Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: A obsolescência do Homem

02 de janeiro 2023 - 09:00
Foto | DRFoto | DR

Participar da quadra natalícia é uma excelente experiência para (re)pensar o modo como nos vemos no mundo. Porque o Natal, é o momento por excelência de regresso ao lar, à família, onde se revivem as memórias mais remotas, povoadas de serões à lareira com a mesa cheia de primos e tios, onde o verbo é o “partilhar” das alegrias, dos gestos de amor, das histórias mais autênticas. O local que nos permite libertar dos gestos rotineiros, dos automatismos impostos por toda a parafernália de devices, em prol de uma convivência mais autêntica com o real.

 

Na quadra natalícia de outros tempos, não muito longínquos, era frequente recebermos a visita dos amigos, e rirmos vezes sem conta, do que nos amedrontava; riamos das frustrações, das angústias, dos medos, da raiva; o riso possibilitava o renascimento, fez-nos novos vezes sem conta, e sem sabermos que era disso que precisávamos tanto. A conversa, entre verdadeiros amigos nunca se esgota, tudo é assunto, e a gargalhada nunca é inconveniente. A pergunta, é sempre encarada como inofensiva, nunca é confrangedora. Entre amigos, há sempre vontade de continuar. É realmente isto que distingue a amizade do amor. Poderá ser esclarecedor recordar que o termo latino para amizade Amicitia, resulta da raiz am, que no latim designa «mãe»(amma). A etimologia da amizade destina para uma experiência, que longe de ser meramente casual, configura a verdadeira existência. A amizade, contrariamente ao amor, faz-nos chegar ao fundo de nós próprios, dialoga com o nosso interior, toca nas nossas máculas, e transmite-nos confiança para cumprimos a máxima de Nietzsche: “tornar-nos no que somos”.

 

E hoje em dia, toda esta experiência, toda esta viagem interior é boicotada pelo surto tecnológico, pelos tais “monstros, como os telemóveis e as redes sociais” (Pacheco Pereira). Quando nos dizem que a tecnologia é amiga da humanidade, não sabem o que dizem, ela é ambiciosa e monopoliza, afasta-nos da experiência do real, da amizade verdadeira. Afasta os que estão mais perto de nós, e aproxima-nos daqueles que estão distantes. Basta ver como as pessoas estão umas com as outras nos cafés. As pessoas, mesmo presencialmente, interagem umas com as outras através do ecrã. O meio é a mensagem, e perversão que isto introduz nas relações é total. A experiência humana passou a ser mediatizada através da selfie e do post, dependente do numero de likes.

 

A quadra natalacia, configura uma verdadeira oportunidade de desvirtualização da vida, servindo de moldura perfeita às palavras de Cocteau: Desgraçado do que não reservou um retalho onde viver, em si uma parcela de si, e se entregou aos acasos que aproveitam a mais pequena nesga para enfiar lá as suas silvas. Porque elas, se nada houver a governar, crescem vindas de fora e de dentro”. Que ao menos, nesta pequena nesga, sejamos capazes de substituir o ecrã pela observação direta, para encararmos o ano de 2023 com outros olhos.

Comentários