Diário do Alentejo

Crónica de Ana Paula Figueira: "Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem”

09 de janeiro 2023 - 09:00
Ilustração | Pedro E. SantosIlustração | Pedro E. Santos

Liga-nos aquela cordialidade e aquela estima entre pessoas que não são próximas, nem pelo sangue nem pelo coração, mas que se conhecem há muitos anos. Cujas vidas, por razões de circunstância profissional, se cruzam de quando em vez, e são forçadas a um certo convívio.

 

Oriundo de uma família de parcos recursos, de um lugar de Vieira do Minho, contava que o seu pai havia sido o único sobrevivente de 13 irmãos. Crescera a pastorear. O cinzento granítico da serra, intercalado por um exuberante verde, onde os lagos azuis também marcam presença, terá ajudado a moldar um temperamento resiliente, muito concentrado em encontrar soluções para que os seus filhos tivessem outras - e melhores - vidas. Que fossem “alguém”.

 

Foi assim que ele e a sua irmã, logo que terminada a escola na aldeia, foram viver com os seus padrinhos, no Porto, onde fizeram a restante formação.

 

Conheci-o já casado e com um filho. Haviam escolhido fixar residência no Alentejo. Mantivemos contacto, mais ou menos regular, por quase duas dezenas de anos.

 

Nesse período, percebi a sua intensa vontade de querer ser “alguém”, a sua busca frenética por reconhecimento. Idealizava a admiração e o poder. O sucesso financeiro, o status social e o sucesso profissional eram a sua prioridade. Dizia-o, e trabalhava para isso, de uma forma tão “gelada”, que chegava a incomodar. Naquela altura já era tanto, mas permanecia descontente. A sua insatisfação era crónica. Chegava a ser cansativo vê-lo sempre a competir, em guerra interna consigo mesmo, e com os outros, para ser o melhor.

 

Ainda assim, e paradoxalmente, parecia-me feliz. Achava eu que essa presumível felicidade residia no facto de a medida do seu desespero ser igual à medida da esperança que lhe alimentava o sonho de vir a fazer parte de uma elite dirigente, com poder, a expressão máxima do que para ele representava ser “alguém”.

 

Durante meses deixei de o ver. Num certo dia, cruzo-me com a mulher que me disse que ele se havia mudado para Lisboa para, por fim, assumir um cargo na administração de uma empresa, do universo do sector empresarial do estado. Em breve, seria a vez da família rumar à capital.

Passou uma mão cheia de anos. Sem que tivesse notícias daquelas pessoas. A sua lembrança terá vindo ter comigo duas ou três vezes, por qualquer coincidência. Perguntava-me

 

«O que será feito de A.?»

 

Desejava-lhe sucesso. Reconhecia a sua determinação, a sua tenacidade e até alguma teimosia, características importantes para quem quer palco e anseia participar na condução de algo maior. Maior do que a sua vida, porque envolverá outras vidas, de muitas pessoas. Mas a sua ambição desmedida, a sua falta de humildade e de desapego, jogavam a desfavor. Todavia, talvez o tempo lhe tivesse mostrado como conseguir o “seu” equilíbrio.

 

Na véspera deste Natal, vejo-o por cá, numa pastelaria, sozinho numa mesa, a tomar um café. Não o reconheci de imediato. Estava bastante envelhecido. Decidi cumprimentá-lo. Ele convidou-me para sentar, tomar também um café e fazer-lhe companhia, o que aceitei. Trocamos cortesias e banalidades. A dada altura, perguntei-lhe pela mulher e pelo filho. Respondeu-me

 

«A minha vida mudou tanto… Estou na casa dos sessenta anos, divorciado, de volta ao ensino, e com o meu filho a viver nos Estados Unidos. Raramente vem a Portugal. Há quase dois anos que não o vejo…»

 

Acendeu um cigarro e prosseguiu

 

«Quanto ao meu desiderato… falhei redondamente: na empresa, entre outras confusões, remeti para segundo plano a gestão das pessoas. Não tive uma visão transformadora da relação das pessoas com o trabalho. Não consegui alinhar os anseios dos profissionais aos objectivos práticos da organização. Parti do princípio que isso passaria pelas promoções. Com ou sem promoções, acabei por ficar sozinho e por ser “convidado” a sair. O casamento ruiu, entretanto: deixámos de crescer juntos.»

 

Perguntei

 

«E agora?»

 

«Acredito que mudei e quero aproveitar esta oportunidade para recomeçar. Curiosamente, estamos no início de um novo ano. Talvez seja um bom augúrio.»

 

Já havia terminado o meu café. Era tempo de nos despedirmos. Levantei-me, estendi-lhe a mão e citei H. Ford

 

«O fracasso é a oportunidade de começar de novo com mais inteligência e redobrada vontade».

 

Desejei-lhe paz também. Aquela que apenas ele poderá proporcionar a si próprio.

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