Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: Os Sons de Baco

05 de fevereiro 2023 - 16:00
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“O vinho e a música sempre foram para mim um autêntico saca-rolhas” (Anton Tchékhov)

Caros leitores, no dia em que escrevo a minha crónica, 27 de janeiro, celebra-se o dia de nascimento do maior génio da história da música, Wolfgang Amadeus Mozart. E eis que sou confrontada com a oportunidade única de unir duas paixões, vinho e música.

 

Sentada confortavelmente na cadeira do meu terraço, no centro histórico de Évora, a admirar os últimos resquícios do dia, algo de maravilhoso acontece: o céu rasga-se do lado poente, e flechas de ouro parecem sair pelos rasgões das nuvens, enquanto a cortina do dia se fecha numa paleta de tons rosados. O espectáculo verpertino fez-se acompanhar da generosidade corpulenta de um José de Sousa Reserva 2018, ao som do virtuoso concerto n.º 21 de Mozart para piano e orquestra, uma sonoridade sublime, que parecia ecoar do gira-discos das cálidas planícies, aquecia o espaço, tomado pelos ares glaciáticos, impiedosos que marcam a dura invernia do Alentejo. Achei adequada a conjugação destes ambientes e uma oportunidade única para mergulhar num inspirador ritual dionisíaco musical. Uma sensação de prazer infinito tomou conta das minhas horas de ócio, à medida que se aproximava a noite. De repente dou conta da miraculosa imprevisibilidade do momento e o valor dado a esta experiência sensorial, que se situa algures no plano do sublime, é absolutamente indescritível. Talvez possa parecer exagerada esta descrição, porventura, amplificada pelo facto das vivências do quotidiano se situarem tão longe destes paraísos. A dureza do contexto, que adquire o consolo neste refúgio hedonista, onde os sentidos se exultam; porventura, graças à pouca distância que liga duas formas tão distintas de exultação dos sentidos. Apesar deste contraste, são as únicas formas de arte capazes de tocar fundo a alma humana.

 

A relação do vinho com a música leva ao encontro da pessoa consigo mesmo, ao fazer com que o espírito se eleve a outro plano, capaz de resgatar as utopias, e, sobretudo, nestes tempos distópicos em que vivemos. Almas gémeas, imagens refletidas. Quem ama o vinho, ama certamente a música, e vice-versa. Como num espelho, onde cada um vê o reflexo das suas próprias emoções. Somos imediatamente convidados a mergulhar num universo tão rico e variado de aromas da fruta, ao qual se acrescentam os cromatismos melódicos das notas delicadas de flores e especiaria…, e, de repente, deparamo-nos com uma nota contrastante de fumo e caramelo tostado no momento exato em que o som do piano exala o lirismo melódico da composição, seguido de um acabamento bastante longo. Uma combinação mais do que perfeita, um cool instigante que aguça tanto o paladar quanto os ouvidos, proporcionando momentos de puro deleite e fazendo ressoar a musicalidade do vinho. Socorrendo-me das sábias palavras de Jonh Gershwin: “A primavera é uma estação dos invernos, e a expressão da poesia do Universo”. E para celebrar esta máxima, convido-vos a tomar nos vossos cálices a poesia sinfónica de Dionísio.

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