A Casa das Lãs, uma das lojas de comércio tradicional mais antigas da cidade de Beja, com 48 anos a servir o público, encerrou na sexta-feira, dia 30, as portas. O “Diário do Alentejo” falou com Francisco Carrapiço, lojista gerente do espaço comercial aberto desde 1975.
Texto José Serrano
"Informo, clientes e amigos, o encerramento deste estabelecimento comercial, a partir de dia 30 de junho”.
O anúncio, impresso em folha branca, está disposto com fita-cola no vidro da montra da Casa das Lãs – Retrosaria e Lingerie, loja de comércio tradicional situado da rua Capitão João Francisco de Sousa, em Beja.
Ao redor do anúncio de fecho, reforçando a simbologia da constante mutação da existência, esvoaça, em movimentos indefinidos, uma borboleta, que terá entrado, certamente, pela porta do número 40, aberta ao público. Estamos a meio da manhã e Francisco Carrapiço vai atendendo, uma a uma, as fiéis clientes que se confessam inquietadas com a proximidade da data anunciada. “Sabe o que é?” – questiona o lojista – “as pessoas, sabendo que eu me vou embora, não sabem onde depois encontrar as coisas que eu tenho em loja, a que estão acostumadas, uma vida inteira, a comprar-me a mim. Eu estou triste e as clientes também…”.
“Bom dia, senhor Francisco. Vinha à procura de linhas amarelas para pespontos, assim mais grossas… São essas mesmo. Levo dois carrinhos”
Afinal, Francisco Carrapiço está presente na zona comercial do centro da cidade há 48 anos. Primeiro na rua de Mértola – “estive lá 25 anos, onde agora é a Mango” – e, depois, na rua paralela – “onde estou desde há 23, após o término da Alfaiataria Loureiro, que era aqui”.
A chegada à cidade como lojista aconteceu um ano depois de cumprir o serviço militar na Base Aérea de Beja.
“Eu saí da tropa na semana seguinte ao 25 de Abril e comecei logo a trabalhar como vendedor (caixeiro-viajante, como se dizia naquele tempo), numa sociedade com dois conterrâneos meus de Pias. Fazíamos a ‘volta’ por todo o Algarve e Baixo Alentejo, vendendo fios de tricô, lingerie e materiais de costura. Passado um ano, soube que o gerente de uma casa que vendia lãs, em Beja, junto ao terreiro dos Valentes, queria trespassar o negócio (a casa não tinha nome comercial). E foi assim que eu, o meu irmão e um outro sócio abrimos, a 5 de maio de 1975, a Casa das Lãs, com reclame luminoso e tudo”.
Assim, marca esta data o início da aventura empresarial do piense que nunca deixou de viver na sua terra natal, ainda que, desde há quase meio século abra, durante a semana, na cidade capital do Baixo Alentejo, a porta do seu comércio às nove da manhã, encerrando-a às sete da tarde.
“No início vinha de comboio para Beja, enquanto Pias teve ramal ferroviário. Depois fecharam-no [em 1990] e comecei a vir de carro, tal como ainda hoje o faço, 100 quilómetros todos os dias”.
“Senhor Francisco, bom dia. Tem cintas sem perna, daquelas da ‘cieme’ ou o que é?”
O início de atividade, a exemplo de muitos dos anos seguintes, revelou-se prometedor e entusiasmante para o negócio, recorda: “Naquela altura vendia-se bem, tínhamos sempre muita clientela, porque a cidade tinha cinco ou seis alfaiates e mais de 30 costureiras, para além de muitas outras pessoas que confecionavam em casa, em máquinas de tricotar. Todos estes negócios me compravam, diariamente, tudo aquilo que necessitavam. Não só as lãs, que me chegavam por comboio, vindas do Norte, da zona da serra da Estrela, da Covilhã e de Gouveia, mas também os fechos, botões, as fivelas, todos os acessórios precisos para se poder fazer saias, calças, blusas, casacos ou camisolas. De facto, nunca tive concorrência no meu negócio, as melhores marcas era eu que as tinha, todos os meus artigos eram (e continuam a ser) de qualidade. Mas agora vendem-se por todo o lado acrílicos e poliésteres… porcarias…”, acentua.
Da zona comercial do centro da cidade, zona da qual sempre foi espetador privilegiado, Francisco Carrapiço lembra o bulício de outrora, o número de casas comerciais, comparando as recordações com a realidade atual: “Estas ruas constituíam-se como uma zona comercial muito próspera, cheia de lojas. Algumas emblemáticas, como a Seis Dedos, a Jofer, os Armazéns Zé Graça, a Fetal ou a Casa António Zé, com clientes sempre a entrar e a sair. Havia muita gente na rua. Agora, a gente assoma-se à porta e às vezes não se vê ninguém – estes são tempos que não têm nada a ver com aqueles outros”.
“Bom dia, senhor Francisco. Já está uma brasa na rua que não se pode… Vinha buscar seis fechos de 40 centímetros, cremes ou brancos, tanto faz”
Da acentuada queda do comércio tradicional e, particularmente, do seu negócio, Francisco Carrapiço começou a dar-se conta a partir do término do escudo e de algumas profissões, sucumbidas ao êxito do prêt-à-porter, exibido nas grandes superfícies: “Para além do euro ter aumentado muito os preços dos artigos, as costureiras e os alfaiates deixaram de existir. O pessoal novo não quer saber disso, optou por outras ocupações. Há ainda quem faça umas costurazinhas, umas lãs no inverno, mas não tem nada a ver com o que era”.
Juntando a estas transformações económicas e dos hábitos de consumo, já mais “antigas”, a invasão da Ucrânia pela Rússia, “imediatamente a seguir à pandemia, que obrigou o comércio a ter, durante vários meses, a porta fechada”, veio dificultar ainda mais o negócio.
“Tudo piorou com a guerra, porque tudo ficou mais caro e porque há, agora, muita dificuldade em entregas. Eu não vendo mais, sobretudo, roupa interior, porque os artigos não me chegam, os fabricantes não têm material, principalmente, algodões, para confecionar as peças. Mas não sei se a guerra terá culpa de tudo, porque a limitação todos os dias aumenta e as coisas não virão todas de lá”.
Limitações que passam, “notoriamente”, pela diminuição do poder de compra, afirma Francisco Carrapiço: “Muitas vezes as pessoas ao perguntarem-me o preço de um artigo, imediatamente dizem que é caro, que o necessitam, mas que ‘este mês ainda não pode ser, logo se verá para o próximo’. Há falta de dinheiro e o que existe vai, em primeiro lugar, para a alimentação, e em segundo está a farmácia, porque toda a gente precisa de medicamentos. Só depois é que vêm as outras coisas, se puder ser…”.
“Senhor Francisco, como está? Tem acrescentos para soutiens?”
Desta forma, Francisco Carrapiço, a poucos dias de não tornar a abrir a porta do número 40, com pontualidade rigorosa, explica a sua decisão: “Faço contas e chego à conclusão que, com o dinheiro que gasto em gasolina, há dias em que as despesas são mais do que o lucro e que me compensava ficar em casa, em Pias. A idade também já vai pesando, mas se não houvesse esse decréscimo contabilístico equacionava ficar mais tempo”. Decréscimo que os seus colegas, de outros ramos comerciais, sentem de igual forma, “porque o problema é todo o mesmo, é a falta de dinheiro, que é o que movimenta tudo”.
Tal permite-lhe vaticinar, desgostoso, o contínuo decréscimo do comércio tradicional em Beja.
“As vendas têm vindo a piorar de ano para ano, muitas das lojas têm fechado e aquelas que se vão mantendo abertas têm cada vez menos clientes. Como forma de inverter esta previsibilidade – “espero enganar-me e desejo sorte aos meus colegas” – o lojista considera que deveria ser dada mais atenção ao comércio do centro histórico da cidade, proporcionando-lhe apoios fiscais, pois, “ao contrário do que sucede para os grandes, não há apoios nenhuns para os pequenos comerciantes, pagamos demasiados impostos”.
Sugere ainda outra medida a tomar na cidade: “Eu faço por chegar a Beja às oito e pouco da manhã para conseguir arranjar estacionamento numa zona em que não se pague, porque o parquímetro, o dia inteiro, é uma despesa grande. Deveria haver alguma regalia no estacionamento para quem tem comércio aberto. Não digo serem gratuitos, mas, pelo menos, existir alguma compensação”.
“Bom dia, senhor Francisco. Vinha buscar três novelos, da linha branca, número 12. Você agora no fim do mês fecha, não é?”
Por entre lãs de abundantes cores, botões, fitas de cetim lisas e de fantasia, lingerie de senhora, linhas de coser, de bordar e de crochê, Francisco Carrapiço, atrás do balcão tradicional, que incorpora um “metro” no tampo, para poder cortar à medida, reflete, comovido, sobre a inevitável mudança.
“Mesmo que a gente tente evitar, isto mexe sempre um bocadinho connosco. É verdade… é muito tempo, são muitos anos a lidar com as pessoas, clientes e colegas. Afeiçoamo-nos uns aos outros. Agora vou ajudar a minha mulher na loja de Pias [um comércio idêntico] e tratar da hortazinha que lá tenho. Fico também com mais tempo para ir visitar a minha filha e os meus netos, que vivem em Paço de Arcos. E hei de vir a Beja muitas vezes, não tenciono cortar totalmente com a cidade, da qual levo tão boas memórias e onde tenho tantos amigos. É assim a vida. Um dia havia ter que ser”. E esse dia é hoje.