Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: Humanimalidades

12 de março 2023 - 14:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Texto Ana Paula Figueira

 

Albert era um gato fora do comum. Intensamente individualista. Optou por viver numa colónia com mais quatro gatos, sendo que cada um deles garantia a respectiva sobrevivência, de forma independente. Todavia, às vezes escolhiam conviver uns com os outros e, nessas ocasiões, a organização e a hierarquia do grupo sobressaiam.

 

Apesar de ser muito ambicioso, Albert não era o líder supremo. Não era ainda, mas já era o subordinado directo do líder da altura. Aparentemente empático e colaborativo, quando existiam situações de conflito, era quase sempre chamado ao conselho dos gatos.  Uma boa parte delas, conseguia-as resolver, evitando que o grupo se envolvesse em combates físicos. Ora, contar com um gato com estas características era visto, tanto pelo líder máximo como pelos outros gatos, como uma enorme mais-valia.

 

De pelagem crespa e baça, Albert era pequeno e de aparência frágil. Era um gato feio, sabia-o e não gostava. Compensava-o o facto de ser desenvolto em “botar faladura”. Intuitivamente e ao longo do tempo, desenvolveu uma argumentação brutalizada, que atacava e desqualificava tudo e mais alguma coisa no seu opositor, enquanto transmitia a impressão de que estava a argumentar de maneira válida. De um jeito ostensivo, desprezava a autoridade do oponente, assim como a validade dos seus argumentos. Sem se preocupar em refutar, inventava o que fosse preciso para forçar o ataque, desconhecendo quaisquer limites para a criatividade aliada à desonestidade. A bem da verdade, Albert era especialista na mentira e na trapaça, em não acrescentar nada, para além de explorar a ingenuidade dos outros gatos. Assim mesmo, ou talvez por isso, era considerado pelo grupo como um gato ousado, seguro e inteligente, qualidades de um verdadeiro líder. Porém, à medida que crescia a aprovação do grupo, que o via cada vez mais como o líder natural, crescia o seu desapontamento quanto ao seu aspecto físico.

 

Um dia, atraído pelo movimento da água num ribeiro, reparou no seu reflexo. Sem qualquer tipo de lisonja, a água devolvia-lhe a sua verdadeira imagem exterior, aquela que ele procurava encobrir com a persona tenaz, determinada e resoluta que criara. Mas agora, prestes a ocupar o lugar de poder a que aspirava, sentia que lhe faltava qualquer coisa… talvez uma certa graça e a devida elegância o tornassem mais sedutor.

 

Como as conseguir? Queria encontrar uma solução. Desejava mudar. Estava disposto a contactar um consultor ou uma consultora de imagem para gatos, até mesmo alguém especializado em cirurgia plástica também para gatos, se os houvesse. Mas, como desconhecia a existência de gatos com essas especialidades, lembrou-se de ir visitar a Feira Felina, um local público de exposição e venda de produtos e mercadorias de gatos, para gatos, que ocorria todos os sábados e onde se podia encontrar tudo de tudo.

 

Pôs-se a caminho. A dada altura, no meio da densa vegetação, deparou com uma linda pele de lince, castanho-avermelhada, coberta de pequenos pontos pretos. Ao mesmo tempo, densa e macia. Como é que ela teria surgido exactamente ali? Caçadores furtivos? Estava tão deslumbrado que não se preocupou em saber. Viu apenas naquela pele, tão imprevista quanto oportuna, a saída para o seu problema. Aproveitou para a colocar em cima do dorso. De imediato, percebeu que ficava mais quentinho. Certamente com melhor aparência, também. Notou-se até um pouco mais atrevido: sabia que, se motivado por uma boa causa, o lince não tem receio de nadar. E este era apenas um exemplo.

Começou a achar que esta sua recente aparência se coadunava muito mais e muito melhor com a ideia que tinha se si próprio, tornando-o mais … arrebatador. Com os bigodes relaxados e abertos para o lado, começou a ronronar suavemente.

 

Passados aqueles minutos de prazer, pensou que gostaria de se tornar a ver. De volta ao ribeiro, sentindo-se verdadeiramente “na pele” de um lince, ousou até avançar um pouco mais para dentro da água, correndo o risco de mergulhar. Quase parecia que se preparava para obter uma apetitosa refeição de peixe. Contudo, quando fixa a sua nova imagem reflectida, comprova que não tem as orelhas bicudas, com um tufo de pelos na ponta, tal como os linces. Continuava igualmente miúdo. Agitado, deixou cair a pele que tinha sobre o dorso e viu-a ser levada pela água. Voltou a olhar o seu reflexo e enxergou o mesmo feio indivíduo de sempre!

 

Estando tão habituado à fraude e ao logro conseguiu, por breves momentos, enganar-se a ele próprio! Mas rapidamente, consciente desse facto, assim como da frustração do desengano, achou que não devia pensar muito nela…

 

Decidiu sair da água. Naquele momento lembrou-se de uma frase que ouvira no cinema: “Ninguém esquece a verdade, só aprende a mentir melhor”.

 

Pois que assim seja!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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