Diário do Alentejo

No ecrã fica mais perto...

05 de maio 2023 - 16:00
Manuel Ramos e Francisca Maria, os avós do benfiquista Gonçalo Ramos
Foto | Firmino PaixãoFoto | Firmino Paixão

Manuel Ramos e a companheira, Francisca Maria Simões, têm todas as razões para se sentirem uns amarelejenses felizes. Três filhos criados e encaminhados na vida, uma mão-cheia de netos, um deles, o futebolista Gonçalo Ramos, uma das estrelas que mais cintilam no Benfica e na seleção e a quem desejam, sobretudo, sorte, saúde e a maior felicidade.

 

Texto Firmino Paixão

 

Na terra onde nasceu Eunice Muñoz, uma das melhores actrizes portuguesas de todos os tempos, a temperatura era excessiva para este tempo ainda primaveril. Rondava os 35 graus, bem longe do recorde (47,4) já registado naquela que, em tempos, foi considerada a maior e mais populosa aldeia do território nacional.

 

 

Mas não é só o facto de ter sido o berço da grande Eunice que dá notoriedade àquela freguesia do concelho de Moura. Não se via muita gente na rua. A referência que levávamos como ponto de encontro era forte, ainda assim, os pedidos para orientação esbarravam em informações pouco assertivas. Circulando ao acaso, e à própria custa, demos com o sítio. Onde fica o mercado? “Ali em frente” – respondeu o proprietário do café Los Gatos, com um sotaque castelhano, adocicado pela “cafeína colombiana”, algo que ganhou durante os anos em que viveu naquele país da região do Caribe.

 

E o senhor Manuel Ramos mora por aqui? – “Quem? O senhor Manuel ‘Pineque’?” – Devolveu a questão. Bom, “Pineque”, eu não sei! Para mim, é Ramos e é o avô do Gonçalo, esse fenómeno que marca golos que se farta na frente de ataque do Benfica e da seleção de Portugal. Uma alcunha! Era, afinal, a mesma pessoa. Não havia dúvidas, dentro do balcão lá estava uma foto de Ramos (pai do Gonçalo) vestido com a camisola do Farense.

 

À hora aprazada, quatro da tarde, abriu-se o portão metálico frontal ao mercado da aldeia e assomou Manuel Ramos, mais tarde Francisca Maria. Debaixo do bigode farfalhudo soltou um sorriso cordial. Vimo-nos pela primeira vez, mas não é que sentimos que já nos conhecíamos há imenso tempo? Em Amareleja não se sentem só temperaturas que aquecem os rostos e bronzeiam a tez. As pessoas são igualmente calorosas.

 

Um café, uma água e mão à obra, demos o pontapé de saída para uma conversa cordial que, uma vez terminada, já deixava saudades. Como é que o futebol tem tão grande predominância na família? Jogou futebol? “Olhe, joguei uma vez à bola, pela Sociedade Recreativa, contra o Grupo Desportivo Amarelejense (GDA). Não tínhamos botas nem fardamentos, cortámos umas calças e fizemos calções. Era Natal, fizemos uma equipa à pressa e lá fomos, com as botas cardadas, foi um sofrimento. Isso foi há sessenta e tal anos, porque já cá cantam 72”.

 

Depois foi o filho Manuel. Começou no clube da terra e foi por aí adiante. “Sim, mas o outro irmão, o Joaquim Simões, era ainda mais habilidoso, só que era um bocado malandro, às vezes jogavam os dois, mas ele dizia que rebentava ali a fugir e não gostava nada, mas era muito habilidoso. Vive em Moura, foi membro dos Adiafa, é professor de música [de fagote] e maestro da banda de Cuba”.

 

E o Manuel? “Era uma lebre, foi sempre muito rápido. Havia aqui ao lado um abegão que dizia sempre que ele haveria de chegar longe. Jogou aqui no GDA e vieram buscá-lo para o Moura, mas havia um indivíduo de Pias que o levou ao Farense. Tinha 13 anos e lá ficou. Aos 17 já jogava nos seniores. Talvez tenha sido cedo de mais. Uma vez levou uma pantufada que ficou com a perna virada ao contrário. Foi operado na clínica do Belo, as lesões sucederam-se, porque ele ia a todas, não tinha medo”.

 

Por lá ficou. Entregou o coração a uma mulher algarvia, foi isso? “Casou novo, tinha 22 anos, e nasceu logo o Gonçalo. Dez anos depois nasceu o Lourenço, que também é muito habilidoso. É jogador das Escolinhas do Benfica no Algarve e, no próximo ano, vai já para o Benfica Campus, no Seixal. Foi prestar provas e gostaram imenso dele”.

 

Perguntei há pouco pelo Manuel Ramos e devia ter perguntado pelo Manuel “Pineque”: “Pois, a minha alcunha aqui na Amareleja é o ‘Pineque’. Vem do meu avô que bebia muita pinga, ficava muito direito, os outros companheiros a abanar e ele dizia: ‘Já estão todos a abanar e eu estou aqui tão direito que pareço um ‘pineque’’. E pronto, ficou a alcunha”. E o Gonçalo? “A malta aqui da Amareleja que vai ao Estádio da Luz, quando ele toca na bola, gritam-lhe ‘anda aí ‘Pineque’’, e ele sabe, mas, pronto, faz que não é nada com ele”.

 

Gonçalo é o orgulho dos avós Manuel Ramos e Francisca Simões, mas não é o menino dos avós, pois já existem mais netos e até mais novos. “Quando vinha à Amareleja era o nosso menino, jogava à bola aqui no largo, o portão do mercado era a baliza. Agora vem pouquíssimas vezes. No futuro será pior, porque arranjou namoro com uma jornalista. E é jeitosa”. Ai é? Conhece-a? “Quando fui a Lisboa ver um jogo estive lá com ela, é a Margarida… qualquer coisa [Amaral Domingues], e lá no camarote ela disse-me que gostaria de vir à Amareleja almoçar ou jantar. Pediu-me para convencer o Gonçalo, porque ele é um artista, arranja sempre uma desculpa. Vou ver, prometi-lhe eu”.

 

E só foi ver um jogo do seu neto? “Também sou benfiquista e até podia ir lá mais vezes, mas já estamos com uma certa idade e aqui, com um bom ecrã, vejo-o melhor, a ele e ao jogo, mais perto do que lá de cima, no camarote do estádio. Depois, o meu filho vai de Olhão para Lisboa e fica um bocado fora de volta passar pela Amareleja”, justifica.

 

Uma época de sonho. O melhor marcador do campeonato, melhor marcador do clube, na Champions, e três golos à Suíça, no mundial do Qatar. “Tem um futuro muito largo à sua frente. Repare que tem apenas 21 anos, mas eu tenho um cunhado que já lhe disse que desde que começou a namorar nunca mais marcou golos”.

 

A avó Francisca também gostaria de o ter cá mais vezes para lhe fazer umas sopinhas alentejanas ou não? “A avó ainda se queixa mais, diz que aquele malandro já não conhece a gente, telefona-lhe e ele nem sempre pode atender, então diz logo que ele já nem quer falar com ela. Ele gosta de tudo, come bem as comidinhas alentejanas. Uma vez que cá veio fomos ali ao Piteira e ele comeu uma açordinha de perdiz”.

 

Não tarda está noutro grande clube europeu, já se falou no Chelsea: “Gostávamos mais de o ter cá, mas o seu futuro pode passar por fazer o contrato da vida dele, e terá que sair, porque é mesmo assim, o futebol não dura sempre”, diz o avô paterno do craque, elogiando-o: “Ele é um bom miúdo, muito humilde, muito educado, é amigo dos amigos”. Contudo, fica o reparo: “Faz aqueles cortes de cabelo, mais umas barbinhas, umas tatuagens, mas isto é a juventude de agora. Um dia disse-lhe para não andar com aquilo, que o nosso corpo não é nenhum mapa. Depois tem aquele gesto de pistoleiro quando marca golos”.

Comentários