Diário do Alentejo

Crónica de Laura Simão: "Não há ladrões de memórias"

13 de dezembro 2022 - 12:00
Ilustração | Susa Monteiro/ ArquivoIlustração | Susa Monteiro/ Arquivo

Os sons e os cheiros da calçadaO dono das pedras

 

Texto Laura Simão

 

A minha rua no Alentejo - Rua do Pocinho/Rua do Poceirão (dois poços de água salobra), era calcetada. A rua onde vivia com as minhas tias, Rua do Pocinho, a rua da minha mãe, Rua do Poceirão. Todas as ruas de Ervidel eram calcetadas com pedras de uma pedreira que pertencera ao meu avô, perto da Baioa.

 

Os carros das mulas ao passarem faziam barulho, mas o cheiro dos dejectos abafavam qualquer outro sentir. Os donos das muares gritavam aos animais - calma, calma, sossegada e batiam com as rédeas. Andar de carroça naquelas ruas era como apanhar uma tempestade em mar alto.

 

As ruas calcetadas com pedras reboladas, encalhadas, imperfeitas, onde eu corria e me partia. Os meus joelhos andavam (como se os joelhos tivessem vontade própria?) sempre esfolados, Diziam-me aprendeste a correr antes de andar? Eu, uma plumita leve, voava.

 

O cheiro da calçada era vida, tantas vezes bati com o nariz no chão, tinha-lo entranhado.

 

Uma vez, apenas umazinha caí da janela, era uma cabrita endiabrada, a minha preocupação eram os óculos, fiquei toda esfolada com os ditos na mão, bati com a testa na calçada. Tive direito a uma moeda no galo com um lenço a atar, mas no dia seguinte o galo teimou em cantar. No final da tarde sentava-me no poial, no verão pela fresquinha. E a vida ia passando naquela rua.

 

No Carnaval mascararam-me, com 5 anitos, vestida com umas calças de homem, um casaco, um chapéu e um cajado, sentada numa cadeirinha à porta, sentia-me o homem da casa, até cheirava a creme da barba. Guardo o chapéu e o cajado, provas da minha triste figurinha naquele Carnaval.

 

Do poial ao domingo via a procissão, nós os agnósticos, não engalanávamos as janelas, mas era sinal de respeito assomar para ver a Santa, diziam as minhas tias. Do poial ao domingo víamos, também, os noivos que passavam a pé, atiravam rebuçados e eu que não gostava de doces! As minhas tias, sábias mulheres, diziam baixinho Quanto mais feia for a rapariga, mais bonita a noiva.

 

Na Páscoa, numa manifestação que penso ser pagã, grupos de rapazes passavam a tocar chocalhos e atirávamos amêndoas, não gosto de amêndoas. Contaram-me, durante a pneumónica a calçada era coberta de erva para não incomodar os enfermos, quando as carroças passavam.

 

O peixeiro com o seu ajudante, transportava um carrinho de madeira, com uma balança de braços, invejada por mim, pelas pedras escorregadias, com safio, sardinhas, cavalas, carapaus. Era habitual o meu a avô Rita encomendar um safio inteiro para a família.

 

Na Rua do Pocinho tínhamos mercearia, vendas, talho, um forno bem perto, sapateiro e um lugar onde se vendia legumes cultivados na Horta de Baixo. Adorava os cheiros da salsa, dos coentros, da hortelã, dos agriões, da abóbora, do bugango, das batatas, cheiravam a terra. Todos estes cheiros se entranhavam e só pensava num cozido de grão.

 

Muito perto da casa onde vivia, num beco havia um forno que não era comunitário, onde as minhas tias e a minha mãe coziam o pão, uma fornada por semana, os bolos da massa do pão com azeite, as bolas feitas com banha de porco e açúcar amarelo, os pães com chouriço, e aproveitavam ia para o forno um tabuleiro de sardinhas a nadarem em azeite. O cheiro deste forno, ainda hoje embala as minhas tardes de inverno, como um abraço de sabores, naqueles tempos nem os sentia, ficaram escondidos para um dia se mostrarem.

 

As botas cardadas que se ouviam antes de alguém bater com a mãozinha da porta, cardadas pelo sapateiro que colocava meias solas, capas nos sapatos e ilhoses nos cintos. O sapateiro cumpria uma função que desconhecia, amenizava o andar na calçada das ruas de Ervidel com o seu trabalho, e como eu gostava do cheiro da cola!

 

As pedras da calçada foram resgatadas de uma pedreira do meu avô Rita que foi vendida por não ser rentável.

 

Dizia o meu avô – Tenho tanta pouca sorte, se fizesse uma fábrica de chapéus, os moços nasciam sem cabeça.

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