José Filipe Murteira
Professor aposentado
Chegar e partir. Ficar e esperar. Esta foi a “rotina” iniciada por uma criança de 10 anos, desejosa de aprender e de saber, terminada aos 17, jovem carregado de certezas e de utopias.Chegar à cidade, partir para a aldeia. Ficar na gare (rodoviária), esperar pelo 70, o mítico autocarro da EVA, cujo carisma era apenas ultrapassado pelo do senhor Inácio, que o conduzia. Quem era mais velho, a máquina ou o homem? Essa foi sempre a grande dúvida de todos nós, os putos que transportava.Antes da partida, a espera, muitas vezes no banco da sala à esquerda da porta de entrada, com o grande mapa que decorava a parede mesmo à nossa frente. Um mapa colorido, estilo naif, com as rotas das três transportadoras que aí aportavam: as verdes (“Setubalense” e EVA) e a vermelha (Rodoviária (do Sotavento)). De Sagres a Castelo Branco, de Sines a Elvas, ocupando mais de metade do País, “levava-me” a cidades, vilas e aldeias, a maior parte desconhecidas. Lamentavelmente, a “modernização” da gare, ocorrida há alguns anos, com a construção de novas bilheteiras e de escritórios nesse local, fê-lo desaparecer. No final da espera, o anúncio esperado no altifalante de um dos maiores e mais modernos terminais rodoviários do País, recentemente inaugurado: “Senhores passageiros com destino a Faro, autocarro n.º … na pista n º …, com paragens em …”. A minha paragem era logo uma das primeiras, já que distava apenas 17 quilómetros da partida, mas adorava seguir no mapa da parede a rota anunciada: … Santa Vitória, Ervidel … Corte Vicente Anes … Almodôvar… Ameixial, Barranco do Velho… Faro!Dessa rota já ouvira falar, sobretudo, das medonhas 365 curvas da serra do Caldeirão, numa altura em que não existiam IP nem IC, muito menos IR (estradas “regionais”, num país sem regiões!), e a agora mítica EN2, sonho de aventureiros da rodovia, qual Route 66, era a principal ligação rodoviária entre o Alentejo e o Algarve. Estrada longa (cerca de 740 quilómetros), atravessando longitudinalmente o País, de Chaves a Faro, tem, nos dias de hoje, direito a site (https://www.rotan2.pt/), passaporte para carimbar e, sinais dos tempos e da sua renascida importância, tem sido ultimamente percorrida por políticos ávidos de conhecer o “Portugal profundo”.No Barranco do Velho foi construída em 1937 (segundo reza o painel de azulejos da Cerâmica Lusitana colocado no frontão da sua fachada) uma “Secção de Conservação” da JAE (Junta Autónoma das Estradas, percursora das mais recentes IEP, EP e IP), edifício de apoio aos trabalhadores que tinham como missão manter em boas condições a estrada. Treze quilómetros mais a norte, no lugar de Vale Maria Dias, encontrava-se a casa dos cantoneiros, datada do mesmo ano e que, a exemplo de idênticas construções espalhadas pelo País, alojava dois desses trabalhadores.Segundo o mapa de 1972, do Instituto Geográfico e Cadastral, onde o “sul” da autoestrada (A2) era ainda o Fogueteiro, a ligação Trindade-Castro Verde não passava de uma estrada secundária (parte da EN391), onde os pontões sobre a ribeira de Terges (junto a Albernoa e a Entradas) ficavam submersos quando as águas subiam, não sendo, assim, alternativa à EN2, na ligação para o Algarve. A ligação Beja-Faro, anunciada no altifalante, começava, pois, na EN18 (que se juntava à EN2 em Ervidel), a “estrada nova”/rua da nossa infância (mais tarde batizada de 25 de Abril), por onde não passavam “expressos” e “flixbuses”, mas apenas a “caminete da carreira” – “vai a Beja e a Ferreira”, era a nossa cantilena –, que nos transportava à Feira de Agosto do circo, da pinhoada e do frango assado e que, mais tarde, nos levaria à Mário Beirão (no seu primeiro ano de funcionamento) e ao liceu (por sinal, ambos no mesmo local).E foi já nos dois últimos anos passados na “casa amarela”, muito por influência da “professora rebelde” (de Filosofia) que tanto nos marcou (a quem dediquei uma pequena crónica, aqui no “Diário do Alentejo”, a 12 de abril de 2012) e que, pelas questões que lhe colocava nas aulas, me tratava por Sócrates, que comecei a olhar para o mapa à minha frente com “outros olhos”.Quem seria o Vicente Anes? Provavelmente um pastor que, entre Ervidel e Aljustrel, teria uma corte onde recolhia o gado. E no Ameixial haveria ameixeiras tão grandes como aquela que dava nome ao pego mais profundo da ribeira, onde os moços da aldeia iam banhar nos dias quentes do verão? E quem seria o velho que dava nome ao barranco? Dono deste, não seria, porque ribeiras e barrancos não têm donos e, mesmo nos negros tempos da ditadura, ao contrário dos homens, eram livres. Um velho que vivia perto do barranco, talvez? Que teria caído no barranco, quem sabe? Mas ele nem sempre terá sido velho e, assim, talvez o nome do lugar viesse do seu velho avô/bisavô? Perguntas sem respostas para um jovem, nos anos de 1974 e 1975 do nosso contentamento.Hoje, o barranco continua a ser “do velho”, conhecido pela cortiça e pela boa aguardente de medronho mas, fruto do urbano “turismo de experiência”, tão em voga nos nossos dias, encontramos nos sites especializados a Tia Bia (quem seria a Tia Bia, será que ainda é viva?) “… Restaurante e Alojamento Local situada em Barranco do Velho, ao sopé da Serra do Caldeirão, zona de rara beleza paisagística…” e o Spot na Serra, “… um acolhedor B&B localizado na paisagem rural de Loulé (…) um ambiente calmo e relaxante ao lado da EN2 perto da Natureza”, segundo informação das suas páginas. Claro que aí também não podia faltar a sede de um grupo motard (da Serra do Caldeirão).Todavia, não obstante podermos hoje fazer (no Maps) viagens virtuais ao longo de toda a EN2 (em alguns troços promovida a IP(3) e, em algumas dezenas de metros do próprio Barranco do Velho, a IR(124), de “googlar” ou usar a IA para saber tudo (ou quase tudo) sobre essa rota, de encontrarmos no Facebook, no Instagram ou no X, centenas, milhares de textos e fotos sobre aldeias e cidades, rios e serras, fauna e flora, pessoas e festas (como a dança no varão ou os concerto de metal nos convívios do grupo motard referido), ainda não sabemos a resposta à questão colocada pelo jovem estudante da aldeia, há 50 anos: quem seria o velho do barranco?