Diário do Alentejo

Efeméride: “A vitória dos humildes”

24 de novembro 2023 - 10:00
Nove anos após a elevação do cante alentejano a Património da Humanidade
Ilustração| Susa Monteiro/ArquivoIlustração| Susa Monteiro/Arquivo

A um ano de se comemorar a primeira década da inscrição do cante alentejano na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco, o “Diário do Alentejo” falou com quatro mestres ensaiadores de grupos corais do Baixo Alentejo, “tomando o pulso” ao atual estado da arte, tentando compreender de que forma o distinto prémio tem contribuído para a evolução e preservação desta expressão musical coletiva, identitária de uma região.

 

TEXTO JOSÉ SERRANO

 

Comemora-se na segunda-feira, dia 27, mais um aniversário da inscrição do cante alentejano na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), reconhecimento recebido em Portugal, nesse mesmo dia, em 2014, com expectável entusiasmo. O músico Paulo Ribeiro, recordando o momento que “deu ao mundo” esta peculiar forma de expressão musical, considera que o reconhecimento proporcionou, de forma marcante, a transmissão de “um sentimento de pertença a uma região, um orgulho maior”, com o povo alentejano a celebrar a elevação como uma vitória coletiva. “Não foram só os cantadores que se emocionaram e choraram de alegria. De uma forma geral, os portugueses terão ficado sensibilizados com este reconhecimento, que acaba por nos fazer lembrar o sofrimento deste povo do Alentejo, pois o cante também serviu para amolecer os duros trabalhos do campo, quando se trabalhava de sol a sol”. Assim, este prémio foi encarado “como uma vitória dos humildes”, diz.

Para além da honra e exaltação que proporcionou, Paulo Ribeiro, diretor coral do projeto que junta Pedro Abrunhosa e o Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias, ensaiador do Grupo Coral Infantil Os Rouxinóis do Alentejo (Beja), do Grupo Coral Vila Morena (Grândola) e do PoliCante, grupo coral do Instituto Politécnico de Beja, sublinha a importância que a distinção teve na chamada de atenção para o risco que o traço musical identitário da região corria. “Tal como há plantas e animais que se extinguem, também uma expressão musical se pode, inevitavelmente, perder, ainda mais se, tal como o cante, estiver intrinsecamente ligada ao povo e a sua transmissão garantida, fundamentalmente, através da tradição oral. Se a candidatura teve algum condão foi o de sensibilizar para este património, valorizando-o, com as pessoas a deixarem de ter vergonha de cantar, a assumir esta música como parte da sua cultura. Ao ponto de os jovens, nessa altura, formarem grupos de cante de garagem, como acontecera com o rock, nos anos 80 e 90. Tudo isto foi uma enorme conquista”, considera.

Contudo, nove anos volvidos após o comovente momento, transmitido a partir da sede da instituição em Paris, que elevou o cante a bem planetário, a correta preservação deste património, tal como consta na inscrição na Unesco – “género de canto tradicional (…) executado por grupos corais amadores (…) ”, cujo “repertório é constituído por melodias e poesia oral (modas), e é executado sem instrumentos musicais” – é colocada em causa por parte dos quatro protagonistas da arte com quem o “Diário do Alentejo” conversou.Pedro Mestre, ensaiador do Grupo Coral e Etnográfico Os Cardadores da Sete (concelho de Castro Verde), do Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento (Serpa) e do Grupo Coral da Casa do Povo de Reguengos de Monsaraz, manifesta: “São poucos os grupos que podem dizer que tenham beneficiado da candidatura, que a sua atividade melhorou após o reconhecimento do cante como Património da Humanidade. Só dois ou três coletivos, em toda a região, tiraram partido desta distinção, os mesmos que já se destacavam antes da classificação, porque sempre tiveram uma linha de orientação que os evidenciava em relação aos outros. O resto vive como vivia. Inclusive, com menos atividade”. E dá um exemplo: “Os Cardadores da Sete chegaram a ter 40 atuações por ano. Depois de o cante ser classificado, esse número diminuiu para cinco. Porque apareceram imensos grupos corais novos, formados por gente que nunca esteve envolvida no cante, com um reportório que na maioria dos casos nem é de grupos corais, nem do cante coral. Eu costumo dizer que são ‘grupos da Internet’ – e é a partir daí que a qualidade e a autenticidade se perdem, na maioria dos grupos recentemente criados”.

Também José Diogo Bento, ensaiador dos Cantadores do Desassossego (Beja) e monitor de cante alentejano nas escolas do 1.º ciclo no concelho de Ourique, discorre sobre este assunto. “Os grupos corais que já existiam, antes da distinção, continuam a manter as suas tradições, a cantar de forma igual àquela que contribuiu para o cante ser merecedor deste prémio. O mesmo já não se verifica com alguns dos grupos criados depois [de novembro de 2014], que não refletem a essência deste património”, expõe, pondo em evidência “a perda de qualidades” intrínsecas ao cante, nomeadamente, o seu caráter identitário, não se tomando devidamente em conta, refere, as diferentes formas de cantar. “Todos cantam as mesmas modas, da mesma maneira. Não existe a preocupação, por parte dos grupos (não digo de todos, estaria a ser injusto), de pesquisar sobre o cante específico da região que representam. Por isso, em algumas partes do nosso Alentejo, o cante está a tornar-se monótono”.

A mesma ideia, de desadequação, é expressa por Pedro Mestre: “Está tudo a cantar o mesmo reportório, sempre a mesma dúzia de modas, os ‘clássicos’ que toda a gente conhece. Poucos são os que cantam uma moda que pouco se ouça – porque dá trabalho”. O labor de se perceber a tradição do cante na localidade em que se está a trabalhar o grupo, diz. “É preciso entender como se canta em cada um dos diferentes lugares, qual o reportório ali pertencente, o ‘respirar’, as pronúncias e as entoações da fala, as características que marcam a diferença. Se todos [os ensaiadores, os grupos] fizessem este estudo do entendimento da realidade local, entender-se-ia, melhor, que o cante é diferente de terra para terra”.

Francisco Torrão, membro da comissão executiva da candidatura do cante alentejano à lista representativa do Património Cultural Imaterial de Humanidade da Unesco e atual mestre ensaiador do Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves, considera, também, que a preservação do cante “não está a ser devidamente cumprida”, de acordo com o que foi aprovado pela Unesco, “graças ao esforço coletivo dos grupos que preservaram o que lhes foi transmitido pelos antepassados”, transmitindo que “a imensa proliferação de grupos novos” levou a que, por vezes, seja apresentado como cante aquilo que, de facto, não o é. “Há, hoje, grupos que se intitulam de cante e que são capazes de apresentar dois acordeões, uma viola, uma viola baixo, um carron, todo o tipo de instrumentos, uma miscelânea de tal ordem… Por vezes as músicas até se apresentam ‘espanholadas’, outras a parecerem-se mais com um corridinho algarvio. Sei que os media vão à procura de situações assim mais simples, que entrem mais facilmente no ouvido, que as preferem ao cante tradicional, e isso tem levado a que muitos grupos tenham enveredado por esse caminho, recorrendo a instrumentos. Podem-me chamar conservador, mas não deixarei de considerar errado apresentar esse género de formação, circunstancial e de animação, representativa do Património da Humanidade que foi inscrito pela Unesco. O cante é grave”, acentua.Ainda que reconhecendo que “há vários tipos de cante no Alentejo”, e que sempre existiu “este género de grupos com instrumentos musicais”, Pedro Mestre evoca que “o que foi classificado foi o cante coral”, sendo este o único que, na sua opinião, não tem beneficiado da candidatura. “Os grupos instrumentais usam modas do cante coral e adaptam-nas a este estilo de cantar, com diferentes colocações de vozes, arpejos e todos os pormenores que marcam a diferença do cante coral alentejano. Ou seja, com base no cante faz-se uma outra coisa, diferente. Nós, os que estamos ligados à tradição, sempre soubemos diferenciar o que era reportório para grupo coral e para grupo de música popular alentejana. Mas a partir do momento em que se começa a misturar reportórios, e em que a projeção da música tradicional foi de tal modo para fora da região, para além daqueles que estavam envolvidos no cante, deixou-se de diferenciar uma coisa da outra, entrando tudo num mesmo caldeirão chamado ‘cante alentejano’. E é aqui que a confusão se instala”.

Neste âmbito, no que aos grupos alentejanos de cariz popular que utilizam instrumentos a acompanhar a voz diz respeito, José Diogo Bento manifesta a importância de os seus membros passarem pela “base mais importante de todas, que é o cante coral, o cante às vozes”, fundamental, diz, para que se possa absorver, da forma mais correta, o reportório de grupos corais, “para depois o podermos musicar, se assim o entendermos, à nossa maneira. E aí, sim, não deixa de ser cante alentejano”.

Paulo Ribeiro, ainda que esclarecendo não ter “nada contra” aquilo que são grupos de cante musicado, projetos comerciais inspirados na tradição do cante coral, “mais portáteis e fáceis de deslocar”, que se representam a si próprios, considera, todavia, que os mesmos acabam por “tomar conta do espaço mediático com muita mais facilidade do que um grupo coral”, mesmo que seja “um dos grupos corais históricos”. Desse ponto de vista, diz, “há aqui algum tipo de desvio da atenção dada sobre aquilo que é o cante na sua matriz mais profunda, mais telúrica. Enfim, sobre o cante que foi classificado, que é algo completamente diferente”.

 

O cante na televisão

Sobre esse mesmo espaço mediático, Pedro Mestre é da opinião de que a televisão tem contribuído para fazer passar uma ideia errada daquilo que o cante, verdadeiramente, é. “Desvalorizam o imenso trabalho que está por detrás dos grupos corais. Chega-se a fazer chacota, como naqueles programas das tardes de fim de semana, em que aparece a imagem do grupo mas não se dá voz aos cantadores, não os deixando cantar uma moda do princípio ao fim – estão lá só para encher cartaz. E depois aparecem grupos de gente nova a fazer música que dizem que é cante, e a situação vai nesse caminho… perde-se o entusiamo e incita-se os que estão a começar a cantar a entrar num conjunto instrumental ao invés de um grupo coral”.A crítica é corroborada por Paulo Ribeiro, entendendo que “o que se vê é que a rádio e televisão públicas tiveram apenas, ao início [após a classificação da Unesco] uns assomos de entusiasmo pela valorização do cante, que nunca deixou de ser uma expressão secundária, no sentido de ter de concorrer, no espaço mediático, com mil e um interesses”. Para além disso, diz, há um aproveitamento das televisões, “procurando a todo o custo extrair algo de qualquer coisa que seja dita tradicional, como se observa em determinados concursos, em que alguns destes novos grupos alentejanos, muito frágeis, vão lá por ‘a cabeça no cepo’, sem o devido reconhecimento, sem as necessárias condições, sem a devida contratualização – isso nunca dá bom resultado”.Sobre a alegada negligência do poder televisivo na divulgação do cante, Francisco Torrão elucida: “Atuámos [Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves], recentemente, no programa, da jornalista Fátima Campos Ferreira, “Primeira Pessoa”, da “RTP1”, que foi gravado no Convento do Espinheiro, em Évora. Cantámos (e bem) três modas tradicionais. Quando o programa veio para o ar, aparecemos 50 segundos. Se a televisão pública nos trata assim… é muito triste. Nós [grupos corais] fazemos tanto esforço para cumprir a ideia de preservação do cante, tal como foi proposta à Unesco, e às vezes ficamos com a sensação de que tudo está a ser em vão, porque o verdadeiro cante está a perder terreno”.

 

Estratégias para a salvaguarda do cante

“As autarquias só estão interessadas em fazer fusões do cante com outras realidades culturais e musicais. Esta é a estratégia de que eu tenho conhecimento. Se, por acaso, existirem outras, que eu desconheço, gostaria que me informassem acerca, porque tenho interesse”. Pedro Mestre prossegue, justificando a ironia: “O que eu considero é que nos temos esquecido da necessária e principal fusão, que tem a ver com a envolvência entre grupos corais, entre os cantadores, entre as pessoas que fazem parte do cante. Vemos cada vez mais grupos a perderem elementos, a terem maior dificuldade em acolher cantadores. Quem esteja atento percebe que o entusiamo que havia pelo cante se perdeu, porque passou a ser só com instrumentos e a estratégia de salvaguarda não tem sido a melhor”, frisa.

Também Francisco Torrão adverte para o facto de que as estratégias delineadas para a valorização deste património correspondem a situações muito ténues: “Não existe, de facto, um projeto ao nível associativo, não existe nas autarquias no Baixo Alentejo um departamento que se dedique a este trabalho. Porque dizer que o concelho de Beja tem x grupos corais não é suficiente. É necessário reunir aqui, neste território, pessoas que percebam de música, de cante, constituir, duas ou três vezes por ano, ações de formação entre mestres [ensaiadores] e de atuais mestres para futuros. Precisamos de um organismo aglutinador dos grupos, capaz de nos pôr a discutir acerca dos aspetos musical, com levantamento de reportório, e etnográfico do cante”.

Esta falta de estratégia de salvaguarda do cante que é referida ficou, de acordo com Paulo Ribeiro, “nitidamente exposta” durante os recentes anos de pandemia, uma vez que não foi transmitida aos grupos corais “qualquer orientação”, ainda que se adivinhasse que, por ser cantado em grupo, o cante seria uma das expressões artísticas que mais sairia prejudicada da delicada situação. “Nem a Moda [Associação do Cante Alentejano] emitiu qualquer comunicado, nem as câmaras municipais se preocuparam muito (salvo honrosas exceções, como a de Grândola). Não se viu qualquer estratégia, qualquer tipo de apoio. Ficamos com a ideia de que quando se precisa toda a gente vai buscar o cante, porque é necessário para animar uma festa, para isto e para aquilo. Mas quando surgem os problemas a sério e é preciso energia, boa vontade e orientação, aí toda a gente se chega, se chegou, para trás. Muitos grupos corais acabaram”, lembra.

“Podemos fazer melhor. O que me preocupa é a falta de pensamento estratégico. Há muitas ideias soltas mas nada de muito estruturado, há falta de comunicação entre as entidades com responsabilidade no cante. É urgente pensar-se de que forma se pode valorizar este património, o que podemos fazer para que as crianças e os jovens se continuem a interessar, como se pode valorizar as atuações, as escolhas dos reportórios, como nos podemos ajudar uns aos outros. Isto não é nenhuma utopia, é uma questão de as pessoas se organizarem. Se houver comunicação tudo será mais facilmente valorizado”, evidencia Paulo Ribeiro

Valorização que, diz Pedro Mestre, passa “pela formação de escolas de cante, pela recolha de modas que ninguém conhece (por enquanto, ainda há gente que as sabe do passado), por estudar a tradição, por envolver os grupos corais no projeto de ensino do cante nas escolas, levando os cantadores à sala de aula, para que possam dar o seu exemplo, para que as crianças ouçam aquela forma de cantar”. Reforçando a importância deste projeto musical escolar, Pedro Mestre não deixa de advertir: “Se nós não ensinarmos as modas do cante coral, então não estamos a ensinar cante, no sentido de se trabalhar a colocação da voz, os versos, os temas sobre os quais as modas falam, para dar a conhecer a cultura, os usos e os costumes da região. Por isso, quando vejo integrar no projeto peças recentes como ‘A dar-te um beijo’ [tema ‘Casa’, interpretado por D.A.M.A e Buba Espinho]… eu sei que é mais fácil cativar as crianças com esse tipo de reportório, que chega diariamente até casa deles, do que com uma moda coral. Mas não está bem feito, porque na verdade este projeto não pode ser uma animação musical para as escolas, mas sim um projeto de ensino, no qual o cante tem uma oportunidade de se dar a conhecer aos mais jovens”.

Acerca deste projeto de cante nas escolas e da importância da sua continuidade, José Diogo Bento sugere a implementação do mesmo em todos os concelhos da região, alargando-o, ademais, a todos os ciclos do ensino secundário. “Devemos dar a conhecer mais, porque o cante não se resume às modas mais fáceis de cantar ou de serem ouvidas. Esse caminho deve ser agora iniciado, para que daqui a 20 anos ainda possamos contar com a presença de grupos corais, na região, pois, para se cantar num grupo coral, a capella, sem instrumentos, tem de haver continuidade, rigor e respeito ao cante, mas, sobretudo, paixão e humildade em querer aprender mais”.

Francisco Torrão volta a considerar a necessidade de articulação institucional, considerando que “não há ligação absolutamente nenhuma entre os grupos e os departamentos de cultura dos municípios”, devendo estes “promover reuniões, em que tudo fosse abertamente discutido, pois de entre várias opiniões surgem sempre boas ideias a implementar”.

Sobre esta articulação formal, Paulo Ribeiro considera-a fundamental, aconselhando, no futuro, uma mais estreita ligação comunicacional entre os municípios, para que cada um possa registar o que se vai fazendo em cada um dos outros, em prol de uma estratégia concertada de valorização do cante, no território. Isto porque, diz, “os municípios são entidades que também têm responsabilidades nesta matéria, uma vez que, para além de Património Cultural Imaterial da Humanidade, o cante também está classificado na região [em alguns municípios] como Património Cultural Imaterial de Interesse Municipal”. E termina, perspetivando o que deverá ser, começando hoje a trabalhar-se, “um grande congresso sobre o cante”, em 2024, ano que completará uma década de elevação a Património da Humanidade, “envolvendo o Instituto Politécnico de Beja, o Centro Unesco de Beja, a Moda, os municípios, as várias associações, os grupos, os cantadores, todos os agente do cante, musicólogos e sociólogos, enfim…”, colocando em diálogo pessoas das mais diversas áreas, capaz de permitir uma reflexão sobre o estado da arte, 10 anos depois da vitória dos humildes, do triunfo do cante, “força que brota do vigor e da alma das gentes do Alentejo”, conclui.

Comentários