Desde o início do ano que a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) acolhe 20 novos médicos, em formação geral e especializada. O “Diário do Alentejo” falou com quatro destes profissionais de saúde acerca da sua vinda para o hospital de Beja.
Texto | José SerranoFotos | Ricardo Zambujo
“Entrar com o pé direito é, tal como a minha mãe diz, mais de metade do caminho feito”, declara Ana Baía, médica interna de Ortopedia, aliando o adágio à forma como se tem sentido bem recebida em Beja, desde há cerca de um mês, altura em que iniciou a sua formação no Hospital José Joaquim Fernandes.
Licenciada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, é um dos 20 médicos internos (11 de formação geral e nove de formação especializada) que a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba) recebeu, no início do ano, na sequência do procedimento concursal de ingresso no Internato Médico 2024. Da região, a jovem médica, de 26 anos, só conhecia, até então, o Alentejo Litoral, onde fez, “por várias vezes”, férias. Dessa forma, Ana Baía tinha já a noção de um distinto acolhimento alentejano, ideia que, frisa, tem agora superado as suas expectativas. “Noto que as pessoas aqui são de sorriso fácil, genuíno, empáticas por natureza, disponíveis e muito prestáveis”, seja em contexto hospital, seja na cidade, em situações comuns do dia a dia. Para quem vem de fora, diz, “para quem se muda para tão longe de casa – sou de Portela, aldeia do concelho de Coimbra –, é muito reconfortante esta simpatia, que está ao nível das pessoas do Norte. E isto é um grande elogio que faço”.
Seria, precisamente, no Norte, nomeadamente, no Porto, no Hospital de Santo António, onde fez a formação geral – “gostei muito do ambiente hospitalar e estava perto de casa” –, que Ana Baía queria, como primeira opção, prosseguir para formação especializada. Contudo: “Quando soube que tinha sido colocada em Beja fiquei muito feliz, pelo feedback que tinha de colegas meus, acerca da ótima formação em Ortopedia, com muito bons profissionais a exercerem no hospital, e ‘corri’ para cá”. As expectativas não lhe têm sido goradas, referindo as vantagens de formação médica – que nos primeiros seis meses são de Cirurgia Geral, contemplando o acompanhamento de consultas, presença em bloco operatório e em contexto de urgência hospitalar – num hospital periférico, como o de Beja, face aos hospitais centrais, pelo facto de existirem nos primeiros, comparativamente aos segundos, menos internos por especialidade. “Somos muito bem instruídos e temos uma maior oportunidade de, por exemplo, estarmos mais perto da mesa operatória e de participarmos nos procedimentos cirúrgicos. Isso acaba por ser muito vantajoso porque, nunca descurando a teoria (temos sempre de estudar muito), num internato cirúrgico a prática é muito importante – tal como um carpinteiro que, para aperfeiçoar a sua arte, não lhe basta ler os livros sobre como se serra”.
Sendo o programa da especialidade de Ortopedia composto por seis anos, Ana Baía permanecerá em Beja, ao longo deste período, cerca de três anos e meio, não contínuos, com o tempo restante de formação em hospitais centrais, havendo a possibilidade de frequentar, durante alguns períodos, formação complementar especializada (fellowships) fora do País. Sobre a possibilidade de se fixar na região, após a conclusão da especialidade, a médica considera: “Estou no início de uma maratona. Por enquanto a cidade está-me a surpreender pela positiva, não tenho trânsito, não tenho dores de cabeça provocadas pelo barulho, não há poluição. É uma cidade agradável, mas… peca no resto”. Contrapõe, então, os handicaps da região, em particular, a falta de impulso cultural, sentida, e os deficientes acessos rodo e ferroviários. “Notei de imediato as estradas estreitas, sem marcações, com muitos camiões, inseguras. Por outro lado, é impensável termos de ir a Lisboa se quisemos ir de Beja até ao Algarve. Há colegas que escolhem Évora, em prol de Beja, pelas melhores acessibilidades que apresenta”, elucida.
A ideia de uma maior capacidade de ação prática por parte dos médicos internos em formação nos hospitais de menor dimensão, recebendo, ao mesmo tempo, uma maior atenção dos especialistas formadores, é sublinhada por Afonso Morais, de 28 anos, natural do Porto, licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, atualmente no primeiro ano de formação especializada, em Pediatria, mas médico em Beja desde fevereiro de 2024.
“A minha namorada, que também é médica, entrou, no ano passado, na Ulsba, para a especialidade de Psiquiatria – o serviço aqui é espetacular e a Mariana está a adorar o internato – e eu, ao mesmo tempo, tendo acabado o ano comum [ano de formação geral] em Évora, entrei como médico prestador de serviços na Urgência do hospital de Beja. Arrendámos uma casa, no centro, e estabelecemo-nos”. Antes disso, refere, “nunca cá tinha vindo, o que sabia era que a cidade tinha a torre de menagem mais alta da Europa, um facto várias vezes sublinhado por um colega bejense nos tempos de faculdade”. Para além do castelo, impactante, o que mais lhe saltou à vista, no início da estadia em Beja, “foi o despovoamento”, que continua a verificar, ainda hoje, um ano depois. “Quando cá ficamos, ao fim de semana, a partir de sábado à tarde até domingo, a cidade parece que morre, sempre muito parada, com pouca gente na rua…”. Mesmo quando comparada com Évora a discrepância revela-se-lhe notória, uma vez que, diz, os eborenses beneficiam de “um polo universitário mais desenvolvido”, da existência de várias “associações, onde muitos jovens se reúnem”, e de um maior número de atividades culturais e sociais diversificadas – “todos os fins de semana há uma festa, uma mostra, qualquer coisa”, o que contribui para que as pessoas saiam de casa, considera.
Em Beja, o quotidiano de Afonso Morais é, em grande parte, dedicado ao internato, seja em casa, na elaboração de trabalhos curriculares e artigos – “na especialidade é-nos exigido o cumprimento de determinadas metas” –, seja em contexto hospitalar, na Urgência Pediátrica, no acompanhamento de consultas, em reuniões de serviços, nas quais se discutem “os casos que estão no internamento”.
Revelando-se “perfeitamente satisfeito” com a vinda para a Ulsba, valoriza as vantagens que os hospitais do interior podem aportar aos médicos internos. “Acabamos por ter aqui muito mais apoio. Nos grandes hospitais há uma grande competição, digamos assim, porque, apesar de existir um maior número de casos, também há um maior número de internos. Aqui, por ser um meio mais pequeno – somos apenas dois internos no serviço –, não há tanto essa perspetiva. As pessoas conhecem-se melhor, há uma maior entreajuda e disso beneficio, conseguindo fazer um bocadinho de tudo e percebendo como é que cada uma das diferentes pediatras, sempre disponíveis para nós, atua, o que contribui para o meu desenvolvimento como médico”.
Após os cinco anos de formação especializada de internato médico de Pediatria, com uma permanência, intermitente, no hospital de Beja de dois anos e quatro meses – “tudo o resto tenho de fazer em outros hospitais” –, Afonso Morais elenca alguns fatores que podem colocar de fora a região como viável de aqui fazer, em casal, a sua vida. Se por um lado refere a dificuldade, nos hospitais distritais, de se prosseguirem determinadas subespecialidades – “pessoalmente interessa-me a área da oncologia e dos cuidados paliativos pediátricos, que, neste momento, não existe no hospital de Beja” –, e, por outro lado, expõe a existência de uma maior oferta de medicina privada no litoral e nos grandes centros urbanos – “em que um médico consegue conciliar mais a profissão entre o setor público e privado e, portanto, aumentar, assim, um bocadinho os seus rendimentos” –, Afonso Morais é também perentório relativamente aos acessos. “A região tem, a meu ver, um grande problema de acessos. Falta aqui uma autoestrada. Os meus pais vivem em Arouca, no distrito de Aveiro, e de Beja até lá, de carro, são cerca de cinco horas, e de transportes públicos, autocarro ou comboio, são sete horas para lá chegar. E para ir de comboio a Lisboa é uma viagem penosa. Beja, que é uma região muito acolhedora, com gente afável e muito orgulhosa da sua terra, beneficiaria muito se tivesse boas acessibilidades e uma boa rede de transportes e conseguiria atrair mais médicos para aqui se fixarem”, enfatiza.Também com o desconhecimento quase total da cidade – “conhecia-a, apenas, de passagem, de viagem para Espanha ou para o Algarve” – chegou ao internamento de formação geral, na Ulsba, Filipe Santos, de 24 anos, natural de Coimbra e licenciado, à semelhança do colega Afonso Morais, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
As coincidências entre colegas não se ficam pelo estabelecimento de ensino superior frequentado, pois a vinda para Beja prende-se, igualmente, com questões do foro sentimental. “Esta foi uma decisão, antes de mais, que foi tomada em conjunto com a minha namorada”, igualmente médica interna, diz, sendo o plano original – “sempre adorei o mar” – irem os dois para o Algarve. “Ela tinha melhor média do que eu e conseguiria ficar colocada em praticamente qualquer lado que escolhesse. E assim foi: a minha namorada ficou colocada no hospital de Portimão e eu na segunda opção que escolhi”. Com o amor a ditar – “exatamente, é isso mesmo” – a estratégia, de forma a, pela proximidade relativa entre as cidades, poderem “passar os fins de semana juntos”.
Do pouco que ainda conhece de Beja – “não me aventurei muito mais para além do centro” –, a cidade tem-se-lhe apresentado “pacata”, não querendo tal dizer, “de todo”, que dela tenha experienciado uma má impressão. “Sinto que aqui existe muito mais interação entre as pessoas e cruzamento de vivências do que em cidades grandes, como Lisboa – estudei lá seis anos e já estava farto daquele ‘caos’, onde há mais individualidade, onde todos estão focados na sua própria vida”. Do seu trabalho hospitalar, o médico interno enaltece, tal como os seus colegas, as vantagens que o quotidiano profissional do hospital de Beja oferece. “Escolhi fazer cirurgia logo no primeiro estágio do internato, sendo que a equipa que nos tutela tem sido extraordinariamente recetiva para connosco [médicos internos], podendo nós ajudar no bloco operatório, no internamento… ou seja, nós temos, assim, a possibilidade de efetivamente fazer aquilo que mais gostamos. Aqui há disponibilidade, até para os internos do ano comum, que ainda não estamos, sequer, na especialidade, de podermos participar numa cirurgia, coisa que, dificilmente, acontecerá num hospital central. Como é uma comunidade [hospitalar] mais pequena, toda a gente se conhece, há mais entreajuda, mesmo da parte dos médicos mais velhos para connosco. E isso é, sem dúvida, muito bom para nós, em termos formativos”.
Daqui a sensivelmente um ano – o internato médico corresponde a um processo de formação médica especializada, teórica e prática, com uma duração de 12 meses –, Filipe Santos pretende entrar para Ortopedia: “Se tudo correr bem, será para essa especialidade que eu irei, embora me sinta bem em qualquer área cirúrgica”. Dependendo a possibilidade de colocação que advirá da nota que obterá na Prova Nacional de Acesso, feita em novembro de 2024, exigida a todos os médicos para acederem a uma vaga de médico especialista em formação, e da ponderação da decisão “tomada a dois”, Filipe Santos não descarta a hipótese de, a exemplo da sua colega Ana Baía, vir para Beja, fazer a sua formação especializada, aludindo, contudo, à extemporaneidade da deliberação – “é muito cedo para pensar nisso”.
O mesmo sentimento de poder usufruir de uma mais-valia, por fazer a formação geral em Beja, é partilhado por Joana Baião, natural de Beringel, licenciada, também, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. “Coloquei o hospital como minha primeira opção, uma vez que já aqui tinha feito, ao longo dos seis anos do curso, estágios curriculares”, nomeadamente, no serviço de Pediatria e no serviço de Cirurgia. A decisão tomada foi alicerçada na proximidade a casa – “aqui estou na minha zona de conforto” – e nas profícuas vantagens já experienciadas, que se lhe continuam a revelar. “Nós participamos um bocadinho em todas as vertentes do serviço de Cirurgia, onde me encontro, atualmente, a receber formação. Vemos os doentes na enfermaria, assistimos às consultas e tomamos contacto, diariamente, com prescrições de medicações, exames, análises. Temos um dia em que somos integrados na equipa da Urgência e vamos, também, ao bloco operatório, normalmente, uma vez por semana, acompanhando e ajudando os nossos tutores em várias cirurgias – é uma ajuda que damos, a quem está a operar, ainda muito básica, mas que faz falta”. Uma participação, a um nível difícil de existir num hospital central, onde o número de médicos internos é muito superior e, por isso, as oportunidades da aplicação prática do conhecimento apreendido são mais reduzidas, manifesta.
Relativamente ao seu futuro, após a conclusão do internato médico, Joana Baião não exclui a possibilidade de tentar optar por Beja, dependendo da especialidade pela qual se decida, “porque aqui as opções que há, em termos de especialidades médicas, não são tantas como as existentes em outros hospitais”. Depois disso, com a especialidade já tirada, regressar à terra revela-se, ainda apenas, uma possibilidade. “Aqui dá para ter uma vida mais tranquila, há algumas vantagens. Mas também gostei de estar em Lisboa, num ritmo completamente diferente. Não sei…”.
A vinda de médicos para a Ulsba
A receção de internos é, “sempre, uma boa notícia”, acentua Vera Guerreiro, diretora do Internato Médico da Ulsba, uma vez que contribui “significativamente para a melhoria dos cuidados aos doentes” da unidade, “tanto pelo trabalho que desenvolvem durante a sua formação e permanência na instituição, como pelo rejuvenescimento e estímulo que trazem aos próprios serviços”. Vera Guerreiro acentua, no entanto, a dificuldade de um médico, “que não tenha ligação familiar com a região ou que não tenha realizado aqui a sua formação médica pós-graduada”, em escolher esta entidade, integrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS), para se fixar profissionalmente, sendo que “apenas uma pequena proporção dos médicos formados na Ulsba” permanece na região após a conclusão da especialidade. “Penso que o atraso socioeconómico da região pesa muito na decisão dos jovens médicos ao escolherem a localidade onde se vão fixar de forma permanente. A escassez de oferta de trabalho para os cônjuges, a impossibilidade de complementar a atividade do SNS com outro tipo de atividade privada e os constrangimentos nas acessibilidades são alguns dos fatores que considero terem maior influência. As próprias instalações datadas do hospital, que esperamos ver agora corrigidas com o novo projeto, não têm sido um incentivo à fixação de jovens médicos. Ainda que a qualidade de vida que a cidade proporciona e o ambiente de trabalho existente na Ulsba tenham contribuído para a decisão de alguns destes jovens profissionais prosseguirem aqui a sua carreira, permitindo o rejuvenescimento de alguns serviços e o desenvolvimento de novos projetos, este número não tem sido suficiente para atingir o número de quadros médicos desejados na maioria das especialidades”, conclui.