Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: “A ditadura da ignorância glorifica a estupidez”

10 de abril 2023 - 09:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula Figueira

 

“Mas quem pensa o senhor que é? O salvador da pátria?”

 

Imagine o leitor ser convidado para participar numa reunião de trabalho e assistir a uma troca de galhardetes, entre duas pessoas, que face à crescente inflamação, culminou na saída precipitada da sala de uma delas, deixando os restantes participantes boquiabertos e, no ar, aquelas duas perguntas.

 

Imediatamente a seguir, presumo que em jeito de apoio, mais três pessoas tiveram a iniciativa de se levantar, pediram desculpa e ausentaram-se. É claro que o ambiente ficou “de cortar à faca”. Acredito que parte dos restantes, de entre os quais me incluo, terão ficado sentados apenas pelo facto de, sendo externos àquela organização e estando a participar na qualidade de convidados, desconhecerem em profundidade o ónus da discórdia e, dominados pela letargia do espanto, permitirem que o “respeito institucional” – seja lá isso o que for – levasse a sua avante.

 

De qualquer das formas, a reunião terminou pouco tempo depois. Mas antes, o putativo “salvador da pátria”, desculpou-se pelo sucedido e comentou

 

“A grande verdade é que, apesar de tudo, se eu não desse o corpo às balas, mais ninguém o faria. E isso seria o princípio do caos na instituição”.

 

O assunto que suscitou o desentendimento foi remetido para uma reunião posterior. Era o mínimo, pensei.

 

Voltei para casa a remoer aquela infeliz ocorrência.

 

Afinal o que desencadeia este tipo de comportamento? Porventura terá sido sempre assim ao longo dos tempos, mas aludo a “este tempo” dado ser esta a época na qual eu vivo e onde noto haver realmente uma predisposição para a relativização da verdade (entendida enquanto correspondência ideia e facto) ou até para a sua negação total, em prol de determinados valores, alguns pouco “humanos”.

 

Tempos (mundo? humanidade?)  onde a desconfiança, a descrença, o cepticismo, quanto a tudo e quanto a todos, marcam muitos pontos. Onde existe a tendência para cada um se considerar melhor que os demais, o que fortalece a propensão para a falta de empatia, para a agressividade, também no trato. Não obstante o filtro da cultura conferir formas sui generis à conduta agressiva entre os homens. Afinal, a capacidade de luta leva à sobrevivência e sobreviver (em todos os sentidos possíveis) é imperativo. Será que é essa a explicação?

 

Max Weber falou do processo de “desencanto do mundo”. Referia-se, no que concerne à abordagem ao pensamento humano e à sua realidade, à prevalência da razão instrumental em detrimento das crenças e dos costumes. Ele acreditava que, no mundo moderno, grande parte da vida social foi reduzida à lógica racional e, por conseguinte, conduziu ao “desencanto do mundo”.  Será que este e outros tantos relatos de incomplacência e de inflexibilidade, a este ou a outros níveis, que ocorrem todos os dias e em todas as partes do mundo, são um retrato e o reflexo desse dito “desencanto”? Ou apenas manifestações de uma lógica racional? Sem esquecer, nesta equação, o carácter e a personalidade da pessoa (s) protagonista (s) da acção.

 

O facto de um dos “atacantes” ter aludido à figura de “salvador da pátria” também ocupava o meu pensamento. A idealização da existência ou da chegada de um salvador instalou-se em Portugal com o Sebastianismo e foi depois reavivada quando Salazar ocupou a pasta das Finanças e equilibrou as contas públicas, valendo-lhe o epíteto de “salvador da pátria”. Porém, esta ideia foge totalmente à racionalidade e contraria todo e qualquer bom senso. Não obstante, agrada e colhe adeptos.

 

Se nesta sua leitura decidiu chegar até aqui, qual lhe parece ser então o motivo que sustenta este aparente paradoxo, prezado leitor?  Arriscando repetir-me, atrevia-me a dizer que o busílis talvez se encontre no paradoxo em si mesmo: por um lado, o facto de as pessoas sentirem necessidade, por via do instinto, de acreditar numa verdade da mentira, ou seja, em algo que é sabido que não existe, mas que se supõe real; por outro lado, e em particular no que diz respeito àqueles mais ambiciosos e mais arrojados, conscientes de que é a mentira que desperta e que conduz o mundo, perceberem que para conseguirem o sucesso terão de saber mentir, compulsivamente, até a eles próprios, compenetrando-se da verdade da mentira que criaram.  Megalómanos, mostram-se com qualidades que estão muito acima daquelas que realmente têm; procuram estar sempre em posições de destaque, atraindo a atenção para o que fazem e para o que dizem; estão habituados a fingir poses de humildade e modéstia, quando lhes é conveniente, nomeadamente como meio para ganhar a confiança alheia; têm sempre uma resposta na ponta da língua, o que aparenta uma capacidade analítica e inteligência superior; o contraditório irrita-os e, em função disso, resolvem rejeitá-lo: quem confronta um assumido “salvador da pátria”, não estando com ele, está contra ele; por último, estes seres iluminados costumam funcionar em grupos dado isso lhes permitir conferir um status de especialidade a cada um dos membros, hierarquicamente posicionados,  em obediência a um líder maior.

 

Todos legitimados tão somente – diria – pelo sinal de Deus.

 

Haverá excepções? Quero acreditar que sim, que genuinamente ainda podem/poderão existir. A esperança é a última a morrer, certo? No dia 19 de Março último faleceu o comendador Rui Nabeiro, considerado por todos como um homem bom. Também eu fui tocada pela sua nobreza e pela sua generosidade. Serve esta referência como uma singela homenagem que lhe quero prestar, se bem que creio que a maior homenagem que, individualmente, lhe pode ser feita é seguir o seu exemplo. De vida e de atitude. O que não me parece tarefa fácil. Por várias razões. Destaco, no seguimento do lastimoso episódio que serviu de mote a esta crónica, o excesso e/ou a carência de tolerância que marca, presentemente, as relações humanas e sociais, num mundo onde abunda a informação de fácil acesso e, por sinal, o desinteresse intelectual. Um mundo onde “a ditadura da ignorância glorifica a estupidez”.

 

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