Diário do Alentejo

Crónica: "O Grande Gatsby"

05 de fevereiro 2023 - 11:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Publicado pela primeira vez em 1925, O Grande Gatsby é, seguramente, um dos maiores romances da literatura mundial. A acção tem lugar cinco anos antes, em 1920, e é narrada por Nick Carraway, que nem por isso vê atribuída a si a honra de protagonizar a obra. A personagem principal, que empresta o nome ao título, é Jay Gatsby, um vizinho de Nick, um homem que organizou a sua vida com um único propósito: reconciliar-se com o grande amor da sua vida, Daisy Buchanan. Por infortúnio, Daisy é casada com Tom, o antagonista de Jay.

 

Desde o “barrete doirado” com que se inicia a epígrafe do romance, até à “luz verde” do penúltimo parágrafo, perpassa pela obra uma iluminação dourada e esverdeada – a tonalidade do dinheiro, que alumia o “Monopólio” da vida real. No dinheiro como na vida, a discriminação é uma inevitabilidade, inclusivamente dentro do mesmo estrato social. Há, no romance, dos tipos de fortuna: a fortuna herdada de Tom e Daisy e a fortuna recém adquirida de Gatsby. Naturalmente, a primeira não vê a segunda com bons olhos, nem elas granjeiam as mesmas lisonjas. Se uma comporta um certo prestígio social e político, que serve de escudo para a impunidade, a outra é incapaz de proteger os seus detentores de quaisquer autos-de-fé.

 

Nick é primo de Daisy, atributo que lhe permite circular com familiaridade pelos meandros privilegiados da alta sociedade americana, embora ele próprio esteja resignado a uma vida mais modesta, dolorosamente contrastante com a dos Buchanan. Ao longo do Verão, Nick e Jay tornam-se bons amigos, o que resulta numa vantagem para o leitor. Sem essa amizade, não saberíamos que Gatsby provinha de uma família de agricultores, que o seu apelido original era Gatz e que se apaixonara por Daisy quando cumpria serviço militar; quem quer que tenha, alguma vez, colado um poster de um(a) artista na parede do seu quarto de adolescente estará com certeza familiarizado com os constrangimentos de um amor impossível. Do mesmo modo, era inadmissível que Jay ficasse com Daisy, pelo facto de ambos pertencerem a mundos distintos. Após a inevitável ruptura da relação, Jay torna-se num corrector de bolsa, com a preciosa ajuda de um mentor, e empenha-se em fazer fortuna o mais rapidamente possível, com o muito louvável propósito de reconquistar Daisy. Gatsby, pois então, é um sonhador idealista, que acredita que o passado pode ser inteiramente recuperado, como se tivesse permanecido um pouco mais atrás, aguardando pacientemente que alguém voltasse para o reclamar. Uma vez que Tom é um adúltero irrecuperável, que dedica as suas noites a perseguir amantes, o objectivo de Jay não parece absurdamente inalcançável.

 

Contudo, importa refrear os ânimos. O Grande Gatsby é um romance de triunfo e tragédia. Nele, Fitzgerald capta primorosamente, numa prosa densa em imagética, o frenesim político e social dos EUA, que decorreu no intervalo dourado entre o período do pós-guerra e o descalabro da bolsa de Nova Iorque, em  1929. Uma das características que elevam este romance a obra de arte é a capacidade extraordinária de Fitzgerald para analisar a sua própria época. O retrato que faz das classes média e alta da sociedade americana não é apenas caracterizado pela agitação social e pela incerteza, mas é também pleno de críticas veladas, em particular, a respeito da exploração económica das classes inferiores e dos esforços da classe alta para evitar contaminações e impedir ascensões sociais, o que esbarra em força de encontro ao sonho americano, que, como sabemos, se distingue precisamente por prometer oportunidades de elevação social.

 

Nick Carraway principia a narrativa com um conselho que ouvira do seu pai: nunca julguemos os outros. Embora virtuoso, à partida, esta parece uma daquelas recomendações que não se pretende seguir à letra (por exemplo, talvez não seja de todo impraticável julgar um criminoso ou condenar um acto de imoralidade!). Na circunstância, parece-nos mais uma estratégia para evitar que se promovam acusações contra a classe alta, que é precisamente aquilo que o leitor deve fazer. Todas estas reprovações críticas conferem à narrativa uma sensação de urgência. No entanto, esta não é uma urgência que impele as personagens para diante, para mais rapidamente chegar ao futuro, como uma ambulância que ziguezagueia por entre o trânsito para vencer a morte. Esta é uma urgência pelo passado. O sonho americano de Jay Gatsby é recuperar os tempos idos do amor idílico e juvenil de Daisy. Encontrando nessa memória dourada o seu farol, Gatsby consome-se a tentar recuperar um passado que teima em não passar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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