Diário do Alentejo

Crónica: "Ensaio Sobre a Cegueira"

14 de dezembro 2022 - 11:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Argumentava Harold Bloom, um dos mais conceituados críticos literários da história da literatura ocidental, que um autor poderia eventualmente produzir uma obra-prima em toda a sua vida. Saramago produziu oito.

 

De modo que, e ainda a propósito do centenário do nascimento do prémio Nobel português, poderia trazer à luz desta edição qualquer um dos oito romances que Harold Bloom enfatizava e que o fizeram declarar, em 2008, que Saramago era o melhor romancista vivo. Dada a natureza frágil da vida, esta seria sempre uma declaração que envelheceria mal.

 

No entanto, porque de natureza frágil se fala, aceito o convite de Bloom e trago como sugestão de leitura Ensaio Sobre a Cegueira, provavelmente o romance mais conhecido de Saramago (em parte, devido ao filme de Fernando Meirelles, que junta alguns dos actores mais célebres da actualidade, como Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael Garcia Bernal, Danny Glover, Sandra Oh, entre outros.

A título de curiosidade, e ao contrário do que Hollywood nos acostumou, o filme mantém uma invulgar fidelidade à narração romanesca. Após a estreia, ainda com os créditos a correr no ecrã, Saramago, de lágrimas nos olhos, confessou ao realizador que estava muito feliz, uma vez que o filme representava com precisão o que tinha escrito no livro.

 

Mais tarde, haveríamos de saber que a única personagem que Saramago considerara divergente da versão do livro era o cão das lágrimas, que no romance se pretendia um rafeiro e, para cinema, foi seleccionado pelo casting um cão de raça. Enfim, no mundo cinematográfico sempre haverá aqueles que obtêm papéis graças a contactos privilegiados). Ensaio Sobre a Cegueira é uma alegoria antitotalitarista.

 

Se me considerasse menos sensato, arriscaria afirmar que nenhum outro romance contemporâneo expõe com tanta clareza a fragilidade humana e a natureza egocêntrica da realidade social em que vivemos. Embora partilhe com A Peste, de Albert Camus, o declínio e a inevitabilidade da degradação humana, em face de uma pandemia imprevista que subitamente varre a sociedade, o facto é que Ensaio Sobre a Cegueira supera a obra do escritor franco-argelino pelas camadas filosóficas que oferece a respeito da condição civilizacional.

Numa leitura mais objectiva, a história conta-se brevemente: um carro, parado num sinal luminoso da cidade, como o vermelho vivo exige, permanece no lugar quando o disco verde se ilumina. O condutor ficara cego. O homem, doravante denominado “o primeiro cego”, desorienta-se, aflige-se, tropeça, desespera e, pela mão de um bom samaritano que lhe haveria de roubar o carro, chega enfim a casa.

 

Como a falta de visão não equivale a uma falta de clarividência, toma então a única decisão que qualquer outro tomaria: consulta um oftalmologista. O médico examina-o, mas não lhe encontrando quaisquer problemas no globo ocular, diagnostica uma cegueira inexplicável.

 

Depressa a cegueira – que para mais é branca, retire-se daqui as devidas ilações – espalha-se por todos quantos este primeiro homem contactou: a recepcionista e os pacientes do consultório de oftalmologia, assim como o próprio médico. De seguida, estende-se como um lençol branco à sociedade.

 

As entidades governamentais, num desespero para controlar o surto pandémico, decretam que se fechem os contaminados num velho manicómio abandonado. O único ponto de conforto, nesta realidade apocalíptica é a mulher do médico, que não chega a perder a visão. Contudo, finge-se também acometida pelo “mal branco”, para se juntar ao grupo, em franco crescimento.

 

O primeiro cego, o médico, a mulher do médico, a rapariga dos óculos escuros, o rapaz estrábico e velho de venda preta são protagonistas sem nome próprio de um romance que, para além da camada superficial, comporta leituras outras, morais, éticas e filosóficas, que convém atentar: a violência, a falta de empatia, o egoísmo, os preconceitos, a insensibilidade, o distanciamento dos indivíduos e para com a sociedade onde vivem ou os limites a que o ser humano pode chegar quando não observa mais do que a superfície da realidade.

 

Estes são temas que constrangem o leitor e deixam-no cativo de uma torrente de emoções, que vão desde o riso, à angústia e ao desespero.

Com Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago põe em movimento um conjunto de representações falsas a que os seres humanos dão demasiada importância; artificialismos que acabam por ocupar o espaço do vivido, dissimulando e sobrepondo-se à verdadeira natureza do real.

 

Esta é a cegueira que atravessa as sociedades modernas e que conduz à degradação do ser humano. A cegueira branca é uma alegoria ao horror vivenciado, mas não observado. Diz-se cegueira, como se se tratasse de um alerta, paralembrar a essência do indivíduo não é observar o mundo com o globo ocular, mas com o olhar interior.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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