Diário do Alentejo

Jogar na vida como se joga entre as quatro linhas do campo

21 de outubro 2022 - 10:15
O projeto Futebol de Rua visa incluir socialmente jovens em situação vulnerável através do desporto
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Inclusão, liberdade, igualdade e desporto são as chaves do projeto Futebol de Rua da responsabilidade da Associação Cais. A iniciativa socio-desportiva influencia os mais jovens a olhar a vida com os valores base do futebol de rua: companheirismo, autoconfiança, resiliência, cooperação… 

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

O Torneio Nacional de Futebol de Rua termina domingo. O culminar do ano de trabalho da Associação Cais e das entidades parceiras encerra com a final da competição, este fim de semana, em Beja.

 

Os próximos dias serão de superação, coragem, resiliência e aprendizagem dentro e fora das quatro linhas, onde, mais do que os resultados dos jogos, está em causa o sentimento de dever cumprindo de cada um dos jogadores para consigo próprio.

 

“O projeto Futebol de Rua é uma iniciativa socio-desportiva promovida desde 2004 pela Associação Cais. Este tem como objetivos principais promover o acesso à prática regular desportiva de um público-alvo em situação de maior vulnerabilidade e trabalhar os seus valores e competências pessoais e sociais através de atividades paralelas”, começa por explicar ao “Diário do Alentejo” (“DA”) o coordenador do projeto, Gonçalo Santos.

 

Com mais de 30 workshops para mais de 1000 jovens, a Final do Torneio Nacional de Futebol de Rua, que começa hoje, marca o “momento alto da atividade mais visível do projeto Futebol de Rua”.

 

Durante o ano, além das participações nos torneios distritais, que permitem aos selecionadores ver, escolher e convidar os jogadores para as provas nacionais, os jovens têm direito a participar em sessões práticas, por exemplo, de igualdade de género, autoconfiança, motivação, inteligência emocional ou autoliderança.

 

“Estas atividades permitem-lhes trabalhar um conjunto de competências que depois têm oportunidade de pôr em prática nos torneios, seja na fase distrital, nacional ou nas seleções, e de levar para a sua vida ativa”, continua.

 

Direcionado, principalmente, para um público-alvo frágil, a prática desportiva, em concreto o futebol de rua, vem servir de mote para a capacitação, autonomização e promoção do desenvolvimento pessoal.

 

Para Fátima Lima, uma das jogadoras que defenderá o título de bicampeã nacional em feminino pela equipa de Beja no Torneio, a importância das iniciativas de educação não formal são o segredo para o sucesso das equipas que competem e dos próprios jogadores nas suas vidas pessoais.

 

“Nós passamos muito tempo a fazer workshops com diferentes pessoas que vêm de fora e nos ajudam a fazer coisas que nós não sabíamos que conseguíamos fazer e que tínhamos medo de as usar no nosso dia a dia. Porque nós somos assim, temos sempre um pé à frente e outro atrás e a vida não pode ser vivida desta forma, pois por mais que as pessoas falem mal, não nos deem coragem, ajuda e não nos apoiem, se nós pensarmos que somos capazes e acreditarmos em nós  [próprios] conseguimos alcançar tudo aquilo que queremos. E isso nós aprendemos e somos colocados à prova nos workshops”, conta a jovem de 24 anos.

 

Também o responsável do Futebol Rua na cidade de Beja, Fábio Pacheco, nota a dimensão que o projeto tem ganho a nível nacional e regional e a sua potencialidade para fazer a diferença em cada jovem.

 

 “Esta iniciativa socio-desportiva é única, porque o futebol é só uma distração, tudo o que envolve o Torneio Nacional do Futebol de Rua é muito maior do que o que nós pensamos. Nós temos os workshops de educação não formal que são muito importantes e talvez os sítios onde toda a gente se sente integrada. Por isso, para mim, tudo o que se passa dentro do torneio e não dentro do campo é o mais importante”, refere o também treinador da equipa masculina.

 

ESCOLHAS, ROTATIVIDADE E INCLUSÃO

Na cidade de Beja, o projeto Futebol de Rua é apoiado e dinamizado pela Associação Juvenil PaxJovem, que conta este ano com duas equipas em competição, uma masculina e uma feminina.

 

No total, serão oito rapazes que disputarão a manutenção do pódio, um 3.º lugar conquistado o ano passado, e sete raparigas que lutarão pelo tricampeonato a “jogar em casa”.

 

Os critérios de convocatória para as equipas nacionais são claros. Além da qualidade do jogador, a obrigatoriedade de participação no Torneio Distrital de Futebol de Rua, organizado pela PaxJovem, e a sua assiduidade nos workshops são pontos importantes para a escolha.

 

“O primeiro critério, e o mais importante, é a participação no Torneio Distrital de Futebol de Rua que nós organizamos na nossa cidade e depois, a partir daí, escolhe-se os oito melhores ou aqueles que podem ir à seleção distrital. [Nesta prova], todos os participantes têm de pertencer a uma entidade/associação [e ter assistido às nossas sessões de educação não formal]. Este ano tenho jogadores que pertencem à Shave Escolhas, que é um projeto no Bairro da Esperança, ao Barrancos Futebol Clube, a um ginásio e por aí a fora”, refere o treinador de 27 anos.

 

Outra das particularidades do Torneio é a sua limitação de participações, ou seja, cada jovem pode ser chamado para a competição nacional apenas três vezes, seguidas ou faseadas. Este é um dos métodos escolhidos pela Associação Cais para permitir uma rotatividade de jogadores, dando iguais oportunidades a todos aqueles que pretendem jogar.

 

“Este projeto tem uma vertente muito interessante porque a organização quer dar oportunidades a todos, daí nós, também jogadores, só podermos ir três anos ao Torneio Nacional de Futebol de Rua e passado esse tempo apenas podermos ir ao distrital. Depois de jogarmos essas três vezes nunca mais voltamos a jogar a nível nacional, porque é uma maneira de se dar oportunidade a todos e não focar sempre naqueles que são os melhores”, esclarece Miguel Mestre, jogador da equipa masculina.

 

A edição deste ano conta ainda com uma novidade extra, tanto ao nível inclusivo, como desportivo, que deixa o técnico Fábio Pacheco com um “gostinho muito especial” e com a sensação de que os objetivos principais do Futebol Rua estão a ser cumpridos com êxito.

 

“Este ano temos uma equipa da Associação Shave Escolhas, com miúdos que vivem nos bairros da Esperança e das Pedreiras, que vão participar em modo outsider. Com a desistência de uma outra equipa do Torneio Nacional, ficou em aberto a vinda de uma nova e então nós pensámos que, como estes miúdos trabalharam durante todo o ano as competências do Futebol Rua e tudo o que o projeto quer, seria um prémio para eles esta integração na competição. E esta foi outra forma de nós vincarmos ainda mais a inclusão que há neste projeto”, afirma.

 

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O FUTEBOL DE RUA TRIUNFA A OLHOS VISTOS

Com 18 anos volvidos desde o seu início, os números servem de base qualitativa para validar o sucesso das estratégias colocadas em prática no terreno.

 

Segundo Gonçalo Santos, coordenador do projeto a nível nacional, a percentagem de participantes do Futebol de Rua que desenvolvem as suas competências pessoais e sociais, anualmente, está entre os 82 e os 85 por cento. Por sua vez, “com uma amostra mais pequena”, cerca de 85 por cento dos jovens reintegram o ensino escolar ou integram/reintegram o mercado de trabalho.

 

“Temos também um indicador muito interessante que é os graduados que são os participantes que atingiram o limite de participações no Torneio Nacional de Futebol de Rua e que face ao desenvolvimento que viram em si e nas suas vidas decidem continuar envolvidos com o mesmo e assumem novas funções, quer de arbitragem, através de uma parceria com a Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol, quer como treinadores ou responsáveis desportivos. [Por exemplo], mais de metade dos selecionadores distritais que estão em Beja, durante esta semana, são antigos participantes que integraram equipas há 10 ou 15 anos e que hoje em dia continuam envolvidos e dão um pouco de si e do seu tempo para que outros possam fazer o mesmo percurso que eles fizeram”, refere o coordenador.

 

As percentagens são sempre boas indicadoras para avaliar um caminho de sucesso, mas ainda assim as memórias, as mensagens e os sorrisos quando se fala no Futebol de Rua não deixam dúvidas das marcas positivas que o projeto deixa em que se associou a ele em algum momento da sua vida.

 

Gonçalo Lourenço tem 21 anos e já esgotou as suas participações no Torneio. Atualmente, continua ligado ao projeto como responsável desportivo da equipa masculina da PaxJovem. O “amor” que sente pelo Futebol de Rua que o fez “mudar completamente como ser humano”, ao abrir-lhe “completamente a mente”, é o segredo que o mantém na iniciativa.

 

 “As minhas participações no Futebol de Rua abriram-me completamente a mente, porque é um mundo completamente diferente. Eu vi e aprendi coisas, só aqui no nosso distrito, que nunca tinha tido contacto com elas. Mudou-me completamente como ser humano e desde aí nunca mais pensei em abandonar o projeto”, conta ao “DA”.

 

Também o guarda-redes masculino, André Quintos, que está agora a fazer o seu último ano, fala do Futebol de Rua com um sorriso. Para o jovem de 23 anos este é um “projeto muito gratificante” porque “é muito para lá das quatro linhas”.

 

“O Futebol de Rua tem um conceito muito importante e gratificante porque, lá está, é um projeto onde inserimos qualquer tipo de pessoas, desde os que moram em bairros sociais, até àqueles que têm muitas posses. É um projeto que inclui todos, é jogar futebol com toda a gente”, garante.

 

Este é um dos pontos fulcrais que o singulariza. Colocar em campo e fora dele “pessoas com idades e realidades muito diferentes em termos de tudo”.

 

A IMPORTÂNCIA DO FUTEBOL DE RUA EM BEJA

A visibilidade, a dinâmica e o desenvolvimento que o Futebol de Rua traz até à cidade de Beja, não só durante este fim de semana, mas também com os torneios distritais e os workshops que decorrem ao longo do ano, são outro ponto do impacto causado em segundo plano pelo projeto.

 

Para Lara Filipe, jogadora da equipa feminina de Beja, o Torneio Nacional de Futebol de Rua dá um novo destaque ao Alentejo ao nível do desporto e permite “abrir muitas portas e caminhos para aqueles que vêm a seguir”.

 

“Nós somos uma das melhores equipas que há de Futebol Rua e [o torneio nacional] permite-nos mostrar ao resto do País que, apesar de sermos um distrito que não é tão desenvolvido como os outros, também tem muita qualidade, principalmente no futebol feminino”, refere a estudante de 17 anos.

 

Este ano é a terceira vez que o Torneio Nacional de Futebol de Rua é competido em Beja. A relação entre o projeto e a cidade é antiga e cada vez mais próxima. “Beja foi a terra do nosso selecionador nacional durante uma década e, este ano, foi também o distrito com mais equipas em prova, portanto há aqui uma relação muito próxima”, afirma Gonçalo Santos.

 

Também Marisa Saturnino, vereadora com os pelouros da educação, juventude e desporto da Câmara Municipal de Beja, vê o peso que este projeto socio-desportivo tem nos jovens, na comunidade onde estes se inserem e na própria atividade local durante os dias do Torneio.

 

“Este é um projeto que pretende mesmo promover a inclusão através da valorização dos atletas e da prática desportiva, levando os miúdos a respeitar as regras do jogo, a dar o seu melhor independentemente do adversário e a trabalhar a questão da igualdade. [Assim como, fomentar a economia da região], pelo número de pessoas que traz à cidade, cerca de 300 participantes, e pela dinâmica que lhe incute nestes dias”, sublinha.

 

QUATRO DIAS DE RESPONSABILIDADE, ALEGRIA E FUTEBOL

Este ano o programa do Futebol de Rua apresenta “um formato um bocadinho diferente”, com apenas quatro dias e uma “agenda diária mais preenchida”.

 

Em relação às equipas bejenses, a meta está bem traçada: “Gostávamos de ganhar os dois torneios e que os miúdos tivessem a oportunidade de trazer o título no masculino para Beja, que já nos foge há alguns anos, e que as miúdas fossem tricampeãs nacionais. Mas essencialmente [esperamos] que todos se divirtam, que aprendam e que cresçam”, confidencia o treinador Fábio Pacheco.

 

Fátima Lima acrescenta ainda que o mais importante é “que tudo corra bem, que ninguém da minha equipa ou das outras se lesione e que seja tudo jogado na paz de espírito, que joguemos e que quem tenha que ganhar, que ganhe, sem competições no mau sentido”.

 

O início do Torneio está marcado para amanhã, sábado, pelas 09:00 horas, no Parque de Feiras e Exposições de Beja – Manuel de Castro e Brito. Hoje, o dia será marcado pelo desfile das delegações entre a Praça da República e o Pavilhão, seguindo-se da cerimónia de abertura. Além das classificações finais, o evento permitirá ainda a escolha dos atletas para o Mundial de Futebol de Rua.

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