Texto Ana Paula Figueira
Albert era um gato fora do comum. Intensamente individualista. Optou por viver numa colónia com mais quatro gatos, sendo que cada um deles garantia a respectiva sobrevivência, de forma independente. Todavia, às vezes escolhiam conviver uns com os outros e, nessas ocasiões, a organização e a hierarquia do grupo sobressaiam.
Apesar de ser muito ambicioso, Albert não era o líder supremo. Não era ainda, mas já era o subordinado directo do líder da altura. Aparentemente empático e colaborativo, quando existiam situações de conflito, era quase sempre chamado ao conselho dos gatos. Uma boa parte delas, conseguia-as resolver, evitando que o grupo se envolvesse em combates físicos. Ora, contar com um gato com estas características era visto, tanto pelo líder máximo como pelos outros gatos, como uma enorme mais-valia.
De pelagem crespa e baça, Albert era pequeno e de aparência frágil. Era um gato feio, sabia-o e não gostava. Compensava-o o facto de ser desenvolto em “botar faladura”. Intuitivamente e ao longo do tempo, desenvolveu uma argumentação brutalizada, que atacava e desqualificava tudo e mais alguma coisa no seu opositor, enquanto transmitia a impressão de que estava a argumentar de maneira válida. De um jeito ostensivo, desprezava a autoridade do oponente, assim como a validade dos seus argumentos. Sem se preocupar em refutar, inventava o que fosse preciso para forçar o ataque, desconhecendo quaisquer limites para a criatividade aliada à desonestidade. A bem da verdade, Albert era especialista na mentira e na trapaça, em não acrescentar nada, para além de explorar a ingenuidade dos outros gatos. Assim mesmo, ou talvez por isso, era considerado pelo grupo como um gato ousado, seguro e inteligente, qualidades de um verdadeiro líder. Porém, à medida que crescia a aprovação do grupo, que o via cada vez mais como o líder natural, crescia o seu desapontamento quanto ao seu aspecto físico.
Um dia, atraído pelo movimento da água num ribeiro, reparou no seu reflexo. Sem qualquer tipo de lisonja, a água devolvia-lhe a sua verdadeira imagem exterior, aquela que ele procurava encobrir com a persona tenaz, determinada e resoluta que criara. Mas agora, prestes a ocupar o lugar de poder a que aspirava, sentia que lhe faltava qualquer coisa… talvez uma certa graça e a devida elegância o tornassem mais sedutor.
Como as conseguir? Queria encontrar uma solução. Desejava mudar. Estava disposto a contactar um consultor ou uma consultora de imagem para gatos, até mesmo alguém especializado em cirurgia plástica também para gatos, se os houvesse. Mas, como desconhecia a existência de gatos com essas especialidades, lembrou-se de ir visitar a Feira Felina, um local público de exposição e venda de produtos e mercadorias de gatos, para gatos, que ocorria todos os sábados e onde se podia encontrar tudo de tudo.
Pôs-se a caminho. A dada altura, no meio da densa vegetação, deparou com uma linda pele de lince, castanho-avermelhada, coberta de pequenos pontos pretos. Ao mesmo tempo, densa e macia. Como é que ela teria surgido exactamente ali? Caçadores furtivos? Estava tão deslumbrado que não se preocupou em saber. Viu apenas naquela pele, tão imprevista quanto oportuna, a saída para o seu problema. Aproveitou para a colocar em cima do dorso. De imediato, percebeu que ficava mais quentinho. Certamente com melhor aparência, também. Notou-se até um pouco mais atrevido: sabia que, se motivado por uma boa causa, o lince não tem receio de nadar. E este era apenas um exemplo.
Começou a achar que esta sua recente aparência se coadunava muito mais e muito melhor com a ideia que tinha se si próprio, tornando-o mais … arrebatador. Com os bigodes relaxados e abertos para o lado, começou a ronronar suavemente.
Passados aqueles minutos de prazer, pensou que gostaria de se tornar a ver. De volta ao ribeiro, sentindo-se verdadeiramente “na pele” de um lince, ousou até avançar um pouco mais para dentro da água, correndo o risco de mergulhar. Quase parecia que se preparava para obter uma apetitosa refeição de peixe. Contudo, quando fixa a sua nova imagem reflectida, comprova que não tem as orelhas bicudas, com um tufo de pelos na ponta, tal como os linces. Continuava igualmente miúdo. Agitado, deixou cair a pele que tinha sobre o dorso e viu-a ser levada pela água. Voltou a olhar o seu reflexo e enxergou o mesmo feio indivíduo de sempre!
Estando tão habituado à fraude e ao logro conseguiu, por breves momentos, enganar-se a ele próprio! Mas rapidamente, consciente desse facto, assim como da frustração do desengano, achou que não devia pensar muito nela…
Decidiu sair da água. Naquele momento lembrou-se de uma frase que ouvira no cinema: “Ninguém esquece a verdade, só aprende a mentir melhor”.
Pois que assim seja!
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia