Jéssica Silva, ponta de lança do Benfica e da seleção nacional, nasceu, neste mesmo mês de dezembro, há 29 anos, em Vila Nova de Milfontes. Foi campeã europeia pelo Olympique de Lyon (2020). Tem 129 internacionalizações, as mais importantes das quais no campeonato mundial que decorreu em novembro último na Austrália e na Nova Zelândia.
Texto e Foto | Firmino Paixão
Veloz e ambiciosa dentro do campo. Solidária, fraterna e pragmática fora das quatro linhas, a alentejana Jéssica Silva é uma lutadora. Uma mulher de conquistas. Tudo começou há 29 anos na foz do rio Mira, em Vila Nova de Milfontes, onde nasceu e onde foi construindo, passo a passo, os seus sonhos. “Foi em Milfontes que me apercebi, e a minha família também se apercebeu, que o que eu gostava mesmo de fazer era chutar as laranjas, ainda verdes, que arrancava da laranjeira no quintal da minha avó, ou então fazia bolas de papel, porque não tinha possibilidades para ter uma bola de futebol. Também entrava no campo do Praia de Milfontes para assistir aos jogos, portanto, foi assim que realmente percebi que tinha gosto para jogar à bola. Milfontes viu-me crescer e viu-me a sonhar”.
Teve uma infância feliz?
Sim, era bastante feliz e quando mudei para Águeda senti uma diferença gigantesca na minha vida. É verdade que as coisas se materializaram, porque foi em Águeda que me inscrevi numa equipa de futebol, mas a verdade é que não esquecerei a minha infância em Milfontes. Os jogos de futebol com os meus colegas de escola e as professoras a ralharem comigo quando eu estava a jogar à bola na estrada. São essas as grandes memórias que tenho da minha infância e que me ajudam a lembrar esse tempo com um carinho muito grande.
Milfontes é uma vila inspiradora, as águas doces do rio Mira a misturarem-se nas ondas salgadas do oceano Atlântico…
Sempre que tenho algum tempo de folga dou uma escapadela à minha vila. Uma vila super bonita. Uma terra que eu acho que é um bocadinho minha e que faz parte da ninha vida e espero que eu também seja um bocadinho dela.
Entretanto, mudou-se para Águeda e as coisas começaram a evoluir um pouco mais a sério…
Sim, inscrevi-me no União Ferreirense (Anadia), de onde saí para o Albergaria. Fui até à Suécia, voltei e estive um ano no Sporting Clube de Braga. Sabia que a minha carreira teria que passar pelo estrangeiro. Queria ser profissional de futebol e o campeonato português estava longe de ser profissional. Queria estar com as melhores equipas, com as melhores jogadoras. Sabia que o meu futuro passaria por andar lá por fora. Foi por isso que assinei com o Levante. Posteriormente assinei com aquela que, na altura, era a melhor equipa do mundo, o Lyon. Fui muito feliz, ganhei uma Champions, algo de que me orgulha muito, por ter sido a primeira, mas tenho a certeza que haverá mais mulheres portuguesas a conquistá-la. Mas a verdade é que esta carreira foi também construída à base de alguns percalços, alguns obstáculos, mas vale eu nunca ter desistido, vale eu nunca ter virado a cara ao desafio e, por isso, estou aqui também a ser reconhecida pelo município de Odemira, porque atrás destas conquistas todas há um percurso cheio de ambição, de trabalho e estou imensamente feliz por este reconhecimento.
A conquista da Champions com a camisola do Olympique de Lyon foi o momento mais alto da carreira?
Também foi, sem dúvida. Mas a presença no mundial marcou muito a minha carreira. Foi algo que eu achava muito longe de acontecer. Sempre representei grandes clubes, mas achava muito difícil Portugal estar num mundial. Acreditava, mas não sabia que seria ainda a minha geração a cometer essa proeza e a verdade é que conseguimos concretizar esse sonho. Foi uma conquista, abriu-se esse caminho. Sei que contribui para que o futebol feminino português estivesse num patamar mais alto. Portanto, a Champions e a presença no mundial foram dois acontecimentos enormes na minha vida desportiva.
O périplo por Espanha, Suécia e França foi essencial para se ter tornado uma conquistadora?
Claro. É preciso querermos ser melhores. Eu sabia que ficar em Portugal seria estar no conforto. Mas eu procurei sempre a adversidade como forma de me valorizar e de ser melhor. Procurei estar entre as melhores jogadoras, nas melhores ligas, porque não tenho dúvidas de que Portugal ainda está um bocadinho longe de ter a melhor competição ao nível de clubes. O caminho está a ser feito, e bem feito, é verdade, mas as outras ligas europeias continuam a ser mais competitivas.
Como se avalia como jogadora?
Sou irreverente, veloz, acho que dou muito de mim ao jogo, ainda que não esteja a jogar numa posição que seja a minha favorita, ou em que eu ache que rendo mais. Mas é ali que os meus treinadores me põem a jogar, e é isso que tenho que cumprir. Sinto-me uma jogadora inteligente e capaz de ajudar qualquer equipa mas, lá está, as minhas melhores características são no um para um e a velocidade. Sou, sobretudo, uma jogadora extremamente ambiciosa. Quero sempre um bocadinho mais e procuro sempre evoluir. Fui feita para lutar, é isso que continuarei a fazer, procurando sempre dar o melhor de mim.
O papel da família tem sido fundamental…
O apoio da família tem sido essencial. É por ela que eu continuo a lutar. Com os infortúnios que já tive na vida, teria sido fácil desistir e procurar um sítio mais cómodo, mas não é isso que eu quero, nem isso que eu sinto. Continuarei a lutar, para deixar a família orgulhosa e também para a poder ajudar.
Costuma dizer que aos homens dão condições para serem melhores e as mulheres têm que ser as melhores para lhes darem algumas condições…
É verdade. Infelizmente é essa a realidade. Há pessoas que não entendem bem. Não é uma comparação excessiva, é factual, é o que acontece e, claro, gostava que se esforçassem um bocadinho mais para darem as melhores condições às atletas. Não falo como uma jogadora privilegiada, porque sei que o sou, mas não posso falar só de mim, tenho que falar pelos outros milhares de mulheres que são jogadoras de futebol e de outras modalidades. Aos homens dão todas as condições para terem os melhores resultados e a nós o caminho é o inverso. O problema é transversal a todas as áreas. Devia existir mais equidade, mas nem falamos de salários iguais. Não quero ganhar o mesmo que ganha o João Mário, só quero é que todas as mulheres, em Portugal e no mundo, se sintam valorizadas pelo que trabalham para conquistarem um lugar num sítio merecido. É por elas que eu falo e que luto.