Diário do Alentejo

O que é hoje o comer? Jantar de couve

21 de dezembro 2024 - 08:00
Amália Horta | 74 anos | Monte das Viúvas (Almodôvar)
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Texto José Serrano 

 

A serenidade acolhedora que se sente no interior da típica cozinha alentejana contrasta com a fúria da tempestade que desde a janela podemos admirar, se afastarmos os cortinados de renda branca que a alindam. A água diluvial que cai lá fora e o trovejar que, de imediato, sucede à luz dos relâmpagos, iluminando mais a manhã, não desviam a atenção de dona Amália da função gastronómica a que está dedicada. “Chove bem, faz falta…”, observa, baixinho, enquanto dá volta ao lume de azinho que perfuma o espaço, avivando-o, espicaçando com a tenaz as brasas, aconchegando-as, ardentes, em redor da panela assente no chão de tijoleira, por debaixo da chaminé. Dentro do recipiente de barro – “aqui, a comida vai cozendo devagar e fica com outro sabor, bem melhor do que se for na panela de pressão, não tem nada a ver” – está parte da carne da última matança, cujo ritual se cumpre, na família e na aldeia, ano após ano, entre dezembro e janeiro. “Vamos mantendo a tradição. O porco foi criado, engordado, morto e conservado aqui. Esta é a melhor carne que podemos comer”, diz. A carne do porco – “uns ossos, umas entremeadas, um toucinho, uma linguiçinha … enfim” –, é uma das duas estrelas da iguaria que está ao lume, a par do legume que dá título ao prato: jantar de couve. “Como é que eu faço? Então: de véspera, tiro a carne do congelador e ponho-lhe sal. Fica toda a noite a salgar, para ficar mais saborosa. Depois, no dia seguinte, passo a carne por um pouco de água morna e meto-a na panela, coberta de água até acima. E vai cozendo… a gente vai sempre destapando, vendo se tem falta de água, falta de sal. E tem de se ir provando… Quando a carne estiver quase cozida, adiciono a chouriça preta e a couve (é a couve normal, desde que não seja coração, nem lombarda), que também foi ‘criada’, aqui, na minha horta. No fim da cozedura, adiciono um bom raminho de hortelã. O ‘antigo’ é assim, não tem mais nada”. A quem se prestar a fazer o comer, aconselha: “É não inventar muito. Quanto mais natural e tradicional melhor, mais saboroso. Não comecem a inventar com carne disto, com carne daquilo, com caldos [k…] e com essas coisas que não valem a pena. Em toda a minha cozinha eu uso sempre mais o básico e natural”.A simplicidade revelada por dona Amália transporta, contudo, (disso fomos testemunhas felizes), uma pródiga riqueza gastronómica de sabores, texturas e aromas. Um conjunto harmonioso assente na excelência dos produtos, “caseiros, de qualidade”, no vagar que é dado à confeção do prato – “aqui não há pressas, isto tem de ficar ao lume umas boas quatro horinhas” –, na inata transmissão do conhecimento – “sempre vi a minha mãe e as outras mulherzinhas mais antigas fazendo o ‘jantarinho de couve’ e eu fui aprendendo” –, e no amor à arte da gastronomia. “Adoro cozinhar. Sozinha com os tachos estou bem. Às vezes o marido pergunta-me se preciso de ajuda… Não quero cá ninguém, não senhor”, frisa. Com permissão a acompanhá-la na cozinha só as modas alentejanas que dona Amália, cantadeira e orientadora do grupo As Mondadeiras de Santa Cruz, vai, afinadamente, fazendo jus ao seu nome, trauteando. Adornando de património os quatro cantos do lugar – Ó lindo Alentejo/ meu berço querido/ espelho da nação/ província do pão/ és terra do trigo –, destapa, uma vez mais, a panela de barro vermelho. Revolvendo, lentamente, com a colher de pau, as carnes, “tem de se ir mexendo”. Provando, não sem antes o soprar, o caldo que ferve. Aprovando, por fim, com o olhar e um sorriso, o gosto. “Se calhar vou cortar mais um bocadinho de couve. Tenho sempre medo que seja pouco…”. Pouco (“mas acaba sempre por sobrar”) para a mesa cheia que, junto ao lume, costuma acolher o casal, os dois filhos, as noras, os quatro netos e os privilegiados amigos da casa que podem desfrutar do manjar festivo que reforça o convívio e marca o início do tempo frio. “O jantar de couve faz-se de inverno, com as matanças [do porco], com as couves que há na horta. De verão não se faz este tipo de cozido, porque o lume não se acende. Agora já vai apetecendo um foguinho e vamos tendo saudades destas comidas”. Com as terrinas de louça, transbordando de tentação, pousadas na mesa da cozinha, centro do lar em dias de confraternização, “fala-se da vida, do tempo que passou, de quando fomos emigrantes… Fala-se de tanta coisa”, diz Dona Amália, servindo em cada prato o jantar de couve, fumegante. A cada repetição – “vou tirar só mais um bocadinho” – elogia-se a cozinheira – “basta que veja que estão a comer com agrado. Não preciso que me digam ‘ah, está muito bom, muito bom’. Mas, se me disserem, fico contente, claro” – e brinda-se aos encontros. “Isto para mim é tudo. Não me importa cozinhar para cinco, seis, 12 pessoas, sejam quantas forem. Eu gosto de muita gente à mesa. Vê-la composta é uma alegria. Gosto de fazer e, então, gosto que muita gente coma. Sim, senhor”. Por tal paixão, dona Amália manifesta a importância da preservação do património gastronómico regional, confessando, contudo, que a transmissão da receita, por si às gerações mais novas, ainda está por acontecer. “Se as minhas noras quiserem aprender eu tenho gosto em lhes ensinar. Mas esta malta mais nova já se sabe... não é tanto de comidas muito elaboradas. Mas, sim, gostava que elas um dia fizessem o jantar de couve e dissessem: ‘faço como a minha sogra fazia’. Ainda não perdi a esperança, mas, até agora, o que me pedem (quando cá não estão) é: ‘se sobrar mande’”. A gargalhada contagiante de dona Amália ecoa feliz pela cozinha, tornando o já tão simpático lugar ainda mais acolhedor. Lá fora, a bátega de água persiste. “Faz falta…”.

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