Diário do Alentejo

Por este Alentejo que eu amo…

06 de abril 2024 - 12:00
Foto | Firmino PaixãoFoto | Firmino Paixão

O Alentejo é um mosaico de culturas, um painel de tradições, um quadro de diferentes colorações, de gente genuína, de gente sofrida, envelhecida, que olha no horizonte, interrogando para além do monte. As planícies, as serras, os rios, a brisa que vêm do mar salgado. O Alentejo que eu amo!

 

Texto e Fotos Firmino Paixão

 

A brancura das flores que salpicam a planície perde-se no horizonte daquela terra campaniça que dá nome à viola. O instrumento, o seu peculiar timbre, com o dedilhar das cordas, não se ouviu, nem era o momento para isso. Em tempos mais remotos, a “campaniça” era a “viola de Beja”, instrumento abandonado pela cultura local, ou pela falta dela, e foi, felizmente, acarinhado, preservado e projetado para os melhores palcos, pelas gentes do cante ao baldão, o cante de improviso, em despiques de intermináveis serões: “Às vezes me ponho eu/ na minha vida a pensar/ quem eu era, quem eu sou/ ao que eu havia de chegar”.

O primeiro dia de primavera ainda tinha poucas horas de existência quando a “Alentejana” partiu de Castro Verde, hoje terra mãe da viola campaniça, coração de uma invulgar biodiversidade. Não se ouviu a viola campaniça, não se cantou ao baldão, mas a cultura do “Campo Branco” está viva. Outrora, e dizemo-lo sem réstia de saudosismo, na Volta ao Alentejo dos tempos antigos, talvez se ouvisse um dedilhar de cordas, ou um despique de cante ao baldão. No Alentejo, há terras onde as coisas acontecem, noutras nem por isso, mas a “primavera no Campo Branco” ainda é o que sempre foi.

O povo de Castro Verde acarinhou a caravana da Volta ao Alentejo. Viu-a partir na direção da vizinha vila de Almodôvar, territórios de subsolo esventrado pelas indústrias, que, felizmente para as suas gentes, dinamizam a economia local e potenciam a oferta de mão de obra. Aliás, o pelotão saiu de Almodôvar, terra de ciclistas com forte tradição na modalidade, contornando a rotunda onde uma imponente estátua homenageia o mineiro, essa nobre e arriscada profissão, nem sempre valorizada. Porém, o pelotão não terá visto, nem as gentes da caravana se terão apercebido, que na vila almodovarense se homenageiam as profissões, di-lo outro imponente monumento de tributo ao sapateiro, outro ainda de fraternidade para com o bombeiro, esses abnegados soldados de paz.

 

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O pelotão lá foi, um tanto alheio à riqueza da monumentalidade local, não tanto da paisagística, porque esse é o seu palco, o terreno das suas pedaladas, as curvas, contra curvas, desenhadas de acordo com o que a orografia outrora permitia. Neste caso, as descidas para o vale do Guadiana. A “Vila Museu” estava no roteiro da etapa e os primeiros ciclistas pedalaram, ao início da tarde, sobre a ponte que atravessa o “grande rio do Sul”. Sem tempo para aprenderem a moda “Pelo canto da tarde nas tardes do canto o encanto do sol a abalar/ Um Deus ainda espreita pela curva do rio que eu bem sei/ Mértola ai, Mértola ai” (Sebastião Antunes). Outro povoado mineiro mais à frente. A Mina de São Domingos, com as silhuetas dos corredores a refletirem-se nas águas calmas da Tapada Grande. O sol ia aquecendo e queimando a tez quando a corrida dobrou a Cruz da Cigana para Vila Nova de São Bento “Se vieres à minha aldeia/ não venhas de cabeça ao léu/ quando o sol mais almareia/ podes pôr o meu chapéu” (João Monge). Não havia tempo, lá na frente estavam corredores escapados e a urgência era caçá-los, antes de a corrida deixar a “margem esquerda”, preferencialmente em Serpa, na longa avenida Capitães de Abril, propícia a sprintes revolucionários. “Oh Baleizão, Baleizão”, a terra baleizoeira foi visitada, pela primeira vez na história da corrida, tudo para lembrar estórias do tempo do Estado Novo. Evocar Catarina Eufémia no 70.º aniversário da sua morte e no 50.º aniversário da Revolução dos Cravos. O pelotão chegou junto das ameias da cidade de Beja, ali bem perto do busto que homenageia o poeta bejense Mário Beirão. Legou--nos o poema de uma das poucas modas alentejanas com a marca da cidade: “Castelo de Beja/ no plaino sem fim/ já morto que eu seja/ lembra-te de mim”. Sim, os bejenses têm memória, o seu nome está perpetuado numa escola local. A Vidigueira também quis abraçar a caravana da Volta ao Alentejo. Fê-lo na magnífica praça Vasco da Gama, em redor da imponente estátua do navegador siniense, que era Conde de Vidigueira e que deu, também, o seu nome à antiga escola primária ali existente, hoje um magnífico museu de artes e ofícios. Contam-se estórias, certificadas através da história, que o povo vidigueirense só libertou os restos mortais do navegador mediante negociação com o governo de então para a construção desse tão necessário e fundamental equipamento escolar. O rumo, entre vinhas, pomares, olivais e serranias, levou a corrida para a “Vila Morena”, com destino final junto ao memorial ao 25 de Abril. No dia seguinte, Mourão e a magnífica albufeira de Alqueva, circundada de praias fluviais que atenuam a canícula, viram partir a corrida rumo à vizinha cidade de Reguengos de Monsaraz, que foi “Capital Europeia do Vinho” em 2015, tocando, claro, pelo exterior, a vila medieval de Monsaraz e visitando o “triângulo dos mármores”, Vila Viçosa, Borba e Estremoz, pilar da economia regional. Um horizonte de paisagens deslumbrantes. A praça da Liberdade, no final da longa avenida 1.º de Maio, símbolos associados à Revolução do Cravos, tema desta “Alentejana”, tinha a meta final bem perto do Museu Tauromáquico José Mestre Batista, o cavaleiro que era natural da freguesia de São Marcos do Campo. A “festa brava” não saiu logo de cena, porque Monforte é terra de aficionados e a despedida da caravana foi bem perto da praça de Touros João Moura. Os ares da serra de São Mamede, poucos dias depois de ter nevado em Marvão, são retemperadores. A viagem ia longa, mas Castelo de Vide é especial, as ruas estreitas, ladeadas pelas antigas judiarias, inclinam-se para o castelo, onde o município instalou a Casa da Cidadania Salgueiro Maia, capitão de Abril, um filho da terra a quem doou todo o seu espólio, mormente, a notável nota que deixou em testamento: “Não se preocupem com o local onde sepultar o meu corpo. Preocupem-se é com aqueles que querem sepultar o que ajudei a construir”. Que premonição…

 

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