Encarar a dureza da sua história
Pouco tempo após ingressar no CAES, D. foi uma das pessoas propostas para integrar também os laboratórios artísticos da cooperativa cultural Chão Nosso.
Ao início, segundo Cristina Taquelim, uma das mediadoras, na área da narração e da escrita, “foi das pessoas que mais demorou a entregar-se”, mostrando “um distanciamento” e uma desconfiança “em relação às propostas e ao projeto” e “absolutamente compreensível de uma mulher que só tem direito a desconfiar desde pequenina”.
“Mas não se manteve sempre assim, foi abrindo, e à medida que a sua vida afetiva [com um dos utentes do CAES] se foi resolvendo no exterior, o trabalho e a entrega dela no laboratório também foram melhorando.
Lentamente foi-se ultrapassando, foi começando a ver sentido, a ver que as pessoas estavam com as histórias partilhadas e comuns, que estavam a superar as dificuldades, estavam a pôr-se em causa, a desafiarem-se e isso também lhe criou uma base de confiança para ela o poder fazer connosco”, refere.
De entre os trabalhos expostos, D. concretizou dois. Além de uma peça sobre a “mentira”, levou a cabo o seu autorretrato e a frase que o acompanha – “Na rua não há destino, só há caminho” –, o que, para Cristina Taquelim, demonstra “claramente” a forma como “ela se sente fragmentada, com pedaços de tudo o que viveu sem estarem integrados” e sem perspetiva de futuro.
“A história da D. é dura, tem contornos rocambolescos, nos quais ela se enreda em absoluto. Se houvesse uma palavra para falar dela seria ‘revolta’, [porque] ela é uma mulher que ainda não se reorganizou internamente, aliás, o autorretrato que faz é um exemplo muito claro de uma pessoa fragmentada, com pedaços, ruturas, cortes e muito dividida entre a verdade e a mentira. Aquele autorretrato que a D. faz diz tudo, quem a conhece sabe que estes trabalhos não surgem por acaso, surgem porque está com perguntas, com questões, com ansiedades, com interrogações dentro de si e este contexto artístico e criativo ajuda a emergir e a dar forma”, revela.
Do grupo dos 10 participantes, D. foi a mulher que experienciou, durante mais tempo, o sentimento de “estar na rua”. Ao “DA”, tendo em conta o seu ceticismo característico, pouco ou nada falou sobre o assunto, mas durante os três laboratórios – “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração”, “Click – Narrativas Visuais” e “Insilenciáveis – Narrativas de Memória” – foi deixando transparecer que “se a rua é difícil para um homem, é muito mais difícil para uma mulher”. “Ela tem uma experiência da rua [relacionada] com o abuso, a agressão e o medo.
E há coisas que nós não pensamos, [por exemplo], como é que uma mulher que vive na rua faz a sua higiene íntima quando está menstruada? Nós não pensamos nisso, não pensamos que, para além das outras coisas todas, [existem] mais estes aspetos e foi ela que numa das conversas chamou a atenção para isso, [o facto de] ir a um café e pedir para usar a casa de banho nessas alturas”, explica a mediadora. E acrescenta: “E isto são coisas que vão fragmentando o que há de positivo que estas pessoas têm dentro, é uma vida a moer, a moer, a moer, a desfazer e sem se ver construir nada. E isto é um bocadinho o momento em que a D. está, ainda não consegue ver um projeto de vida a desenhar-se e não consegue organizar a sua história anterior.
E estamos neste impasse”.
A psicóloga de formação recorda ainda um episódio marcante que viveu com D. no banco de jardim da Santa Casa da Misericórdia de Beja, local onde decorriam os ateliês, em que a jovem lhe disse algo “que não estava à espera” e que lhe “ficou na cabeça”. “Disse que não sabia onde parava o sangue dela.
A minha pergunta é como é que uma expressão tão forte sai da boca de uma miúda que tem tanta dificuldade de expressão?”. Cristina Taquelim percebeu, mais uma vez, que D. vive constantemente com “dor” e que “anda à procura de si pelas ruas mais escuras”, porque desconhece a sua família biológica, vive com o trauma dos abusos sexuais e físicos e angustiada por estar longe da filha.
Para a mediadora, ainda que os laboratórios artísticos sejam uma “ferramenta” de “corresponsabilização” em que é possível ver aparecer novos comportamentos e formas de encarar aspetos da vida, é preciso, simultaneamente, que haja “um trabalho terapêutico que não é feito nestes grupos”, uma vez que, “se a pessoa está deprimida toma-se um medicamento, se a pessoa está agressiva ou psicótica faz uma medicação, mas um trabalho psicoterapêutico regular sobre as questões dos afetos e das personalidades o Estado português não consegue dar resposta e, obviamente, quem dá esta resposta pelo Estado não tem recursos para ter um técnico a trabalhar diariamente com pessoas como a D., que precisam mais do que uma psicoterapia uma vez por mês ou de dois em dois meses quando o hospital chama”.
Ainda assim, Cristina Taquelim salienta que é preciso continuar a investir em todas estas pessoas para que deixem de continuar dependentes de assistência e conseguiam, efetivamente, “ganhar outros hábitos, outras formas de olhar para o universo do trabalho, para si, para a sua história e para as suas prioridades”, conquistando a sua autonomia.
“Pensarmos que com este vazio da infância, comum a praticamente todos eles, e estas vidas fragmentadas, como é que esta gente sobreviveu até à vida adulta?”, questiona.
Para a jovem, os meses em que esteve envolvida com o projeto da cooperativa Chão Nosso foram uma surpresa “boa”, em que percebeu que, ainda que a vida teime em ser dura com ela, é possível reerguer-se.
“Eu não acreditava na minha capacidade de fazer alguma coisa, mas surpreendi-me a mim própria. Achava que não tinha valor, mas no fim correu bem e aprendi a controlar as minhas emoções. Não é fácil, é um processo doloroso. Já caí tantas vezes, mas levantei-me sempre e sei que voltarei a cair, porque, a errar ou não, estamos sempre a aprender”, assegura D.