Diário do Alentejo

Crónica: "Kafka à beira-mar"

28 de julho 2022 - 10:00
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Texto Rodrigo Ramos

 

Na sugestão literária anterior, trouxemos à folha deste jornal um romance de autoconhecimento, que os académicos, levados pela necessidade de tudo nomear, confortavelmente designam de bildungsroman, vocábulo alemão forjado unicamente com o propósito de etiquetar romances muito sedentos por colocar o protagonista, naturalmente jovem, em tais provações pessoais que acabam por moldar o seu entendimento de conceitos universais como o bem e o mal, o tempo, a realidade e a memória, a sociedade e o espaço que cada um ocupa nela.

 

Kafka à beira-mar envereda por essa prática romanesca, ao convidar os leitores a partilhar as adversidades do adolescente Kafka Tamura, fugido da sua casa, para escapar a uma relação conturbada com o pai. Na véspera da sua partida, o pai esconjurara-o com uma maldição edipiana: o filho haveria de assassinar o próprio pai e eventualmente envolver-se em relações sexuais com a sua mãe e irmã, duas mulheres de quem o desventurado Kafka não tem a menor recordação, uma vez que ambas haviam fugido daquele homem onze anos antes. Kafka à beira-mar é, bem entendido, um romance de crescimento, pontuado por momentos de realismo mágico e por descentramentos que o narrador desenvolve através de estranhas incursões pelo fantástico e pelo imaginário juvenil.

 

Como é próprio das viagens, há um destino à espera de Kafka, ainda que o desconhecesse quando decidira abandonar a casa do pai, em Tóquio. O fim do seu caminho termina numa biblioteca privada nos arredores de uma pequena vila à beira-mar, de nome Takamatsu, onde o adolescente de 15 anos encontra refúgio e consolo, tanto na invulgar inteligência de um jovem transgénero chamado Oshima, como em Miss Saeki, uma bibliotecária de cerca de quarenta anos que vive enclausurada numa crise existencialista, desde a morte do seu namorado. A estes dois, soma-se também Sakura, uma cabeleireira que, a par de Saeki, o jovem kafka idealiza serem a sua mãe e irmã há muito desaparecidas. Kafka permanece em Takamatsu e passa grande parte do seu tempo na biblioteca, a ler toda a variedade de romances, o que chama a atenção das autoridades, muito compenetradas na investigação de um assassinato.

 

Paralelamente, Murakami põe em movimento uma outra narrativa, desta feita de Nakata, um homem misterioso que viaja de igual modo para Takamatsu. Após um ataque à escola primária onde estudava, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, Nakata perdeu a capacidade de ler e de escrever, assim como de recordar qualquer evento do seu passado ou inclusivamente de criar novas memórias; em troca pela perda do seu intelecto, adquire, por raridade, a sinistra capacidade de comunicar com gatos. Nakata parece destinado a uma vida simples, sem grandes propósitos. Sobrevive de subsídios e, fazendo uso da sua capacidade para comunicar com gatos, oferece os seus serviços para encontrar animais de estimação perdidos. Numa dessas tarefas, Nakata encontra uma personagem terrível, Johnnie Walker, que acredita ser a reencarnação do mal e, ao ver-se surpreendentemente vencedor do confronto, convence-se de que a sua missão de vida é reparar o equilíbrio do universo. Romances há que exercem sobre os leitores uma força centrípeta, que os puxa para dentro do enredo. Murakami consegue fazer o oposto: com recurso a paisagens escapatórias e, por vezes, alucinantes, afasta o leitor da narrativa principal e deixa-o suspenso entre o sonho e a realidade, sem saber ao certo onde termina um e principia o outro.

 

À medida que a narrativa progride, as histórias de Kafka e de Nakata aproximam-se, até ao inevitável ponto de convergência que as torna apenas numa, a qual, por sua vez, culminará num fim intrigante e surrealista. Com Kafka à beira-mar, Murakami parece instigar o leitor a enfrentar as suas próprias tempestades, como meio único para se libertar das amarras que o prendem aos grilhões da felicidade e da infelicidade para então, por fim livre de ambos, alcançar o autoconhecimento. Afinal, como refere o narrador, a páginas tantas, “a felicidade é uma alegoria, a infelicidade é uma história”.

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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