar, para bem de todas as partes. E é aqui que entra o papel das mulheres/mães.

 

Considero que se existem homens/pais encostados à sombra da sua cara-metade, por conforto ou conveniência, uma quota-parte de culpa é das mulheres/mães que usam esta sina cultural como arma de arremesso para os seus queixumes. Existem todo o tipo de cenários. Os que justificadamente continuam a dar razão a esta luta, os equilibrados e aqueles, que abordo aqui, em que o perfil controlador, o princípio do “eu é que sei”, a desconfiança de que o outro é capaz, levam a uma rendição – não justificada – do outro lado. Ao homem não basta que o deixem ser parte. É fundamental que o queiramos ser em partes iguais, cientes da importância de cada um, certos da capacidade que todos temos.

 

Há dias ouvi um depoimento de uma figura pública, mulher, que falava sobre a culpa que sentia por ter regressado ao trabalho um mês após o nascimento da filha, em que dava nota que o que mais lhe custava era o julgamento dos outros, na sua maior parte, mulheres, também elas mães. E, em tom de desabafo, concluía que aos homens ninguém faria tais apreciações.

 

Não concebo a ideia também já ouvida várias vezes de mulheres que pretendem ser mães para preencher um determinado espaço, mas que não pretendem partilhar essa jornada com um homem. Nem sempre conseguimos calçar os sapatos do outro mas, apesar do desconhecimento das motivações que levam a esta opção, considero uma opção egoísta. Consideração que faço por saber a importância de levar a jornada da paternidade com a figura dos dois elementos. Não falamos das pessoas terem de ficar juntas para sempre. Sou filho de pais separados. Mas isso não significa não ter uma figura de um pai que não é, nem pode ser, substituída pelo apoio do avô. Cada macaco no seu galho.

 

Não sou, nem quero ser, modelo ou referência para ninguém nesta matéria.

 

Mas, digo-vos eu, não entendo como é que ainda existem homens que conseguem abrir um motor de um carro, reconhecer cada peça e resolver cada avaria (e não, eu não sei o que é um carburador, não faço ideia onde ficam a correia de distribuição ou as bielas), que conseguem ver na troca de uma fralda um mistério que só a mãe sabe desvendar.

 

A única coisa que nunca fiz com a minha filha foi, por questões óbvias, amamentá-la. Nunca perdi uma consulta e, ainda hoje, na clínica onde vamos, as enfermeiras e a própria pediatra repetem quase sempre que lá vou: “Está tão crescida. Ainda me lembro quando o pai aparecia aqui com ela no marsúpio”. Não me passa pela cabeça, das várias vezes em que já fiquei sozinho a cuidar dela, que a mãe deixe a roupa criteriosamente separada ou a comida preparada em tupperwares para o período de ausência.

 

Não sei, é verdade, quando lhe nasceu o primeiro dente. Não me recordo da sua primeira palavra ou em que mês deu o primeiro passo. Posso não ser bom com isso. Mas sei que quando me recordar como pai, não será certamente isso que fará a diferença. Como homem, também não quero ser recordado como aquele que era um ás da bricolage, que um dia desmontou e voltou a montar a caixa de velocidades do seu próprio carro ou que sabia de cor a classificação do campeonato de futebol alemão. Mas estou certo que se for apontado como tendo sido um bom pai, já justifica esta passagem por este bocadinho que é a vida.

 

Chegar, hoje, a uma sala de espera de uma consulta no hospital e reparar que grande parte das crianças que ali estavam, estavam acompanhadas pelos pais homens, deixa-me a certeza de que se trata de um sinal de mudança para o qual todos nós, pais destes dias, deveremos continuar a contribuir, para que um dia já nem seja motivo de observação.

 

Ser Pai é muito diferente de ter filhos. Para mim, a vida é sobre criar memórias que fiquem escritas na memória dos outros. Se forem bem escritas, melhor.

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