Diário do Alentejo

Crónicas do cante: Quebraram-se as grades de ferro da prisão!

20 de abril 2025 - 08:00
Cante alentejano e 25 de Abril: a voz da terra que se fez liberdade

Florêncio CaceteCoordenador do Arquivo Digital do CanteCIDEHUS/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt

 

A prática do cante alentejano é antiga e está profundamente enraizada nalgumas comunidades e territórios. Sendo uma prática cultural, nunca se manteve à margem das transformações sociais ocorridas na sociedade. Pelo que, ora tinha intervenção direta nessas transformações, ora se adaptava às novas realidades.

Sendo verdade que o cante, tal como o conhecemos, através do que são os grupos corais, é fruto de um processo de turistificação, dinamizado inicialmente pelos grandes lavradores do Alentejo que levavam a Lisboa grupos de cantadores para grandes saraus e espetáculos, indo ao encontro do ideário do Estado Novo, sustentado na “Política do Espírito” de António Ferro, não menos verdade é que o cante, enquanto prática cultural informal, participada por todos coletivamente nos territórios de origem, resistia.

Ou seja, se, por um lado, os grupos de cante, já instrumentalizados e condicionados pelos diferentes organismos do Estado Novo, eram utilizados pelo regime para afirmação da excecionalidade nacional – uma essência etnográfica da ruralidade portuguesa na qual os portugueses se pudessem rever –, por outro lado, nas tabernas e nas ruas, enquanto se pôde cantar nas ruas, as modas cantadas eram também de resistência, por vezes de crítica, por vezes nostálgica da dureza da vida rural e da solidariedade comunitária.

Com o 25 de Abril de 1974 quebraram-se as grades de ferro da prisão em que se vivia, assiste-se a um momento de profunda transformação social, especialmente, para o mundo rural e para as regiões mais marginalizadas, como o Alentejo. Canta-se em liberdade a Catarina Eufémia, condena-se a guerra colonial, canta-se à Reforma Agrária, conquista importante para os trabalhadores do Sul. Não faltasse criatividade aos poetas e assim se cantaria a liberdade em liberdade, em todos os lugares e de todas as formas. Com a Revolução de Abril nasce e prolifera também todo o tipo de organizações, dinamizadas por diferentes setores sociais e profissionais e que olhavam para o cante como símbolo da resistência e de Liberdade e todas elas queriam aqueles grupos de homens, com vozes potentíssimas, cantando com emoção, nas suas iniciativas, a “Grândola, Vila Morena” e outros temas, entretanto popularizados.

Na sequência de Abril, surgem nos anos seguintes novos grupos corais. Nas comunidades, agora já sem repressão, as mulheres voltam a cantar em público, venceram o preconceito e em 1979 surge o primeiro grupo coral feminino, no concelho de Aljustrel. Nas vilas e aldeias do Alentejo, fruto do aparecimento dos grupos femininos, alguns grupos tiveram de alterar o seu nome, ora diferenciando-se como grupo masculino, ora alterando toda a nomenclatura que os designava. Surgem os grupos corais mistos, ou melhor, ressurgem. Sobretudo, no Baixo Alentejo, surgem grupos de cante nas unidades coletivas de produção (UCP cooperativas) e um pouco por toda a parte nascem grupos infantis. Nalguns locais as próprias estruturas partidárias, nomeadamente, o PCP, criaram grupos de cante com crianças associados aos Pioneiros de Portugal.O cante ganha destaque ao acompanhar artistas nacionais, nomeadamente, com Zeca Afonso e outros cantores de intervenção que passavam nas rádios e televisões.

Foi um momento de ouro para o cante, quer pela visibilidade alcançada, quer pela quantidade de novos grupos que se formaram, quer também pela criatividade dos poetas populares que não tinham mãos a medir para produzir novas letras para novas modas para o cante. Porém, deste tempo não há muita documentação nos arquivos dos grupos de cante, ou, pelo menos, ainda não se chegou a ela. Vivia-se um tempo em que muitas das combinações ficavam apalavradas de um evento para o outro, entre grupos e instituições, bastando depois um telefonema que se poderia fazer de qualquer café, a troco do pagamento dos respetivos impulsos.

Alguns grupos começaram a cantar temas diretamente ligados à Revolução, às lutas dos trabalhadores, à terra e à esperança num futuro melhor. O cante tornou-se também um símbolo da afirmação cultural do Alentejo no novo Portugal democrático e um dos grupos que maior projeção teve neste período foi o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel, tendo recebido convites para todo o tipo de ações e jornadas de luta, pequenos e grandes espetáculos. Não só por ser diferente, mas por ser uma organização de classe e estar na dependência direta de uma organização sindical.E já passaram 50 anos de Abril, alguns sonhos desvaneceram, voltámos a ouvir falar de guerra e do fascismo, as condições de vida, sendo melhores, são ainda insuficientes, continua-se a assistir ao despovoamento do interior e o cante… continua a resistir e a cantar em liberdade as dores e estados de alma de um povo que tal como o cante… resiste!

 

 

Comentários