Diário do Alentejo

“Não faz sentido” falar-se em guetos

25 de fevereiro 2024 - 12:00
Câmara de Beja, proteção civil e associação Estar são as entidades responsáveis, no terreno, pelo alojamento temporário de imigrantes

O centro de alojamento temporário noturno de Beja alberga, de momento, 35 imigrantes, homens, entre os 19 e os 55 anos, que deixaram a Argélia e Marrocos em busca de uma vida estável e de uma oportunidade financeira para ajudar as suas famílias. O intuito, ainda que a data limite seja 15 de março, é que “a grande maioria” dos que lá pernoitam consiga trabalho e casa antes do início do Ramadão.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de SousaFoto | Ricardo Zambujo

 

Mohamed tem 25 anos. Há dois meses deixou Marrocos para trás com vista a encontrar uma vida melhor, estável financeiramente, que o permitisse “ajudar a mãe e a família”. Sem trabalho, face à sazonalidade das campanhas agrícolas, sujeitou-se a ocupar um dos pisos do antigo “edifício da Refer” destinado à sua nacionalidade. Ao “Diário do Alentejo” (“DA”) explica, num espanhol mesclado com português, que antes de ser transferido para o centro de abrigo temporário noturno, localizado no Estádio Flávio dos Santos, em Beja, passou “muito frio” e que “não havia comida, não havia muitas coisas”.

“Muitas pessoas vêm para aqui procurar a vida e ajudar quem está em Marrocos, [porque lá] não é igual, aqui trabalha-se um mês e consegue-se ajudar. [Quando estava na ‘Refer’] sabia que estava num caminho igual, mas agora estou muito, muito bem”, garante, enquanto sorri.

Mohamed é um dos 35 imigrantes que atualmente ainda se encontram a pernoitar nos contentores do plano de contingência do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de Beja (Npisa).“Tenho onde tomar banho, onde dormir e agora só quero procurar trabalho como os outros”, acrescenta.

“A Portugal chegam diariamente muitas pessoas e encontram no Alentejo, principalmente, em Beja, a solução dos seus problemas, [uma vez que] pensam que chegam aqui e têm tudo porque pagaram 10, 12 ou 14 mil euros à rede traficante com a garantia que chegam à cidade e têm documentos, casa e trabalho e só têm de ligar um número de telemóvel, [mas este] nunca funciona. Estamos a falar de miúdos de 19, 20 e 21 anos num país em que não conhecem a cultura, a língua e ninguém e que, de um momento para o outro, se veem completamente desprotegidos”, relembra Madalena Palma, responsável pela associação Estar, uma das entidades “do núcleo alargado e restrito” do Npsisa que tem acompanhado no terreno a situação.

 

A mudança

 

Recordando o início do processo de desocupação do antigo “edifício da Refer”, a assistente social explica ao “DA” que, em primeiro lugar, foi necessário “fazer uma listagem das pessoas que lá pernoitavam”, não só com a ajuda dos imigrantes desempregados que frequentavam as instalações da Estar, mas também com visitas noturnas. “Com a listagem praticamente feita fomos lá à noite fazer a chamada e fechá-la, porque quando se começou a dizer que as pessoas iam ser realojadas noutro sítio corremos o risco, e aconteceu, de o espaço ser inundado com mais pessoas”, esclarece.

Mais tarde, com a data de encerramento já definida, a proteção civil “falou com o Regime de Infantaria [de Beja] para disponibilizar os beliches”, ativaram-se os contentores e fez-se a transferência, “em duas viagens”, para o centro, de forma “organizada” e “o mais discretamente possível para preservar a dignidade das pessoas”.

Desta forma, foram sinalizados 39 migrantes, homens, entre os 19 e os 55 anos, oriundos da Argélia e de Marrocos e, “a grande maioria”, a trabalhar na agricultura e na construção civil.

“Há muita gente a trabalhar no campo que não tem contratos de trabalho. Temos três indocumentados, cujos processos de legalização estamos a tratar, e contamos até ao final da semana libertar 12 ou 14 [imigrantes desempregados] que aguardam uma resposta de uma empresa de construção civil. Agora é trabalhar, um a um, estes casos, [porque] o objetivo é que até ao final se consiga encontrar casas e colocar [a trabalhar] todas as pessoas que faltam e ir esvaziando os contentores”, refere.

O centro, segundo Marisa Saturnino, vereadora da Câmara Municipal de Beja, deverá funcionar “até 15 de março, no limite”, contudo, Madalena Palma espera que a “grande maioria” dos imigrantes deixe o alojamento três dias antes, a 12, para não coincidir com o começo do Ramadão, altura em que a comunidade muçulmana inicia o ritual do jejum e, por isso, “precisa de condições”.

 

O papel da comunidade

 

Madalena Palma, à semelhança da vereadora, reforça também a ideia de que o centro de abrigo temporário noturno é uma resposta provisória e de urgência e que “não faz sentido” algum falar-se em guetos, “porque as pessoas não vão ficar ali eternamente, apesar de terem todas as condições”.“Muitas destas pessoas estavam satisfeitas com o local em que viviam, [relativamente ao ‘edifício da Refer’], e não se queriam vir embora da obra, porque as condições em que vivem nos seus países de origem não são diferentes daquele local. Agora, [no centro] têm banho, água quente e um grupo que é quase que uma família a trabalhar a toda a hora para encontrar uma solução e isso para eles é fantástico, [mas] todos eles sabem que não vai ser possível [ficar nos contentores depois da data estipulada] ”, afirma.

Desta forma, a assistente social assegura que, além do trabalho feito com a comunidade migrante, é necessário educar a comunidade local para que compreenda este fenómeno migratório e, consequentemente, tenha “mais empatia” sobre “o lugar da história do outro” e perceba “que aquela pessoa está ali, naquela maneira, porque teve aquele caminho todo”.

“A comunidade entende que nós estamos a alimentar esta situação, mas, enquanto nós resolvemos estes problemas, vêm outros. O fenómeno não vai desaparecer, e mesmo que a política europeia mude e as fronteiras comecem a ter outro tipo de controlo, demoraremos uns 10 anos a resolver o problema das pessoas que temos cá, ou seja, é um poço sem fundo”, garante. Acrescentando de seguida: “Não são bichos, não é um gueto dos bichos, não é nada disso. São pessoas que têm a sua história e uma coisa que todos eles têm são sonhos e vontades, e nós estamos aqui também para os ajudar a concretizá-los”.

 

Associação Estar poderá “fechar portas”

 

A associação Estar, coordenada por Madalena Palma e Inês Féria, está a atravessar um momento “muito frágil” com a possibilidade de, caso a candidatura feita aos fundos europeus seja recusada, “fechar portas no próximo mês”. Segundo Madalena Palma, o financiamento a que se propuseram irá servir não só para “manter a máquina atual a funcionar”, mas, sobretudo, para dar início ao projeto das Estruturas de Alojamento Temporário (EAT), enquanto “resposta mais consolidada” na região. A responsável acrescenta que, com a aprovação da candidatura, uma situação semelhante à atual “já não se colocará” no futuro, porque “haverá um espaço com camas de emergência e balneários para que as pessoas, referenciadas por nós ou por outras instituições, tenham um serviço que atualmente não existe em Beja”. Sem adiantar pormenores quanto ao novo projeto das EAT, a responsável da Estar diz, apenas, que “Beja precisa de um espaço que não seja paliativo, que seja um cuidado continuado e que venha tratar de um problema crónico que não vai desaparecer”, e que, por isso, se “a Europa tem dinheiro, a Estar quer ir buscá-lo para criar essas estruturas para a comunidade, não só para imigrantes, mas também para todas as pessoas que estão numa situação devastadora”. “Queremos chamar empresas para aqui, porque faz falta mão de obra. Exigir, daqueles que contratam, qualidade de vida para quem lá trabalha e ter mais voz, [mas], para isso, é preciso ter uma retaguarda financeira que, aos dias de hoje, não temos”, lamenta.

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