Diário do Alentejo

Aldeagar

23 de agosto 2025 - 08:00
Nova rede digital de descoberta de 15 aldeias do concelho de BejaFotos | Ricardo Zambujo

A partir da próxima segunda-feira, dia 25, a Câmara Municipal de Beja terá à disposição a aplicação móvel (app) “Aldeagar”, quepermitirá aceder à história e à memória de 15 aldeias do concelho, com conteúdos de realidade aumentada, vídeos e narrações orais.

 

Texto | Nélia Pedrosa Fotos | Ricardo Zambujo

 

Teria uns seis, sete anos, quando começou a ouvir o avô Adriano, barbeiro de profissão, contar historias e lendas da tradição oral portuguesa, depois de a ir buscar à escola primária nos dias de inverno. “O meu avó era analfabeto mas contava-nos histórias para nos entreter. Coisas que foi ouvindo. E eu tive sorte porque havia outros avós que não tinham essa tendência”, conta Zulmira Palma, de 58 anos, “nascida e criada no Penedo Gordo”. Uma das lendas que mais tem presente, e que já fez questão de transmitir aos filhos – como forma de “não deixar morrer algumas tradições –, é a da Fonte das Cavadas, um dos símbolos da sua aldeia natal, mandada construir por Luís Filipe Fernandes em 1876. Diz a lenda, relembra a assistente administrativa, que “um touro e uma serpente”, com o objetivo “de delimitar o seu terreno para se sustentarem”, acabaram por travar “uma batalha”, tendo sido “transformados em fonte por uma fada”.

 

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Esta lenda, narrada por Zulmira Palma, é uma das que consta do projeto “Aldeagar”, uma nova rede digital de descoberta das 15 aldeias do concelho de Beja, promovida pela câmara municipal, que “une tecnologia, património oral e turismo sustentável”, e cuja apresentação pública está agendada para hoje e amanhã, dias 22 e 23, em cada uma das localidades. Financiado pelo programa Transformar Turismo (Turismo de Portgal), e com conteúdos desenvolvidos por uma equipa multidisciplinar, o projeto “de valorização do território rural” está “assente em áudio-guias narrados e experiências de realidade aumentada, acessíveis através de painéis informativos com QR codes instalados em cada uma das 15 aldeias”.

O mentor e um dos coordenadores do projeto, André Tomé, explica ao “Diário do Alentejo” que a ideia começou a ganhar forma há alguns anos, aquando da criação do Centro Unesco de Beja, com o objetivo “de começar a valorizar mais o património, as pessoas e as histórias que as aldeias de Beja têm para contar”. Na ocasião chegou a ser estabelecida uma parceria com o projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”, de Tiago Pereira, tendo o realizador e documentarista se deslocado a algumas das aldeias do concelho, “onde filmou algumas dessas pessoas, uma parte delas, infelizmente”, já falecida, frisa André Tomé.

 

“Querermos [com o projeto] criar mais algum valor naquilo que pode ser a oferta turística do território, neste caso do concelho de Beja, mas, ao mesmo tempo, ter uma atenção para com as pessoas que habitaram e que ainda habitam estas aldeias e que, de alguma forma, acabam por ser um pouco esquecidas… sabemos que estão lá, são muitas vezes alvo de conversa para algumas pessoas que as conhecem, mas são pouco conhecidas”, adianta o arqueólogo, recordando que em 2019 a autarquia lançou os roteiros “Pelos campos de Beja – Histórias que convidam à visita” e “Pelas ruas de Beja”, “roteiros turísticos um bocadinho fora da caixa, porque têm as ilustrações da Susa Monteiro, que são novamente utilizadas neste projeto [‘Aldeagar’], porque são magníficas, e vão muito ao encontro daquilo que é o tom que nós pretendemos”, e nos quais “já foi possível reunir alguns dados que, por vezes, não eram conhecidos das pessoas, alguma história curiosa”, sendo que foi “um pouco esse o espírito” que seguiram para a conceção desta nova rede digital de descoberta das 15 aldeias, um produto diferente “do que há por todo o País”.

“Ficou-nos esta ideia desde sempre, de tentar fazer uma coisa um pouco mais substancial, que tivesse um outro corpo, e, entretanto, surgiu a oportunidade com uma candidatura que o Turismo de Portugal abriu. Candidatámo-nos e obtivemos financiamento e começámos a desenvolver o projeto, com um financiamento reduzido. Vou perder um bocadinho a modéstia e dizer que fomos muito ambiciosos e acabámos por conseguir chegar àquilo que queríamos, obviamente que poderíamos ter feito mais, poderíamos ter recolhido muitas mais histórias, mas é um projeto que acho que pode estar sempre em aberto, pode ser sempre enriquecido”. Num “mundo ideal”, considera o coordenador, “todos os meses deveríamos lançar uma nova história”.

 

Projeto também pensado para a diáspora alentejana A partir da próxima segunda-feira, dia 25, os interessados poderão então aceder à aplicação móvel (app) “Aldeagar”, gratuita e disponível para Android e iOS, através de um QR code, existente em cada aldeia, ou dos sites aldeagar.pt e visitebeja.pt. Feito o download da app, serão apresentadas as 15 aldeias do concelho, “organizadas por proximidade” em relação à localização de quem está a aceder à aplicação. Selecionada a aldeia, a pessoa “tem logo acesso a três conteúdos”. O primeiro é uma narração, “comum a todas as aldeias, em que se conta a história da localidade, dos monumentos”, e em que se faz um convite para que as pessoas façam um determinado percurso. O segundo e o terceiro, “que podem ser diferentes de aldeia para aldeia, contam histórias específicas, que têm mais a ver com a tradição oral, com lendas”, explica André Tomé, frisando que foi criada, também, por Ana Santos, da cooperativa cultural Chão Nosso, entidade também responsável pela conceção e desenvolvimento de conteúdos, “uma paisagem sonora para cada aldeia”, mais a pensar em quem “acede à app em casa” ou noutro local distante da localidade. “A Ana foi a cada uma das aldeias gravar vários sons. O som de um pequeno ribeiro com a água a correr, os barulhos que se ouvem no café, o barulho ao fim de tarde na aldeia, o galo a cantar, e cada aldeia tem, no fundo, essa assinatura sonora”. Este conteúdo demorará, no entanto, frisa o responsável, “alguns dias a estar disponível, devido a alguns atrasos na masterização”.

Na app serão igualmente disponibilizados vídeos realizados no decorrer dos passeios pelas aldeias, levados a cabo durante a pandemia de covid-19, um mapa onde estão assinalados “pontos de interesse, sobretudo, monumentos”, e os já referidos conteúdos de realidade aumentada, uma tecnologia que permite, neste caso, “projetar uma pessoa num sítio específico, como se ela estivesse mesmo lá”. E André Tomé dá o exemplo da “taberna do tio Augusto”, na aldeia de São Brissos. “O Tio Augusto por acaso está lá muitas vezes, mas daqui a uns anos – espero que muitos – poderá não estar, infelizmente. No fundo, há um dispositivo de realidade aumentada em que vemos o Tio Augusto, a falar em frente da taberna. Depois, obviamente, estando lá o Tio Augusto, podem entrar e falar com ele e é muito melhor do que ver este conteúdo de realidade aumentada”.

O arqueólogo sublinha, ainda, que o projeto está pensado, também, para “a diáspora alentejana”, porque “há muitas pessoas que nasceram nestas aldeias, cresceram nestas aldeias, depois foram para a margem sul, para outros sítios do País, ou para fora até, mas a memória que têm ainda destes sítios é muito forte, é muito viva, e há muita gente que tem páginas de Facebook e que continua, quase todos os dias, a escrever poemas sobre Beja e sobre essas mesmas memórias”. “O nosso objetivo é que as pessoas possam ir às aldeias e que estas histórias sejam escutadas no sítio, porque faz mais sentido, mas também podem ser escutadas em casa, e isso também é importante, porque permite que quem está na diáspora, ou quem tenha curiosidade sobre o património de Beja, possa também descobri-lo. Estes três conteúdos que disponibilizados também funcionam quase como um podcast”.

Apesar de saber que “a tradição oral em Portugal sempre foi muito forte”, André Tomé admite que continua a “ser surpreendido pela vitalidade que estas aldeias tiveram e pelas pessoas brilhantes que, mesmo sem saber ler e escrever, eram imensamente criativas, capazes de poesia extraordinária, de construir relações lógicas fantásticas”. Às vezes, defende, é somente necessário “um pequeno estímulo” e “dar-lhes os instrumentos”.

O projeto será divulgado, para já, “através das redes sociais” e também dos roteiros pelas aldeias de Beja, que serão retomados em meados de setembro. No início do próximo ano será inaugurada uma exposição no castelo de Beja, em que os visitantes “poderão aceder aos áudios, às ilustrações e também às fotografias que o Álvaro Barriga [cujo blogue de fotografia ‘Aldeagar’ inspirou o nome do projeto] e o Zé Maria Barnabé fizeram ao longo de vários anos destas aldeias”, revela André Tomé.

 

“É um privilégio poder ainda ir beber às fontes orais” João Soares, de 92 anos, antigo maquinista da CP e presidente de junta nos anos Noventa, outro dos informantes do projeto “Aldeagar”, é, atualmente, um dos grandes conhecedores da história da freguesia de Nossa Senhora das Neves, principalmente, do último século, até por razões familiares. O pai, Luciano Batista Soares, foi o último regente das Neves no tempo do Estado Novo. “Homem destemido, muito à frente do seu tempo”, recorda o filho. Para além disso, João Soares nasceu e viveu até ao início da idade adulta na “espetacular” quinta da Morgeralda – de que o pai era rendeiro –, quinta essa que apresenta numa das suas entradas o Pórtico de São Fernando, também conhecido por São Fernandes (nomes que os locais davam a Santo António), um dos locais mais emblemáticos da aldeia, e onde, “segundo a tradição”, antigamente “se realizava um grande festa” dedicada ao referido santo. Por esse arco, escreveu Joaquim Figueira Mestre na obra A Quinta da Morgeralda e os Seus Azulejos (Beja, 1985), “passava a canada de Serpa, que ligava a serra de Serpa com os campos baixos dos arredores de Beja”, e “era por aqui que os pastores e os seus enormes rebanhos passavam no seu movimento de transumância”.

 

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“Não fica bem falar nas pessoas da família, mas sou obrigado a falar do meu pai. Ele foi a primeira pessoa da freguesia a aprender a ler. Como não havia escola, e o meu avô dizia-lhe que não tinha condições para ir para a escola em Beja, foi pedir ao padre Veloso que o ensinasse. [Já enquanto regedor] – por indicação do presidente de junta de então – conseguiu para as Neves um apeadeiro e distâncias próprias, pois tirava-se o bilhete para Baleizão e andavam só sete quilómetros [de Beja às Neves]”, diz o antigo maquinista. É igualmente ao seu pai que se deve a fundação da casa do povo, “onde instalou um gabinete para o médico, uma biblioteca e onde se passaram a fazer os bailes que antes tinham lugar nos montes”. E apesar de ser regedor “livrou muitas pessoas de irem presas, mandando-as emigrar porque a PIDE andava atrás deles”. Não raras vezes, também, “chegava ao governo civil, dava duas punhadas na secretária, e dizia: ‘Senhor governador, se eu não levar daqui uma autorização para ir buscar mantas para distribuir pelos pobrezinhos da minha freguesia, que não têm com que tapar os filhos, parto isto tudo’. Eram mantas, farinha, arroz, açúcar”. E nos “tempos das crises de trabalho, quando chovia muito e os proprietários não tinham nada para as pessoas fazerem, ia falar com os lavradores, para lhes pagarem à mesma, porque caso contrário morreriam à fome, e quando terminasse a crise já não haveria pessoas para trabalhar”. João Soares reforça: “O meu pai, durante mais de 30 anos, defendeu o bem-estar das pessoas da freguesia e isso é muito importante. Era o governo do Salazar, mas isso era lá problema deles. O meu pai não tinha nada a ver com o Salazar ser isto ou ser aquilo. Ele tinha era com a freguesia. O meu pai deixava de olhar pelo trabalho dele e das pessoas que trabalhavam para ele [na quinta] para ir revolver problemas da freguesia, o que hoje nem toda a gente está disposta a fazer”. Os períodos de miséria vividos, no século passado, mas em Mombeja e Beringel, também são relatados por Raimunda Soares, de 90 anos, no projeto “Aldeagar”. Como o “tempo das senhas”, durante o Estado Novo, “em que chegando àquela conta já não vendiam mais pão a ninguém e havia muitas pessoas que andavam com fome”. Não era o caso da sua família, “graças a Deus”, que vivia num monte entre Mombeja e Ferreira do Alentejo. Um dos irmãos, “com uns 15, 16 anos, andava guardando porcos e ganhava comedias: 50 quilos de farinha, cinco litros de azeite, cinco litros de grãos, um quilo de toucinho e 50 escudos”. O pai “semeava uma saca de trigo todos os anos” e, se fosse um bom ano, “a seara dava uma remessa de sacos de trigo”. Raimunda, a irmã e a mãe dedicavam-se às lides domésticas e à costura. Como tinham “fartura de farinha”, a mãe chegava “a amassar todas as noites”, depois de “um dia de trabalho”, para vender pão a quem já tinha esgotado as senhas. “Havia pessoas que tinham uma casa de família. Havia lá uma mulher que tinha nove filhos. Com o marido e ela eram 11 pessoas. Comendo ali a uma mesa… fingiam que comiam…”, recorda Raimunda Soares.

 

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“Para bem dizer”, reforça, “havia quem estivesse mais mal” do que a sua família. É certo que “não havia fortunas nenhumas”, mas o pai e os irmãos tinham sempre trabalho, o que “já era bom”. “Todos os dias iam para o monte. Chovia muito, muito. Chegava a chover seis meses a fio. Ninguém ganhava um tostão. Mas o meu pai ia para o monte e lá havia sempre o que fazer. Entrando lá no monte tinham o dia certo”. Ao contrário de “muita gente, coitadinha, que não ganhava um tostão” e que “quando o tempo segurava, e iam trabalhar, o dinheirinho que ganhavam era para pagar às mercearias, porque durante o tempo que não trabalharam viveram de fiado”.“Aprende-se muito com esta gente maior, mas não são só as histórias, os contos, há uma outra forma de olhar o mundo… às vezes o importante não são os contos ou as pequenas narrativas que eles contam, são as suas próprias histórias, a suas próprias experiências de vida”, considera, por sua vez, Cristina Taquelim, também da cooperativa cultural Chão Nossa, sublinhando que “é um privilégio poder ainda ir beber às fontes orais, mulheres das idades da Raimunda”, e “poder deixar isto de alguma forma documentado”. E prossegue: “São bibliotecas vivas que nos interessam. Eu sou uma mulher das bibliotecas. São livros vivos. E é um privilégio poder trabalhar em torno da memória no mundo em que a memória cada vez tem menos peso. A gente precisa de saber de onde vem para construirmos o caminho. E a Raimunda dá-nos esse chão. A Raimunda, a Mariana Bicho [informante da freguesia de Salvada]. As pessoas mais idosas das comunidades com quem nós tivemos o privilégio de conversar. Vão-nos dando esse chão. Calibrando o quê? No caso preciso do projeto, calibrando a informação da natureza histórica com outra de natureza mais ficcional, o ir buscando elementos de património. O Alentejo é feito de tudo isso. E é bonito que o projeto traduza essa diversidade”.

 

A conceção e desenvolvimento de conteúdos do projeto, para além de André Tomé, Cristina Taquelim e Ana Santos, contou ainda com a contribuição de Celina da Piedade. As locuções estiveram a cargo de José Serrano e também de Cristina Taquelim e Celina da Piedade (português), de Sofia Maul (inglês) e de Mili Vizcaíno (espanhol).

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